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O artigo 270, parágrafo único, alínea b, do Código de Processo Penal Militar, perante a Constituição Federal de 1988

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3 – A NÃO-RECEPCÃO DO ARTIGO 270, PARÁGRAFO ÚNICO, ALÍNEA B, DO CPPM EM FACE À CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988

Conforme visto no capitulo anterior, devido ao período histórico em que o Código de Processo Penal foi introduzido no ordenamento jurídico nacional, o legislador castrense pretendeu enfatizar os princípios da hierarquia e disciplina militares ao limitar a concessão da liberdade provisória.

Assim, apesar de os delitos relacionados no artigo 270, parágrafo único, alínea "b", do CPPM, serem punidos com pena privativa de liberdade até dois anos, por serem aviltantes aos princípios basilares da organização militar, o legislador vetou a concessão da liberdade provisória, haja vista que o infrator solto provocaria um desgaste moral no convívio entre a sociedade militar.

Todavia, o Código de Processo Penal Militar provém do período ditatorial, é anterior a Constituição Federal de 1988, assim, todo seu regramento, para ter validade, deve passar pelo crivo dos princípios e fundamentos do Estado Social Democrático, sob pena de não serem recepcionados e, por consequência, não devem ser aplicados aos casos concretos.

3.1 PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS INFORMADORES DA LIBERDADE PROVISÓRIA

A liberdade provisória, no ordenamento brasileiro, assegura que sejam observados direitos fundamentais do homem, os quais só podem ser restritos como medida de última ratio. Dentre eles, pode-se citar três de maior importância: o direito à dignidade da pessoa humana, à liberdade e à presunção da inocência (não-culpabilidade). Todos eles foram acobertados pela Constituição Federal de 1988 e nela inseridos como cláusula pétrea, ou seja, não podem ser suprimidos por lei ou por emenda constitucional.

A dignidade da pessoa humana encontra guarida no caput do art. 1º, inciso III [24], da Constituição Federal, e sobre ele escreve Pellizzaro:

A dignidade da pessoa humana deve ser entendida como um princípio constitucional basilar, haja vista que todos os outros princípios e normas componentes do ordenamento jurídico se voltam de forma mediata para o fim de garantir a todos uma vida digna. Ou seja, este princípio funciona como um suporte de todos os direitos fundamentais consagrados na Constituição.

Assim, é importante considerar que a privação indevida da liberdade pessoal, não justificada por uma condenação ou por qualquer razão legal, é uma afronta manifesta à dignidade da pessoa humana. Primeiro, em razão das condições subumanas do cárcere e, segundo, por representar a prisão indevida um verdadeiro apenamento de alguém que se encontra em estado de inocência. [25]

Na mesma linha, Bretas comenta:

No que tange à dignidade da pessoa humana, cumpre aquiescer que a privação desnecessária da liberdade constitui gravame incicatrizável na história do indivíduo. A automaticidade da segregação rebaixa o acusado à condição de frágil ancila, impotente diante do arbítrio estatal. [...]. Sem embargo, a liberdade provisória é, por muitos, elevada à condição de direito fundamental. Frederico Marques, Ada Pelegrini Grinover, Basileu Garcia, Vélez Mariconde e Weber Martins, todos apontados por Valdir Sznick, são exemplos de autores que se filiam à idéia de que a liberdade provisória constitui, mais do que "faculdade" do réu, autêntico "direito" do acusado. Destarte, a custódia do acusado que preenche os requisitos para a liberdade provisória representaria execrável estremecimento das conquistas democráticas. [26] (grifo nosso)

Tal princípio impede que outros direitos do homem sejam violados de forma arbitrária e desarrazoada a ponto de ele seja despojado de garantias mínimas para que possa viver de forma digna. Desta forma, evita-se que o acusado seja privado de sua liberdade desnecessariamente, caso contrário, além de impedir o direito de ir e vir, a própria proteção à imagem, ou seja, presunção de inocência estaria abalada, uma vez que a sociedade enxerga com "pré-conceitos" aqueles que se encontram encarcerados, ainda que sem uma sentença condenatória transitada em julgado.

No que diz respeito ao princípio da liberdade, tutelado no caput do artigo 5º [27] da Constituição Federal de 1988, o constituinte originário pretendeu impedir que o cidadão fosse privado do seu direito de ir e vir de forma discricionária, desrespeitando as leis e as garantias individuais. Tamanha importância foi dada a este direito que foi novamente regulamentado, neste mesmo artigo, em seu inciso LXI: "ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei;"

Da leitura dos dispositivos, observa-se que a Constituição Federal almejou evitar a prisão processual, aquela em que não há condenação transitada em julgado. Nesse sentido escreve Bivar Júnior:

Como se pode perceber, a regra é a liberdade, a exceção é a sua privação nos termos da lei, que só deve ocorrer em casos de absoluta necessidade. Tenta-se, assim, conciliar os interesses sociais que, de um lado, exigem a aplicação de uma pena ao autor de um crime e, de outro, protegem o direito do acusado de não ser preso, senão quando considerado culpado por sentença condenatória transitada em julgado. [28]

Destarte, impedir a prisão antecipada descabida legitima também os princípios da ampla defesa e do devido processo legal, uma vez que solto o réu poderá programar a forma que pretende delinear sua defesa, contratando advogado, evadindo-se [29], omitindo ou faltando com a verdade.

Não obstante, o princípio da presunção de inocência (não-culpabilidade) sustenta, de forma ainda mais enfática, o interesse do Estado em tutelar a liberdade enquanto a sentença penal não transitar em julgado.

Sobre o preceito acima, Mirabete informa:

[...] a nossa Constituição Federal não "presume" a inocência, mas declara que "Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória [...] o acusado é inocente durante o desenvolvimento do processo e seu estado só se modifica por uma sentença final que o declare culpado. Pode-se até dizer como o faz Carlos J. Rubianes, que existe até uma presunção de culpabilidade ou de responsabilidade quando se instaura a ação penal, que é um ataque à inocência do acusado e, se não a destrói, a põe em incerteza até a prolação da sentença definitiva. [...]

Em decorrência do princípio do estado de inocência deve-se concluir que: (a) a restrição à liberdade do acusado antes da sentença definitiva só deve ser admitida a título de medida cautelar de necessidade ou conveniência, segundo estabelece a lei processual; (b) o réu não tem o dever de provar sua inocência; cabe ao acusador provar a sua culpa; (c) para condenar o acusado, o juiz deve ter a convicção de que é ele o responsável pelo delito, bastando para absolvição a dúvida a respeito de sua culpa. [30]

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Ora, tal princípio não resguarda apenas a imagem do acusado, mas também delimita a atuação da própria defesa, da acusação e do magistrado. Não obstante, Mirabete informa que pela interpretação deste princípio é possível se extrair outro: o princípio do favor réu, ou in dubio pro reo.

Nessa perspectiva, o princípio derivado indica, conforme exposto por Mirabete, que ao proferir a sentença o magistrado deve estar convicto da culpabilidade do réu. Logo, se para condenação é necessário certeza, é possível afirmar que durante a instrução criminal, momento em que ainda estão sendo produzidas as provas, habita total dúvida quanto a culpabilidade do acusado.

Deduz-se, desta forma, que: se a prisão só é devida quando há trânsito em julgado de uma sentença condenatória; se a sentença condenatória só pode ser prolatada quando o juiz estiver convicto da culpabilidade do réu; consequentemente, a liberdade durante a instrução deve ser a regra quase absoluta, a ser quebrada somente em casos em que extremos, após demonstrada sua necessidade nos limites da razoabilidade.

3.2 O APARENTE CONFLITO ENTRE PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS

Observa-se, ante os argumentos até então abordados, que tanto os princípios da hierarquia e disciplina militares quanto os princípios da dignidade da pessoa humana, liberdade e presunção de inocência encontram guarida na Constituição Federal de 1988. Todavia, tais princípios deixam de conviver em harmonia ao se estudar a inadmissibilidade de concessão de liberdade provisória aos crimes arrolados no art. 270, parágrafo único, alínea "b", do CPPM.

Nessa perspectiva, Luiz Henrique e Argemiro Cardoso estudam a colisão de princípios constitucionais e concluem que a solução para o conflito das normas será a ponderação. Nesse sentido:

No caso do conflito entre princípios (ou colisão entre princípios, nos termos de Alexy), diversamente das regras, este se dá no plano do seu "peso" valorativo que entre eles – os princípios colidentes - deverá ser ponderado e não no plano da validade, como no caso do conflito entre regras. Portanto, a conseqüência mais evidente da identificação entre princípios e valores é o tratamento dado aos primeiros em caso de colisão. Alexy formula uma regra ou máxima para a resolução dos conflitos entre princípios, baseada na sua ponderação ou sopesamento. Ele denomina tal critério hermenêutico de regra da proporcionalidade,uma espécie de meta-princípio estruturado em três passos ou estágios subseqüentes: o da adequação, o da necessidade e o da proporcionalidade, em sentido estrito. [...]

Os membros da Suprema Corte da Alemanha encontram na noção de dignidade da pessoa humana uma espécie de meta-valor a orientar a interpretação dos demais direitos fundamentais. Embora em Alexy a sua interpretação seja diversa, pois é ancorada na análise de dois princípios colidentes, sejam quais forem, de igual hierarquia e tendo como critério de opção, em última instância, as decorrências sociais do caso concreto face aos dois critérios de adequação e necessidade, antes observados, que influirão na escolha do princípio que deva prevalecer naquela situação. (grifo nosso)

[...]

A relação de ponderação atribui a cada princípio um peso por serem eles exigências de otimização diferentemente das regras que são rígidas na sua aplicação a um caso concreto. Ou seja, neste último caso, as regras se aplicam de forma integral dentro do código binário válido/inválido; tudo ou nada, fazendo-se valer, quando cabíveis, em caráter definitivo e excludente.

Os princípios, por seu lado, podem ter diferentes graus de concretização, dependendo das circunstâncias específicas (possibilidades fáticas) e dos demais princípios que se confrontam (possibilidades jurídicas). Somente após a realização do processo de ponderação é que o princípio considerado prevalente torna-se uma regra a estabelecer um direito definitivo para aquele caso. [31]

Assim, quando dois ou mais princípios confrontam-se, o julgador deve sopesar, perante o caso concreto, qual princípio prevalecerá de modo a proteger um número maior de direitos, tendo como influência e orientação a dignidade da pessoa humana, de forma que possa, com a sua decisão, chegar o mais próximo do justo.

3.3 – A PREDOMINÂNCIA DA LIBERDADE PROVISÓRIA EM RAZÃO DAS GARANTIAS FUNDAMENTAIS

Ainda nos dias atuais, é comum observar nos Tribunais Pátrios decisões que denegam os pedidos de liberdade provisória com fundamento de o Código de Processo Penal Militar ser claro ao arrolar os delitos que não poderão ser agraciados com tal benesse. Afirmam, ainda, que a liberdade do réu vilipendiaria os princípios da hierarquia e disciplina militares, essenciais à ordem na caserna e ao respeito comum entre os seus pares. Nesse sentido [32]e:

EMENTA

. RECURSO CRIMINAL.RECUSA DE OBEDIÊNCIA. DESCONSTITUIÇÃO DE DECISÃO QUE CONCEDEU LIBERDADE PROVISÓRIA (ART. 270, b, E ART. 255, e, ambos do CPPM). Militar que recusa receber ordem superior tem decretada prisão preventiva. Há que desconstituir Decisão que concedeu a liberdade provisória pela inteligência do art. 270, letra "b", do CPM, uma vez que fere os princípios basilares de hierarquia e disciplina. Recurso Provido. Decisão por maioria. [33]

VIOLÊNCIA CONTRA SUPERIOR. Neste tipo de infração penal é muito mais atingida, que a pessoa, a Instituição, cujos esteios fundamentais - a hierarquia e a disciplina - são, diretamente, vilipendiadas, repercutindo no seio da sociedade militar. Crimes como este ganham intenso colorido e denotam um profundo desajuste de quem o pratica ao meio social, razão por que da severidade da Lei Processual Penal Militar em não permitir-lhe livrar-se solto. Inteligência do art. 270, parágrafo único, b, do CPPM, merecendo o agente o tratamento preconizado no art. 255, e, da Lei dos Ritos Penais Castrenses. Correição Parcial deferida para, cassando-se a concessão da liberdade provisória, determinar-se o restabelecimento da prisão do Acusado, com a expedição do competente mandado pelo Juiz da Instrução Criminal. Decisão majoritária. [34]

Ementa: Militar autuado em flagrante, pela prática dos delitos dos arts. 157 e 177 do CP Militar, desde que tenha a autuação se revestido das formalidades legais, deve ser mantido sob prisão, sendo desnecessária a fundamentação de tal mantença, eis que decorrente do próprio flagrante e das disposições expressas do art. 270, parágrafo único, letra b, do CPP Militar. [...] [35]

Todavia, tal posicionamento não é mais unânime, o que pode ser observado no próprio Superior Tribunal Militar, o qual já se manifestou favorável quanto à concessão da liberdade provisória em delitos cuja pena privativa de liberdade era superior a dois anos, contrariando, assim, o disposto no art. 270, parágrafo único, alínea "b", do CPPM.

Na decisão proferida [36] a benesse foi conferida ao preso, acordando os Ministros que os delitos que não se amoldam ao art. 270 nem ao art. 255 do CPPM, devem, por analogia em bonam partem ao Código de Processo Penal Comum, ter a liberdade provisória concedida, por medida de justiça e respeito aos preceitos fundamentais estabelecidos na Constituição Federal. Veja-se:

Não merece prosperar o Recurso do Ministério Público, apesar de sua brilhante fundamentação. Deve-se ter cautela ao lidar com bens tão preciosos como a liberdade, pois representa um dos direitos fundamentais do homem, garantido constitucionalmente, só podendo ser violado nos casos de flagrante delito ou ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, exceto nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar definidos em lei (CF/88, art. 5º, LXI)

E, mesmo nestes casos, é garantido constitucionalmente à pessoa não ser levada à prisão ou nela mantida, quando a lei admitir liberdade provisória

Ao juiz é conferida a faculdade de conceder liberdade provisória a agente preso em flagrante, bastando, para isso, que a avaliação das provas existentes nos autos da referida prisão formem a convicção do Magistrado da desnecessidade e dispensabilidade da prisão preventiva.

[...]

Na legislação processual penal militar, a liberdade provisória é tratada nos arts. 253 e 270 do CPPM e, a prisão preventiva, nos arts. 254 e 255 do mesmo código.

Mas, existem situações em que a conduta do agente não se amolda aos preceitos do art. 270 (liberdade provisória), nem se enquadram nas hipóteses previstas no art. 255 (prisão preventiva), ambos do CPPM.

[...]

Para o problema, em casos idênticos, a analogia tem sido a solução encontrada.

O emprego analógico do art. 310, parágrafo único, do CPP, suprimindo o art. 270 do CPPM, tem sido alvo de discussão, tanto neste como em outros Tribunais. Sendo certo que, na tentativa de adequar o caso às normas constitucionais vigentes, vários posicionamentos a respeito já foram proferidos, como por exemplo [37] [...]

É certo que a lei existe para ser aplicada ao caso concreto, mas jamais, se pode deixar de observar os valiosos princípios da lei maior, diante da qual, todo imperativo legal se enverga.

Assim, pela leitura minuciosa dos autos e, em harmonia com os princípios constitucionais, ora invocados, admito como razão de decidir o preceito do art. 257 [38] do CPPM [...]

É possível extrair do Acórdão acima a preocupação do julgador em resguardar os direitos do réu, como a liberdade e a presunção de inocência, haja vista que a manutenção de uma prisão cautelar descabida provocará danos irreversíveis à pessoa do encarcerado.

A imagem de alguém que já foi preso, ainda que este seja inocente do delito pelo qual é acusado, jamais se recupera perante a sociedade e, principalmente, perante sua própria família, que muitas vezes deixa de apoiá-lo.

Outrossim, os abalos psicológicos causados por uma prisão indevida são imensuráveis, persistindo ao longo da vida, de modo que o Estado não tem poder e nem capacidade para recuperar tamanho dano moral.

Maria Aparecida Trigilio informa que o legislador castrense preocupou-se em vincular a prisão cautelar para o delito de deserção ao prazo máximo de duração de 60 dias (art. 453 do CPPM) e para os demais delitos arrolados no art. 270, parágrafo único, alínea "b", estabeleceu o prazo de 50 dias (art. 390 CPPM), assim, se o infrator não for julgado neste período, será posto em liberdade para responder o processo [39].

Ao continuar sua exposição, Maria Aparecida questiona a necessidade de se estabelecer um prazo para manutenção do réu preso cautelarmente. Assim o faz:

[...] se durante o processo o réu ficou sob prisão provisória porque vedada foi-lhe a liberdade provisória, e ao final decorra uma decisão condenatória, muito certamente deverá ser ele posto em liberdade, pois, em face da pequena quantidade de pena (inferior a dois anos de detenção), será recomendável o réu ser colocado em liberdade, se apelar, pois dependendo o tempo de tramitação do processo no juízo ad quem, poderáele cumprir a pena integralmente antes mesmo do julgamento da apelação (e do trânsito em julgado da sentença).

Por outro lado, se a pena é inferior a dois anos, como se justificar a manutenção da prisão do réu, provisoriamente, durante o processo, se em virtude da pena máxima faz ele jus ao regime aberto [...].

Não mais se sustenta, ante os Direitos Fundamentais, a vedação, por parte do legislador, de maneira genérica da liberdade provisória, mas ainda que se tenha tal vedação, como é o caso do art. 270, parágrafo único, alínea b, do CPPM, essa norma somente sobreviverá se ao juiz, no exame do caso concreto, aferir a necessidade de manutenção ou decretação da prisão, devendo, pois, haver uma releitura da referida regra do CPPM em face da Lei Maior. [40]

Igualmente, o próprio Supremo Tribunal Federal já se manifestou acerca da matéria, enaltecendo a importância das garantias individuais e de como elas dever ser tratadas com maior zelo pelo magistrado. Nesse sentido:

EMENTA: Habeas Corpus. 1. No caso concreto, alega-se falta de fundamentação de acórdão do Superior Tribunal Militar (STM) que revogou a liberdade provisória do paciente por ausência de indicação de elementos concretos aptos a lastrear a custódia cautelar. 2. Crime militar de deserção (CPM, art. 187). 3. Interpretação do STM quanto ao art. 453 do CPPM ("Art. 453. O desertor que não for julgado dentro de sessenta dias, a contar do dia de sua apresentação voluntária ou captura, será posto em liberdade, salvo se tiver dado causa ao retardamento do processo"). O acórdão impugnado aplicou a tese de que o art. 453 do CPPM estabelece o prazo de 60 (sessenta) dias como obrigatório para a custódia cautelar nos crimes de deserção. [...] 5. Para que a liberdade dos cidadãos seja legitimamente restringida, é necessário que o órgão judicial competente se pronuncie de modo expresso, fundamentado e, na linha da jurisprudência deste STF, com relação às prisões preventivas em geral, deve indicar elementos concretos aptos a justificar a constrição cautelar desse direito fundamental [...]. Isto é, o acórdão impugnado limitou-se a fixar, in abstracto, a tese de que "é incabível a concessão de liberdade ao réu, em processo de deserção, antes de exaurido o prazo previsto no art. 453 do CPPM". É dizer, o acórdão impugnado não conferiu base empírica idônea apta a fundamentar, de modo concreto, a constrição provisória da liberdade do ora paciente (CF, art. 93, IX). Precedente citado: HC nº 65.111/RJ, julgado em 29.5.1987, Rel. Min. Célio Borja, Segunda Turma, unânime, DJ 21.8.1987). 7. Ordem deferida para que seja expedido alvará de soltura em favor do ora paciente [41].

Na aludida decisão, o Ministro Relator invoca o significado ímpar dado aos direitos individuais pela Constituição Federal de 1988, o que pode ser facilmente notado pela própria localização em que eles se encontram, no início do texto constitucional, reforçando que eles devem ter eficácia imediata e "vinculação direta dos órgãos estatais a esses direitos e o seu dever de guardar-lhes estrita observância" [42].

Ainda em seu voto, o Ministro Relator destaca:

E no que se refere aos direitos de caráter penal, processual e processual-penal, talvez não haja qualquer exagero na constatação de que esses direitos cumprem um papel fundamental na concretização do moderno Estado democrático de direito.

A prisão preventiva é medida excepcional que, exatamente por isso, demanda a explicitação de fundamentos consistentes e individualizados com relação a cada um dos cidadãos investigados (CF, art.. 93, IX e art. XLVI).

A idéia do Estado de Direito também imputa ao Poder Judiciário o papel de garante dos direitos fundamentais. Por conseqüência, é necessário exercitar a prudência para que esse instrumento excepcional de constrição da liberdade não seja utilizado como pretexto para massificação das prisões preventivas.

Na ordem constitucional pátria, os direito fundamentais devem apresentar aplicabilidade imediata (CF, art. 5º, §1º).

A realização dessas prerrogativas não pode nem deve sujeitar-se unilateralmente ao arbítrio daqueles que conduzem investigação de caráter criminal.

Em nosso Estado de Direito, a prisão é medida excepcional e, por essa razão, não pode ser utilizada como meio generalizado de limitação das liberdades dos cidadãos.

Em nosso Estado de Direito, a prisão é uma medida excepcional e, por essa razão, não pode ser utilizada como um meio generalizado de limitação das liberdades dos cidadãos

Portanto, nos casos em que a disciplina e hierarquia militares foram infringidas, compete ao magistrado ponderar, no caso concreto, se há elementos suficientes para manutenção da prisão provisória, fazendo-o de maneira fundamentada, nos termos do art. 93, IX, da Constituição Federal.

O juiz de direito deve priorizar os direitos individuais tutelados na Carta Magna, recordando-se da excepcionalidade da prisão cautelar e, principalmente, dos efeitos negativos e irreversíveis causados por ela.

Outrossim, é preferível que mil culpados sejas mantidos em liberdade, mesmo com perigo de fuga, a que um inocente seja encarcerado, mesmo que por um único dia.

É obrigação do Estado combater e perseguir aqueles que infringiram a norma penal e, para isto ele é detentor de uma estrutura organizada e dinheiro para tal empenho. Todavia, não há dinheiro no mundo capaz de restituir a integridade psicológica a um inocente que foi mantido indevidamente na prisão.

Ressalta-se, também, que muito dificilmente princípios como os da disciplina e hierarquia militares, que tutelam única e exclusivamente a Instituição Militar, poderão prevalecer ante a dignidade da pessoa humana.

Pode-se dizer, ainda, que a hierarquia e disciplina militares não se encontram desprotegidas pela simples possibilidade de se conceder liberdade provisória ao réu preso por algum dos delitos arrolados no art. 270, parágrafo único, alínea "b", do CPPM. Isto porque é garantido dentro do processo administrativo-disciplinar militar, a aplicação de penalidades administrativas, como advertência, suspensão, dentre outras.

Bem ainda, a própria Constituição Federal, em seu art. 5º, LXI, permite a aplicação de prisão como forma de punição administrativa.

Ora, tal prisão será por tempo reduzido e razoável, de caráter estritamente disciplinar, colaborando na reeducação do infrator e servindo de exemplo para os seus pares, seus efeitos não extrapola os limites da caserna, não implicando consequências ao infrator perante a sociedade.

Isto posto, pode-se concluir que, apesar da limitação contida no art. 270, parágrafo único, alínea "b", do CPPM, por se tratar de uma vedação genérica ao direito de liberdade, seu conteúdo não foi recepcionado pela Constituição Federal de 1988 e, portanto, o agente que pratica qualquer um daqueles delitos ali arrolados poderá ser beneficiado com a liberdade provisória, desde que não estejam presentes os requisitos da prisão preventiva.

Sobre os autores
Pedro Cesar da Fonte Nogueira

Professor universitário, especialista em direito público e em direito criminal

Rejane Alves de Arruda

Advogada, Mestre e Doutora em Direito pela PUC/SP.Coordenadora do Curso de Pós-Graduação lato sensu em Direito Criminal da UCDB, Orientadora do Trabalho de Conclusão de Curso da Pós-graduação.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FONTE NOGUEIRA, Pedro Cesar; ARRUDA, Rejane Alves. O artigo 270, parágrafo único, alínea b, do Código de Processo Penal Militar, perante a Constituição Federal de 1988. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2509, 15 mai. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/14852. Acesso em: 23 dez. 2024.

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