Resumo: Artigo acerca da aplicabilidade da Teoria da Desconsideração da Personalidade Jurídica às associações. Partindo da premissa de que as associações são pessoas jurídicas de direito privado suscetíveis de abuso em sua personalidade jurídica, à semelhança das sociedades, apresenta a teoria da desconsideração da personalidade jurídica como instituto apto à correção e inibição da situação abusiva. Comenta a disciplina legal das associações, concentrando sua atenção no regramento dos membros. Examina a evolução e os elementos da Teoria da Desconsideração da Personalidade Jurídica. Demonstra a possibilidade de desconsiderar a personalidade jurídica das associações e os fundamentos para tanto.
Abstract: Article concerning Disregard Doctrine applicability to associations. Working on the premise that the associations are private legal entities susceptible to abuse in its corporate entity, similarity to society, introduce the Disregard Doctrine as an appropriate institute to correct and slow down this abusive situation. It comments the legal association’s disciplines, concentrating attention on members and administrators rules. It examines the Disregard Doctrine evolution and its elements. It demonstrates the possibility for disregard the corporate entity of the associations and the beddings for in such a way.
Palavras-chave: Pessoa jurídica – Abuso da personalidade jurídica – Teoria da desconsideração da personalidade jurídica – Associação.
Key-words: Legal entity; Abuse of corporate entity; Disregard Doctrine; Association.
1. Introdução
No Brasil a existência de pessoas jurídicas é uma realidade incontestável. Há milhares de sociedades exercendo atividades empresariais, vendendo produtos, prestando serviços. Existem inúmeras sociedades simples, conforme a nomenclatura do atual Código Civil, constituídas de advogados, médicos, contadores etc., os quais conjugam esforços para o exercício de suas atribuições profissionais. Ao lado das sociedades convivem as associações, em meio a seus mais variados objetivos: os consumidores que adquirem produtos e serviços fornecidos pelas sociedades têm integrado associações para a defesa de seus interesses; os empregados das sociedades têm criado associações com o fito de promover lazer para si, ou realizar atos de caridade; os advogados, médicos, contadores e profissionais, ao tempo em que participam de sociedades simples, são membros de associações de defesa de interesses da classe profissional.
Com tamanha importância, a pessoa jurídica infiltrou-se em inúmeras relações sociais e, infelizmente, tem sido alvo de abuso por parte de pessoas físicas que a compõem. Estas se valem da personificação da pessoa jurídica para cometer atos fraudulentos contra credores, assegurados pelo fato de que seu patrimônio pessoal não será atingido. É nesse contexto que reclamam análise as associações, espécie de pessoa jurídica que, ao lado das sociedades, também merece o abrigo do art. 50 do Código Civil de 2002. Afinal de contas, os associados podem abusar da personalidade jurídica das associações, à semelhança dos sócios em relação às sociedades. Tal abuso pode e deve ser coibido à luz da Teoria da Desconsideração da Personalidade Jurídica.
2. A personalidade jurídica da associação
Herlita Barreira Custódio (1979) explica que as corporações beneficentes foram as primeiras a se identificarem com a noção de pessoa jurídica formulada na Idade Média, isto em virtude da influência da Igreja Católica. O esboço da pessoa jurídica como ente abstrato autônomo tomou forma no seio da Igreja Católica medieval (CUSTÓDIO, 1979). A Igreja mantinha, além de suas ocupações sacras, instituições ou locais voltados para a filantropia e benemerência, onde religiosos e nobres prestavam auxílio aos pobres e desvalidos. Com o decorrer do tempo, contudo, a idéia de personificação dos entes coletivos se desenvolveu e, ainda na época clássica, definiram-se duas categorias de pessoas jurídicas, ou seja, de universitates, portadoras de personalidade: as universitates personarum, representadas por agrupamentos de indivíduos, compreendendo os colégios, as associações de publicanos, os agrupamentos artesanais etc., e as universitates bonorum, formadas pelos estabelecimentos, que constituíam verdadeiras fundações. Observa Herlita Barreira Custódio (1979, p. 9) que "a personalidade, abrangendo a universitas, não se referia à societas, por ser esta encarada como um fenômeno puramente contratual, não passando de simples vínculo obrigacional entre os sócios, que eram considerados os verdadeiros sujeitos de direitos e obrigações", adicionando:
"De acordo com os dados históricos, as primeiras fundações de beneficência e de culto surgem na época cristã, encontrando-se, inicialmente, incorporadas e confundidas com a personalidade de Igreja. Posteriormente, estas fundações se tornam independentes, com a colaboração, também, do conceito de fundações autônomas pelo Direito canônico". (CUSTÓDIO, 1979, p. 9, grifo do autor).
Generalizado o reconhecimento de existência própria dos grupos de pessoas e bens, como ocorreu no século XIX, o status das associações já havia se sedimentado e, nos anos seguintes, o Direito Continental, do qual descende o brasileiro, conservou a associação em seu arcabouço jurídico, sempre abrangida nas discussões e mutações da pessoa jurídica.
O Código Civil, no artigo 44, enumera que são pessoas jurídicas de direito privado: as associações, as sociedades, as fundações, as organizações religiosas e os partidos políticos. As associações, portanto, são pessoas jurídicas de direito privado, reconhecidas na nossa legislação, ostentando contornos próprios e inconfundíveis.
Para o Código Civil pátrio, as associações são constituídas pela união de pessoas que se organizam para fins não econômicos, conforme se lê no texto no caput do artigo 53. Os civilistas não divergem do enunciado legal, pelo contrário, utilizam-no como ponto vestibular para verterem seus próprios conceitos. Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho (2004, p. 215) discorrem que "associações são entidades de direito privado, formadas pela união de indivíduos com o propósito de realizarem fins não-econômicos". Caio Mário da Silva Pereira (2000) segue a mesma trilha lecionando que, em pura doutrina, associação serve para denominar as pessoas jurídicas formadas por um grupo de pessoas, semelhante às sociedades, no entanto, com fins não econômicos.
No campo das associações, estão aquelas pessoas jurídicas de natureza civil, piedosa, científica, cultural e esportiva, e não se trata de questão meramente de denominação. O termo associação não é apenas rotulação ou qualquer coisa dessa ordem. É um juris, com todos os seus conceitos e definições, e com embasamento em vocação doutrinária para distinguir as sociedades das associações. Por isso Miguel Reale aponta ser fundamental, "por sua repercussão em todo o sistema, uma precisa distinção entre as pessoas jurídicas de fins não econômicos (associações e fundações) e as de escopo econômico (sociedade simples e sociedade empresária)". (REALE apud CUSTÓDIO, 1979, p. 39).
Associação é a reunião de várias pessoas para a realização de objetivos sem fins de lucro, dotada de personalidade jurídica. Os elementos que a caracterizam são: a reunião de diversas pessoas para a obtenção de um fim ideal; a ausência de finalidade lucrativa; o reconhecimento de sua personalidade por parte da autoridade competente, correspondendo às universitates personarum.
O aspecto da ausência de finalidade econômica das associações é de extrema relevância. Configura a característica juridicamente eleita na delimitação da associação, especialmente em contraste com as sociedades. Presente a finalidade econômica, a pessoa jurídica jamais pode ser classificada como associação. Destarte, conforme Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho (2004, p. 215-216), "em uma associação, os seus membros não pretendem partilhar lucros (pro labore), ou dividendos, como ocorre entre os sócios nas sociedades civis e mercantis. A receita gerada deve ser revertida em benefício da própria associação visando à melhoria de sua atividade".
No regime jurídico da associação, é impositiva a inexistência de intento lucrativo na sua constituição e existência. Os associados participam de uma associação por motivos egoísticos ou altruísticos sem, entretanto, obter acréscimo ao seu patrimônio pessoal. Associações não repartem lucros, não distribuem dividendos. A vedação legal é de incorporação dos ganhos da associação ao patrimônio dos associados, que não podem lucrar com as atividades da pessoa jurídica da qual fazem parte.
O Código Civil delimita a finalidade para a qual uma associação pode ser constituída, no sentido de que qualquer finalidade é possível – salvo fins ilícitos e paramilitares, vedados pela Constituição Federal (artigo 5º, XVII) – contanto que os associados não aufiram lucro por participarem da associação. Em vista da disciplina legal, as associações são criadas para lazer, prática de esportes, defesa de direitos coletivos, prática de caridade e outras atividades que beneficiam um determinado grupo de pessoas, sem propiciar-lhe renda.
Em função da sua natureza de pessoa jurídica, mediante personificação, a associação adquire aptidão para ser sujeito de direitos e obrigações. Além disso, goza de capacidade patrimonial e seus bens não se confundem com os bens dos associados. A associação passa a ter vida própria e autônoma, distinguindo-se dos seus membros, por ser uma nova unidade orgânica. Como observa Maria Helena Diniz (2003), cada um dos associados constituirá uma individualidade e a associação uma outra, tendo cada um seus direitos, deveres e bens. No desenrolar de suas atividades, a associação conta com patrimônio próprio e capacidade para ser sujeito em relações jurídicas e assumir obrigações, sem qualquer miscigenação com seus membros.
Infere-se do Código Civil que os membros da associação são denominados associados. Todos os nove artigos do capítulo que trata das associações utilizam esta expressão, deixando evidente quem são as pessoas unidas na constituição de uma associação. Os associados são as pessoas físicas ou jurídicas que atendem aos requisitos previstos no estatuto da associação e passam a ter direitos e deveres perante a corporação, integrando-a, em situação análoga à dos sócios perante a sociedade.
Os associados são aquelas pessoas que se unem e se organizam em torno de um fim não lucrativo, exercendo direitos outorgados pelo estatuto e gozando deveres conferidos neste instrumento. Elucidativa a definição de Paulo Sanchez Campos (2004, p. 79):
"Associado é a qualidade daquele que é sócio, isto é, daquele que, por meio de um acordo de vontade informal ou por meio de um instrumento jurídico (proposta associativa, contrato etc.), adere a um ente jurídico ou empreendimento ou mesmo à sua formação, passando a ostentar direitos e obrigações dessa condição constantes do ato de vontade, de seu estatuto ou da própria lei e, por isso, juridicamente exigíveis".
2.2. Distinção entre a associação e seus membros
O Direito brasileiro compreende a pessoa jurídica como tendo existência própria e real, com personalidade conferida pelo Direito. A conseqüência prática e, em última análise, a utilidade desta construção da pessoa jurídica é o regime jurídico observado como corolário da personificação. Suzy Koury (2003, p. 08) frisa que "uma vez personalizado, o ente passa a ter existência jurídica, adquire personalidade e atua no mundo jurídico da mesma forma que as demais pessoas jurídicas, não podendo o ordenamento que a personificou ignorar esta nova realidade ou afastar arbitrariamente os seus efeitos".
Percebe-se, portanto, que, embora o postulado básico do artigo 20 do Código Civil de 1916, segundo o qual "As pessoas jurídicas têm existência distinta da dos seus membros" não tenha sido repetido no Código Civil em vigor, continua válido doutrinariamente, conforme ponderam Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho (2004). De acordo com o entendimento de João Batista Lopes (2003), nessa mesma linha de pensamento, a distinção entre a pessoa jurídica e as pessoas físicas compõem o vetusto brocardo societas distat a singulis, perfeitamente aplicável hodiernamente.
Ora, não fosse essa distinção entre o singular e o coletivo, a pessoa jurídica perderia seu sentido jurídico. Personificado, o grupo passa a ser sujeito de direito, apto a praticar atos jurígenos e, neste diapasão, anuímos com Fábio Konder Comparato (1979, p. 268) quando afirma que "não se pode perder de vista é o fato de ser a personalização uma técnica jurídica utilizada para se atingirem determinados objetivos práticos – autonomia patrimonial, limitação ou supressão de responsabilidades individuais".
Ao ser criada a pessoa jurídica, ocorre uma cisão entre a sua existência e a de seus integrantes, bem como entre o acervo de bens de ambos. O ente coletivo desprende-se do seu criador e passa a gozar de plena autonomia perante o Direito, especialmente sob o aspecto patrimonial. Às associações aplica-se esta disciplina, porquanto são, por definição legal, pessoas jurídicas.
Diversamente do que ocorre no tocante às sociedades, o Código Civil não se preocupou em disciplinar a responsabilidade social das associações. Inexiste dispositivo legal estabelecendo em que situações os associados são responsáveis por obrigações das associações, se a responsabilidade é limitada, ilimitada, solidária ou subsidiária. Enquanto a norma fixa pormenorizadamente os limites e efeitos da constituição da sociedade em relação ao patrimônio dos sócios, não o faz quanto às associações. Qual a conseqüência desta omissão? Será que se trata do "silêncio eloqüente" do legislador dando a entender que não há limitação ou descaracterização de responsabilidade dos associados, reversamente ao previsto para as sociedades? De modo algum.
A inexistência de responsabilidade dos associados é fator inerente à existência da associação civil. Embora não haja disposição explícita sobre o assunto, definindo ou delimitando a responsabilidade dos associados por obrigações da associação, os efeitos da personificação redundam na intangibilidade do patrimônio particular dos associados perante os credores da associação. Ocupamo-nos em demonstrar que a constituição de uma pessoa jurídica tem, como principal efeito, a distinção entre o ente coletivo e seus membros, que passam a ter personalidades próprias e patrimônios inconfundíveis. Por outro lado, a associação é pessoa jurídica, tanto pela sua natureza jurídica, enquadrando-se na conceituação proposta, quanto por expressa disposição de lei. Afastar a separação patrimonial da associação seria uma contradição ontológica, porquanto quando falamos de associação, versamos sobre uma pessoa jurídica, cuja natureza impõe a incomunicabilidade de bens.
Não é aceitável que os associados, após constituírem uma associação com fins não econômicos, ou seja, contribuírem para a criação de uma pessoa jurídica com finalidade específica, da qual os associados não obterão nenhum acréscimo patrimonial, exponham seus bens ao risco de um insucesso da associação. Nesse sentido, opina Miguel Reale (1998, p. 234) que "se uma sociedade civil de intuitos recreativos falha em seus objetivos e se vê a braços com imensas dívidas, por estas não respondem os seus associados".
Verdade é que, consoante o artigo 46, inciso V, do Código Civil, o ato de registro da associação deve declarar se os membros respondem, ou não, subsidiariamente, pelas obrigações sociais. Assim sendo, é possível que o ato de constituição da associação atribua responsabilidade aos associados por obrigações da associação. A fixação de responsabilidade, contudo, é facultativa. Pode-se, destarte, assentar que não há qualquer responsabilidade dos membros, acarretando a inexistência de qualquer responsabilidade dos associados por obrigações da associação. Se a associação quedar insolvente, seus credores não poderão avançar no patrimônio pertencente exclusivamente aos associados.
De outra parte, o artigo 61 do Código Civil preconiza que, dissolvida a associação, o remanescente do seu patrimônio líquido, depois de deduzidas, se for o caso, as quotas ou frações ideais, será destinado a entidade de fins não econômicos. Aos associados é vedado obter lucro na criação, durante o funcionamento ou por meio da dissolução da associação. Isto reforça a separação patrimonial entre associação e associados. Os bens da associação são só dela e, mesmo após sua extinção, não podem ingressar no acervo de qualquer associado, antes serão entregues a outra pessoa jurídica com fins semelhantes.
É forçoso que os associados não fiquem pessoalmente obrigados perante credores da associação. De outro modo, ninguém se interessaria em criar uma associação ou nela ingressar. O instituto da associação tornar-se-ia inócuo e totalmente irrelevante para a coletividade, afinal, conforme argumenta Fábio Konder Comparato, "a função geral da pessoa jurídica consiste na criação de um centro de interesses autônomos em relação às pessoas que lhe deram origem, de modo que a estas não possam ser imputadas as condutas, os direitos e os deveres daquela". (COMPARATO apud KOURY, 2003, p. 66).
3. Teoria da desconsideração da personalidade jurídica
Nos auspícios do liberalismo econômico, a criação de pessoas jurídicas tornou-se comum. A distinção entre os membros e a pessoa jurídica diminuía o impacto dos riscos da atividade econômica. O patrimônio pessoal do sócio de uma empresa ficava resguardado em caso de insucesso do empreendimento a partir do momento em que o capital destinado à atividade empresarial fosse destacado.
A revolução industrial trouxe o aumento dos custos da atividade econômica: a mão-de-obra, antes escravizada, passou a ser paga; os meios-de-produção consumiam maiores investimentos; a demanda reclamava alta produtividade. A burguesia, então alçada ao poder, lançou mão da pessoa jurídica para viabilizar a produção, limitando a perda do patrimônio individual, unida à vantagem de união de esforços com outrem.
A partir do século XIX, verificou-se que a separação patrimonial e a exclusão de responsabilidade propiciavam situações injustas e, ocasionalmente, eram usadas como ferramenta para práticas escusas e locupletamento. Foi-se tornando cada vez maior a preocupação da doutrina e da jurisprudência com a utilização da pessoa jurídica para fins diversos daqueles tipicamente considerados pelos legisladores, razão pela qual passaram a buscar meios idôneos para reprimi-la. Leciona Suzy Elizabeth Koury (2003, p. 63) que dentre esses meios,
"VERRUCOLI recorda a chamada teoria da soberania, elaborada pelo alemão HAUSSMANN e desenvolvida na Itália por MOSSA, que, segundo ele, constitui um precedente da Disregard Doctrine. [...] Mas foi no âmbito da common law, principalmente a norte-americana, que se desenvolveu, inicialmente na jurisprudência, a desconsideração da personalidade jurídica". (grifos do autor)
A Teoria da Desconsideração da Personalidade Jurídica surgiu como instrumento de inibição e correção do uso indevido da pessoa jurídica. De acordo com Alexandre Couto Silva (2004, p. 444),
"A maioria dos doutrinadores acredita que a teoria da desconsideração da personalidade jurídica teve sua origem na Inglaterra, no caso Solomon v. Solomon & Co. Ltd, de 1897. Por outro lado, a primeira manifestação de que se tem notícia nos EUA foi no caso Bank of United States v. Deveaux, julgado pelo Juiz Marshal em 1809. O juiz Marshal, para preservar a jurisdição dos tribunais sobre as sociedades anônimas, proclamou os acionistas como parte integrante e seu direito e deveres como cidadãos reconhecidos para serem alcançados pela jurisdição, aplicando-se a teoria da desconsideração".
Na doutrina brasileira, a teoria ingressa no final dos anos 1960, numa conferência de Rubens Requião expondo seus estudos produzidos na Europa. Nela a teoria foi apresentada como a superação do conflito entre as soluções éticas, que questionam a autonomia patrimonial da pessoa jurídica para responsabilizar sempre os sócios, e as técnicas, que se apegam inflexivelmente ao primado da separação subjetiva das sociedades. Posteriormente positivada em várias leis especiais, a Teoria da Desconsideração da Personalidade Jurídica foi acolhida no Código Civil em vigor (Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002).
Marçal Justen Filho (1987, p. 57), em percuciente digressão, obtempera que a Teoria da Desconsideração da Personalidade Jurídica "é a ignorância, para casos concretos e sem retirar a validade de ato jurídico específico, dos efeitos da personificação jurídica validamente reconhecida a uma ou mais sociedades, a fim de evitar um resultado incompatível com a função da pessoa jurídica". E acrescenta que nela
"aprecia-se a situação jurídica tal como se pessoa jurídica não existisse, o que significa que se trata a sociedade e o sócio como se fossem uma mesma e única pessoa. Atribuem-se ao sócio ou à sociedade condutas (ou efeitos jurídicos de conduta) que, não fosse a desconsideração, seriam atribuídos (respectivamente) à sociedade ou ao sócio" (JUSTEN FILHO, 1987, p. 55).
Ao aplicar-se a desconsideração, não se discerne, no caso concreto, entre o membro e a pessoa jurídica da qual ele faz parte. Esse é, também, o entendimento de Fábio Ulhoa Coelho (2002, p. 40), para quem "pela teoria da desconsideração, o juiz pode deixar de aplicar as regras de separação patrimonial entre sociedade e sócios, ignorando a existência da pessoa jurídica num caso concreto, porque é necessário coibir a fraude perpetrada graças à manipulação de tais regras".
A desconsideração vem de encontro a toda a construção teórica, assentada nos diversos ordenamentos jurídicos, acerca da personificação da pessoa jurídica e seus corolários. O princípio universitas distat singuli é inobservado, e faz-se isto criteriosamente, como forma de combater o abuso da pessoa jurídica. Bem observa Fábio Ulhoa Coelho (2002) que algumas pessoas se valem desse postulado de distinção entre personalidade e patrimônio, não exatamente para preservar os ganhos já consolidados em seu patrimônio pessoal, o que seria absolutamente legítimo de acordo com o escopo da personificação, mas para se locupletar indevidamente com o descumprimento de obrigações. A justificativa para a aplicação da desconsideração reside no desvirtuamento dos fins da pessoa jurídica ou, ainda, o reconhecimento de situação concreta na qual a personalidade já foi descaracterizada, pois, como afirma com propriedade Rolf Serick, "quem nega sua personalidade é quem abusa dela. Quem luta contra semelhante desvirtuamento, afirma tal personalidade". (SERICK apud KOURY, 2003, p. 89). A personificação da pessoa jurídica não pode servir como anteparo de fraudes e de atos lesivos a interesses daqueles que mantêm relações jurídicas com a corporação ou membros e administradores desta, caracterizados pelo abuso da personalidade jurídica.
3.3. Abuso de personalidade jurídica
A teoria do abuso de direito foi transportada para o campo do direito comercial como diretriz para o funcionamento das sociedades. Afinal, a sociedade é espécie de pessoa jurídica utilizada nas atividades econômicas, sendo lícito, a quem quiser dedicar-se a este ramo, juntar-se a outros sócios e constituir uma corporação com tais fins. A licitude das sociedades não é irrestrita, pois, como enumera Rolf Serick,
"1. Em caso de abuso da forma da pessoa jurídica, traduzida na intenção de burlar a lei, subtrair-se às obrigações contratuais ou causar danos a terceiros, o juiz pode afastar-se da distinção entre sócio e pessoa jurídica.
2. Em princípio, não se pode desconhecer a autonomia subjetiva da pessoa jurídica só porque não se logrou realizar o escopo de uma norma ou a causa objetiva de um negócio jurídico."
(SERIK apud LOPES, 2003, p. 39, grifos do autor).
Salvo exceções previstas em lei, é direito subjetivo de toda pessoa ser membro ou administrador de uma pessoa jurídica, contudo, se esse direito é utilizado de modo incompatível com a finalidade para a qual a pessoa jurídica foi idealizada pelo ordenamento jurídico, temos a configuração do uso abusivo do direito legalmente sancionado. Segundo argumenta Alexandre Couto Silva (2004, p. 434),
"O abuso de direito é a utilização da pessoa jurídica de maneira contrária ao fundamento que a criou ou a reconheceu. Abuso de direito é o uso excessivo ou impróprio da pessoa jurídica em benefício dos sócios. O abuso da pessoa jurídica é possível, precisamente, graças ao caráter instrumental que tem o reconhecimento da personalidade jurídica como aparato técnico oferecido pela lei à obtenção de finalidade que os indivíduos por si sós não poderiam conseguir".
Do ponto de vista de Serick, acima transcrito, o abuso é traduzido na intenção de burlar a lei, subtrair-se às obrigações contratuais ou causar danos a terceiros, ou seja, na origem de sua elaboração científica, a teoria da desconsideração da personalidade jurídica fulcrou-se na teoria do abuso do direito. De fato, ressalta Fábio Konder Comparato (1979), larga corrente teórica e jurisprudencial tem procurado justificar a desconsideração da personalidade com as noções de abuso de direito.
O Código Civil elegeu especificamente o abuso da personalidade jurídica, calcado na teoria do abuso de direito, como pressuposto para a desconsideração da pessoa jurídica. Ao fazê-lo, o legislador preocupou-se em especificar duas situações que caracterizam o abuso da personalidade jurídica: o desvio de finalidade e a confusão patrimonial. Estas duas hipóteses estão expressamente previstas no texto do artigo 50, separadas pela conjunção alternativa "ou", transparecendo que não são cumulativas. Assim sendo, configurado o desvio de finalidade da pessoa jurídica ou, então, a confusão dos patrimônios da pessoa jurídica e dos seus membros ou administradores, há abuso da personalidade jurídica, autorizando a desconsideração.
3.3.1. Desvio de finalidade
Na dicção do artigo 50 do Código Civil, a primeira hipótese caracterizadora do abuso da personalidade jurídica é o desvio de finalidade, cujo significado é exposto por Fábio Konder Comparato (1979, p. 284):
"Falando-se de desvio, subtende-se, evidentemente, uma via direta que deixou de ser seguida, para se atingir um alvo ou se chegar a um resultado. Supõe-se, pois, antes de tudo, a falha de um objetivo ou finalidade, impostos pelo direito, ou aberratio finis legis, como foi dito em paráfrase a consagrada expressão do direito penal". (grifos do autor).
O desvio da finalidade da pessoa jurídica ocorre quando se faz uso deste instituto de maneira distorcida à luz do Direito. No ordenamento jurídico encontramos os contornos ditados para o funcionamento da pessoa jurídica, contudo é possível que estes não sejam obedecidos na prática. Se a via instituída não é observada e sucede uma deformidade subjetiva na existência da pessoa jurídica. Só é viável reconhecer o desvio de finalidade ou função através de exame dos atos concretos por meio dos quais se exterioriza o funcionamento da pessoa jurídica, pois, como assenta Marçal Justen Filho (1987, p.68),
"A desconsideração configura-se como um defeito de funcionalidade na atuação de uma pessoa jurídica. Passa a atuar conflitantemente com a função a ela atribuída pelo direito. Esse "defeito" é que se encontra na raiz da desconsideração. O defeito de que se pode falar reside não na estrutura do ato jurídico específico, mas na atividade funcional desempenhada pelo sujeito que praticou tal ato. Há um conflito entre a função abstratamente delineada pelo ordenamento e a atividade funcional concretamente desempenhada pela sociedade personificada". (grifos do autor).
O artigo 50 encerra o desvio de finalidade como circunstância que caracteriza o abuso da personalidade jurídica. Reforça Alexandre Couto Silva (2004, p. 460) que "deve-se entender que o desvio de finalidade estabelecido no novo Código Civil trata-se do desvio do fim para o qual o ordenamento jurídico reconheceu a personalidade à pessoa jurídica, ou seja, trata-se de abuso de direito".
3.3.2. Confusão patrimonial
Ao lado do desvio de finalidade, o artigo 50 do Código Civil previu a confusão patrimonial como hipótese de abuso da personalidade jurídica. Tal preceito deriva da teoria ou concepção objetiva da desconsideração da personalidade jurídica elaborada por Fábio Konder Comparato (1979, p. 333), colocada nos seguintes termos:
"A confusão patrimonial entre controlador e sociedade controlada é, portanto, o critério fundamental para a desconsideração da personalidade jurídica externa corporis. E compreende-se, facilmente, que assim seja, pois a pessoa jurídica nada mais é, afinal, do que uma técnica de separação patrimonial. Se o controlador, que é o maior interessado na manutenção desse princípio, descumpre-o na prática, não se vê bem porque os juízes haveriam de respeitá-lo, transformando-o, destarte, numa regra puramente unilateral". (grifos do autor).
Comparato escrevia sobre o poder de controle nas sociedades anônimas quando exprimiu a idéia de confusão patrimonial como hipótese de aplicação da desconsideração da personalidade jurídica. Esta tese evoluiu de modo a abarcar não só a confusão patrimonial entre controlador e sociedade controlada, mas também qualquer situação na qual os administradores ou sócios tivessem amalgamado seus bens pessoais com os bens de propriedade da sociedade.
A distinção de personalidade implica a separação de patrimônios, fator já devidamente comentado algures. Havendo procedimento que acarrete a indistinção entre o patrimônio da pessoa jurídica e dos seus membros, transparece a infringência ao principal efeito da personificação, entendida pelo Código Civil como caracterização de abuso da personalidade jurídica. Segundo argumenta Marçal Justen Filho (1987, p. 138): "a confusão patrimonial será corolário do abuso da pessoa jurídica. Ela foi causada por uma utilização abusiva da pessoa jurídica".
Em decorrência de administração ou utilização da pessoa jurídica em moldes desfigurados da sua interface normativa, é possível ocorrer confusão patrimonial. Neste caso, tal constatação pode ser invocada para fazer aplicar a desconsideração, desde que haja utilização inadequada e insatisfatória da pessoa jurídica, ou seja, desde que seja causa de uma desfunção. Neste sentido, assinala Alexandre Couto Silva (2004, p. 449) que
"a concepção objetiva, apresentada por Comparato, baseia-se na separação patrimonial destacando os fundamentos da desconsideração conforme negócios interna corporis – desvio de poder e fraude à lei – ou externa corporis da pessoa jurídica – confusão patrimonial entre titular do controle e sociedade controlada". (grifos do autor)
Assimilando tal construção teórica, o Código Civil entrevê na confusão patrimonial o abuso da personalidade jurídica, razão pela qual comina a hipótese com a possibilidade de desconsideração da personificação para que os bens dos administradores e integrantes sejam atingidos pelos efeitos de obrigações assumidas pelo ente coletivo.