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A desconsideração da personalidade jurídica aplicada às associações

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Agenda 19/06/2010 às 00:00

4. Aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica às associações

A teoria da desconsideração da personalidade jurídica sempre foi abordada como recurso jurídico aplicável às sociedades, posto que as sociedades são as entidades que transitam na seara comercial. A inserção da desconsideração da personalidade jurídica no corpo do Código Civil ampliou a abrangência da teoria respectiva, de modo a torná-la aplicável a relações jurídicas, negócios jurídicos e pessoas jurídicas alheias ao Direito Comercial, dentre as quais, as associações.

As associações são pessoas jurídicas de direito privado constituídas pela união de pessoas que se organizam para fins não econômicos. Dada sua natureza, a associação não foge dos fundamentos pelos quais a pessoa jurídica surgiu como instituto jurídico. Assim, resultam da necessidade gregária do homem e da conveniência em unir-se a outros semelhantes de modo a potencializar a capacidade de alcançar fins comuns que, de outro modo, seriam realizados a custo muito maior, ou simplesmente irrealizáveis.

Semelhantemente, por ser pessoa jurídica, a associação observa o regime de inconfundibilidade com seus membros e de separação patrimonial. Se a associação possui patrimônio próprio, ele é radicalmente distinto dos bens dos seus membros. Os direitos titularizados pela associação, bem como as obrigações por ela contraídas, não são extensíveis aos seus membros ou administradores.

O regime jurídico das pessoas jurídicas sofreu distorções observáveis na dinâmica das sociedades, devido a sua instrumentalidade no âmbito comercial. De mesma forma, as associações podem apresentar distorções em seu funcionamento, se administradores ou membros inescrupulosos utilizarem-na de maneira estranha ao intento fixado pelo ordenamento jurídico.

Rubens Requião (2002, p. 751) argumenta que "todos percebem que a personalidade jurídica pode vir a ser usada como anteparo de fraude, sobretudo para contornar as proibições estatutárias do exercício de comércio ou outras vedações legais". Não é só a sociedade que pode ser instrumento de perpetração de fraude, nem somente ela é passível de ter sua personalidade jurídica maculada por abuso. O abuso de direito pode ocorrer onde se apresentar um direito, assim como o abuso de personalidade jurídica pode ser encontrado em qualquer instituto que se valha da personificação, a exemplo das associações. Fábio Ulhoa Coelho (2002, p. 43) comenta:

"Quando, porém, a pessoa jurídica reveste forma associativa ou fundacional, ao seu integrante ou instituidor não é atribuído nenhum bem correspondente à respectiva participação na constituição do novo sujeito de direito. Quer dizer, o sócio da associação ou o instituidor da fundação, desde que mantenham controle total sobre os seus órgãos administrativos, podem concretizar com maior eficácia a fraude do desvio de bens".

Sua finalidade é especificamente delimitada pelo caput artigo 53 do Código Civil, a saber, "fins não econômicos". Em hipótese alguma as associações estão autorizadas a desempenhar atividades que redundem na propiciação de lucro para seus administradores ou associados. Entretanto, não é difícil vislumbrar uma associação repartindo periodicamente o saldo do seu caixa aos seus associados, ou proporcionando ganho patrimonial aos seus membros através de uma complexa ginástica contábil ou mesmo cínica e diretamente. É possível existir associações somente "de fachada" para permitir aos seus associados a execução de atividades profissionais de intuito inegavelmente lucrativo. Ou, ainda, o funcionamento da associação com bens pertencentes aos seus associados de maneira a aparentar vasto patrimônio aos seus credores, quando, na realidade, seu acervo de bens é mínimo ou inexistente. O bem senso e a experiência nos levam a admitir a possibilidade das associações serem objeto de abuso de personalidade jurídica, fato já percebido pelo legislador, tanto é que, para Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho (2004, p. 216), citando Miguel Reale:

"Preocupa-se a lei, portanto, em estabelecer o conteúdo mínimo necessário do estatuto de uma associação, visando, sobremaneira, a coibir abusos por parte de pessoas inescrupulosas, que constituem associações fraudulentas apenas para causar danos à Fazenda Pública ou a terceiros de boa-fé. [...] Daí as regras disciplinadoras da vida associativa em geral, com disposições especiais sobre as causas e a forma de exclusão de associados, bem como quanto à repressão de uso indevido da personalidade jurídica, quando esta for desviada de seus objetivos sócio-econômicos para a prática de atos ilícitos e abusivos".

Exemplificativamente, colhemos de um sítio eletrônico especializado em Ensino Superior uma matéria jornalística segundo o qual, das 1.762 Instituição de Ensino Superior privadas existentes hoje, estima-se que apenas 400 a 500 delas sejam empresas com finalidades lucrativas. A maior parte das destas são associações "sem fins lucrativos", pois até 1997, esta era a única modalidade jurídica permitida pelo governo para o setor, contudo, a maioria delas tem um "dono" que não apenas detém o poder total sobre a instituição, como também articula todas as maneiras possíveis de canalizar o lucro da instituição em benefício pessoal. [01] Este é apenas um registro de hipótese na qual identificamos traços de abuso da personalidade jurídica por desvio de finalidade relativo às associações e não nos ocuparemos em arrolar outros exemplos, haja vista a plausibilidade de desvio de finalidade das associações independentemente do motivo de suas constituições.

Alexandre Ferreira de Assumpção Alves (2000, p. 254) ressalta que "algumas sociedades, principalmente aqueles de fins culturais e religiosos, são constituídas sem capital ou este tem valor simbólico" frase cujo teor menciona nuança deveras relevante na análise das associações em sua função instrumental: insuficiência patrimonial das associações. Além dos riscos de desvirtuamento de uso indevido, a associação pode padecer desta deficiência endógena de sintomas imperceptíveis, mas conseqüências daninhas.

Devido ao seu caráter não econômico, o ordenamento jurídico não impõe qualquer patamar mínimo de recursos financeiros para que uma associação seja criada ou funcione. É possível pessoas se unirem e constituírem uma associação sem desembolsar qualquer quantia, nem destinar quaisquer bens para a composição do patrimônio da associação. Neste caso, as atividades da corporação, muito provavelmente, serão realizadas mediante a utilização de bens de propriedade dos membros, situação propícia para o estabelecimento de confusão patrimonial.

A associação pode ter sua sede em um imóvel valiosíssimo e uma infra-estrutura excelente sem que tal patrimônio lhe pertença, em razão de ter sido cedido pelos associados. Aos olhos de terceiros, a associação parece ser proprietária de inúmeros bens, quando na realidade seu patrimônio é nulo ou ocorre um intercambiamento entre o acervo da corporação e de seus membros. Em tais circunstâncias a confusão patrimonial é inevitável.

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A par destas constatações, percebe-se a real possibilidade das associações, como pessoas jurídicas de direito privado que são, enveredarem pela trilha do abuso da personalidade jurídica, configurado pela confusão patrimonial. Desse modo, não hesitamos em afirmar que a teoria da desconsideração pode e deve ser usada como instrumento de correção do abuso.

A teoria da desconsideração não pode ser tratada de forma estática, nem mesmo pelo fato de vir prevista em norma escrita. A positivação do instituto não deve implicar sua fossilização, reputando-o perfeito e acabado, sob pena de torná-lo inadequado às novas realidades. Mais ainda, a teoria da desconsideração da personalidade jurídica surgiu do inconformismo perante situações injustas e redundou no questionamento do dogma da separação radical entre a corporação e seus integrantes, relativizando o princípio segundo o qual as pessoas jurídicas têm existência distinta da dos seus membros. É inconcebível que seja posta, agora, como um novo dogma, aplicável unicamente às sociedades por ter sido lapidado nos arraiais comercialistas.

Desconsiderar a personalidade jurídica é o remédio que a tecnologia do Direito instituiu em face do abuso da pessoa jurídica e não apenas das sociedades. Sua aplicação imediata às sociedades é conjuntural e não reflete com exatidão a abrangência da teoria, afinal, como expõe Alexandre Couto Silva (2004, p. 431), "a proteção do próprio instituto através da teoria da desconsideração da personalidade jurídica que, sem negar sua existência, supera a pessoa jurídica, atingindo em casos particulares a pessoa do sócio (pessoa natural ou jurídica)".

A teoria da desconsideração da personalidade jurídica visa preservar o espírito da pessoa jurídica. Por isso, o jurista alemão Rolf Serick afirma que "a desconsideração da personalidade jurídica poderá ser aplicada em qualquer país em que se apresente a separação incisiva entre pessoa jurídica e os membros que a compõem, colocando o problema de que essa separação radical pode conduzir a resultados injustos". (SERICK apud SILVA, 2004, p. 451).

A possibilidade de abuso da personalidade jurídica da associação ocorre, em parte, devido à semelhança estrutural entre associação e sociedade. Ambas são corporações, ou seja, resultam da união de pessoas, segundo escreve Herlita Barreira Custódio (1979, p. 36):

"Do latim corporatio, onis, a corporação, no âmbito civil, compreende agremiação ou união de pessoas, subordinadas a uma regra, estatuto ou compromisso, para determinado fim, ou ligadas por interesse comum. De acordo com a teoria de abalizados mestres, estas entidades se encontram implicitamente previstas no Direito Privado, uma vez que constituem gênero, de que as sociedades e as associações são espécies". (grifos do autor).

As corporações também são denominadas pela doutrina como universitas personarum, tendo órgãos deliberativos e administradores. A similaridade estrutural é de tal ordem que o Código Civil prevê a aplicação subsidiária às sociedades das disposições concernentes às associações (artigo 44, § 2º). Esta similaridade dá azo a abusos da personalidade jurídica em uma e outra espécie de corporação.

É o Estado que personifica a associação, a exemplo das sociedades, e este mesmo Estado tem o dever de relativizar a personalidade das associações caso identifique o seu desvirtuamento, isto através da teoria da desconsideração. É o entendimento de Rubens Requião (2002, p. 754), para quem:

"se a personalidade jurídica constitui uma criação da lei, como concessão do Estado objetivando, como diz Cunha Gonçalves, "a realização de um fim" nada mais procedente do que se reconhecer ao Estado, através de sua justiça, a faculdade de verificar se o direito concedido está sendo adequadamente usado. A personalidade jurídica passa a ser considerada doutrinariamente um direito relativo, permitindo ao juiz penetrar o véu da personalidade para coibir os abusos ou condenar a fraude através de seu uso".

No caso das associações, parece-nos que o abuso da personalidade jurídica adquire uma dimensão axiológica mais preocupante, haja vista os fins não econômicos impostos pelo ordenamento jurídico. O Estado vê na associação um agrupamento permeado de ideais nobres, extremamente úteis para a sociedade, onde se fomenta a filantropia, a cultura, a educação, o bem-estar coletivo, sem quaisquer intenções lucrativas. Tanto que a Constituição Federal, no artigo 150, VI, "c", veda a instituição de impostos sobre o patrimônio, renda ou serviços das instituições de educação e de assistência social, sem fins lucrativos, atendidos os requisitos de lei.

A associação é, ainda, consagrada como agrupamento inerente a um direito fundamental assegurado em nosso Estado Democrático de Direito. O artigo 5º, no inciso XVII, estabelece que é plena a liberdade de associação para fins lícitos, dispensando prévia autorização para criação e vedando interferência estatal (inciso XVIII), proibindo a dissolução compulsória ou suspensão de atividades, salvo por decisão judicial (inciso XIX) e conferindo-lhe legitimidade para representar seus filiados judicialmente ou extrajudicialmente. Quem abusa da personalidade jurídica de uma associação, macula um dos direitos fundamentais contidos na Lei Magna. É inaceitável que o Estado contemple passivamente a distorção de uma entidade deste quilate jurídico, sem lançar mão das ferramentas de coibição disponíveis no próprio ordenamento jurídico.

A teoria da desconsideração da personalidade jurídica vem servindo adequadamente diante do abuso de sociedades. Um olhar crítico revela, no entanto, ser imprescindível outra perspectiva, ou mesmo uma remodelagem da citada teoria, fitando inseri-la na realidade social do século XXI. Isto requer sua aplicação às associações, além de uma consistente hermenêutica do artigo 50 do Código Civil, que é o fundamento legal da desconsideração da personalidade jurídica.

4.2. Hermenêutica do artigo 50 do Código Civil

4.2.1. Interpretação gramatical

O Código Civil dispôs sobre a desconsideração da personalidade jurídica nos termos seguintes:

Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica.

Inicialmente, encontramos o comando legal versando sobre abuso da personalidade jurídica. Ora, já registramos que as associações possuem personalidade jurídica, haja vista serem pessoas jurídicas de direito privado constituídas pela união de pessoas organizadas para fins não econômicos, apresentando distinção entre a corporação e seus associados. Na parte final do artigo, lemos que os efeitos de obrigações podem ser estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica. As associações possuem órgãos de representação denominados administradores no Código Civil. Até aqui, temos por pacífica a aplicabilidade do artigo 50 às associações, afinal de contas elas são pessoas jurídicas, têm personalidade jurídica e têm administradores. Outrossim, parece-nos que a palavra sócio é utilizada como sinônimo de associados, além de encerrar um significado mais amplo do que aquele instantaneamente apreendido sem reflexão mais detida.

Socorrendo-nos em dois do mais reconhecidos dicionários da língua portuguesa, encontramos que o vocábulo sócio significa Membro de associação ou clube, associado, societário. (FERREIRA, 1986, p. 1602) e, ainda, aquele que ingressou em uma associação ou clube; associado, afiliado, membro (HOUAISS, 2001, p. 2596).

Em ambos percebemos que o verbete tem o mesmo sentido que associado, membros de associação. Sócio e associado na linguagem informal e leiga são sinônimos. Ademais, na linguagem técnico-jurídica, sócio pode ter sentido amplo, conforme registra De Plácido e Silva em seu Vocabulário Jurídico ao referir que sócio, designa, em sentido amplo, a pessoa que faz parte, que participa ou é membro de uma sociedade. (SILVA, 2003, p. 1319, grifos do autor), entendo nos termos seguintes:

Sociedade. Do latim societas (associação, reunião, comunidade de interesses), gramaticalmente e em sentido amplo, sociedade significa reunião, agrupamento, ou agremiação de pessoas, na intenção de realizar um fim, ou de cumprir um objetivo de interesse comum, para o qual todos devem cooperar, ou trabalhar. [...] Nesta lata significação, sociedade e associação, correntemente, aplicam-se em sentido equivalente. No entanto, juridicamente, e em sentido estrito, convém acentuar, sociedade e associação têm finalidades distintas que bem as identifica. (SILVA, 2003, p. 1311, grifos do autor).

Sócio, em sentido lato, indica os membros de sociedade que, por sua vez, em sentido amplo, significa sociedade e associação. Neste mesmo sentido, diz-nos Maria Helena Diniz (2003, p. 215) que "a sociedade lato sensu seria o gênero, que compreenderia as espécies, isto é, sociedade stricto sensu e associação, estando, por isso, submetidas ao mesmo regime normativo, com a ressalva do art. 61, §§ 1º e 2º, do Código Civil, atinentes ao destino dos bens da associação". (grifos do autor). Portanto, sócios pode, sem maiores embargos, significar associados. O artigo 50, quando fala em "sócios da pessoa jurídica", sob certo aspecto, lança mão de uma sinédoque para referir-se a toda pessoa física ou jurídica que seja membro de uma pessoa jurídica. Isto pela impossibilidade de citar todas as figuras jurídicas abrangidas pelo dispositivo, ou ainda, pela inconveniência em fazê-lo, o que tornaria o texto legal assaz extenso e inútil.

4.2.2. Interpretação sistemática

Se a desconsideração da personalidade jurídica fosse aplicável exclusivamente às sociedades, o texto do artigo 50 teria sido inserido no Capítulo Único, do Título II, do Livro II da Parte Especial do Código Civil, que trata das disposições gerais sobre as sociedades. O fato do Código ter previsto a teoria da desconsideração da personalidade jurídica no título da parte geral que regula as pessoas jurídicas, por si só, evidencia a intenção do legislador de estender a aplicação da desconsideração a qualquer pessoa jurídica ou, ao menos, a possibilidade de fazê-lo.

A disciplina do começo da existência da pessoa jurídica está nos artigos 45 e 46 do Código Civil. Representação da pessoa jurídica é objeto dos artigos 47, 48 e 49. No artigo 51 encontramos disposições sobre o fim da existência da pessoa jurídica e o artigo 52 prevê a aplicação às pessoas jurídicas, no que couber, da proteção dos direitos de personalidade. Percebe-se que os artigos citados versam sobre a personalidade das pessoas jurídicas (o início da personalidade, o órgão de representação, o fim da personalidade e sua proteção) e são integralmente aplicáveis às associações.

Somos forçados a concluir que o artigo 50, que trata do abuso da personalidade da pessoa jurídica, consta da aludida seqüência de artigos, por conseguinte, em atenção à lógica do sistema, a desconsideração da personalidade jurídica é aplicável às associações, do mesmo modo que os demais dispositivos acerca da personalidade da pessoa jurídica.

4.2.3. Interpretação teleológica

Marçal Justen Filho (1987, p. 57) elucida que "o que justifica toda a teoria da desconsideração é o risco de uma utilização anômala do regime correspondente à pessoa jurídica acarretar um resultado indesejável". Não há como negar que a idéia da busca da justiça é fator preponderante para aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica, consoante assevera Alexandre Couto Silva (2000). Dessa maneira, concluímos que a finalidade do artigo 50 é autorizar o afastamento da personificação, em caso de abuso da personalidade jurídica, imputando os atos e obrigações da pessoa jurídica aos seus administradores ou membros, com vistas a inibir e sancionar o desvio de finalidade do ente coletivo, bem como a confusão patrimonial.

Ousamos afirmar que a desconsideração independe da espécie de pessoa jurídica em questão. Seja sociedade, seja associação, se houver abuso da personalidade jurídica, a finalidade do artigo 50 do Código Civil é possibilitar a desconsideração, pois só assim o espírito do dispositivo será alcançado. Se admitirmos ser o artigo 50 inaplicável às associações basta um grupo de pessoas constituir uma associação para estar a salvo da desconsideração, mesmo utilizando a associação para obter lucro; afinal de contas, retirar lucro de uma associação é desviar sua finalidade, fato que não autorizaria a desconsideração da associação. De acordo com Luis Recaséns Siches,

"O juiz deve verificar os resultados práticos que a aplicação da norma produziria em determinadas situações reais. Sempre que esses resultados mostrarem-se de acordo com as valorações que inspiram a ordem jurídica positiva, deve-se aplicar a norma em questão. Caso contrário, ou seja, quando a norma ao ser aplicada produzir efeitos que contradigam os valores conforme os quais se modelou a ordem jurídica, tal norma não deve ser aplicada à situação concreta". (SICHES apud KOURY, 2003, p. 77).

O fim do artigo comentado é ordenar o uso da pessoa jurídica em moldes consentâneos com o ideal do Direito e o seu escopo social, restando frustrado se tolhermos seu alcance, excluindo as associações da sua incidência.

4.2.4.Interpretação histórica

A teoria é instituto jurídico forjado pelo Direito no contexto do liberalismo econômico, que acarretou a proliferação das sociedades como instrumento para exercício de atividades econômicas. O Estado liberal do fim século XIX e início do século XX conferiu às pessoas o direito subjetivo de constituir e integrar entes coletivos sob o pretexto de fomentar o progresso econômico. A espécie de pessoa jurídica mais adequada a este desiderato era a sociedade.

É possível e provável que, quando da sistematização da teoria da desconsideração da personalidade jurídica, Serick não tenha vislumbrado a possibilidade de abuso das associações. Do mesmo modo, a jurisprudência norte-americana e inglesa parecem não ter se deparado com casos de desvio de pessoa jurídica sem fins econômicos. A hipótese torna-se mais palpável ao lembrarmos que, no final do século XIX e início do século XX, as transformações econômicas e sociais resultantes da Revolução Industrial e do fortalecimento do Estado Liberal trouxeram a disseminação das pessoas jurídicas com fins econômicos.

As associações eram corporações sem maior relevância na sociedade industrial. Os valores cultivados pela sociedade eram produtividade, geração de riqueza, desenvolvimento, valorização dos meios de produção e conceitos do mesmo quilate. Não havia circunstâncias favoráveis, nem incentivos, nem vontade social para criação de associações, porquanto a finalidade desta espécie de pessoa jurídica recebia pouca atenção do Estado e da coletividade.

Durante o século XX, as crises econômicas, as guerras e o agravamento das desigualdades sociais tornaram obsoleto o liberalismo e o Estado passou de garantidor das liberdades a promotor das liberdades e do bem-estar dos indivíduos. Posteriormente, ocorreu nova modificação e o Estado dirigiu sua atenção, também, para os interesses e necessidades coletivas, não titularizados pelas pessoas individualmente.

A título de melhor compreensão acerca das dimensões dos direitos fundamentais, valemo-nos do entendimento de Ingo Wolfgang Sarlet (2001), para quem a 1ª dimensão engloba os direitos de cunho negativo, posto que dirigidos a uma abstenção por parte dos poderes públicos (liberdade perante o Estado), garantindo os direitos civis e políticos. A 2ª dimensão é tida como dimensão positiva dos direitos em que o Estado deveria intervir para assegurá-los (liberdade por intermédio do Estado). Os indivíduos passaram a gozar de direitos a prestações sociais estatais, tais como saúde, assistência social, trabalho, etc. Na 3ª dimensão ganham destaque os direitos de fraternidade ou de solidariedade destinados à proteção de grupos humanos. A titularidade de tais direitos, diferente dos das gerações anteriores é, via de regra, coletiva ou difusa. [02]

Nessa terceira dimensão houve fortalecimento e proliferação das associações, devido a sua identificação com os direitos enfatizados naquela. As sociedades não se enquadram na promoção do direito ao meio-ambiente equilibrado, direito dos consumidores, à educação e outros relacionados à fraternidade e à solidariedade. Já o cunho não econômico das associações "cai como uma luva" no contexto de ênfase dos direitos da terceira dimensão. Estes são os que têm ganhado espaço no Brasil a partir do final do século passado. Por isso, revela Herlita Barreira Custódio (1979, p. 53) que "hodiernamente, o problema das associações vem apresentando traços característicos, dado o aparecimento de grande número de entidades em todos os setores da vida".

Na obra As Fundações Privadas e Associações sem Fins Lucrativos no Brasil 2002 (IBGE, 2004), contendo coleta e análise de dados realizadas pelo IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística acerca das associações, conclui, dentre outros pontos, que a grande maioria (62%) das associações sem fins lucrativos foi criada a partir dos anos 90, sendo que as sediadas no Norte e Nordeste são bem mais jovens que as do Sul e Sudeste. A cada década se acelera o ritmo de crescimento, que foi de 88% de 1970 para 1980; de 124% de 1980 para 1990 e, apenas de 1996 para 2002, de 157% [03].

O destaque das associações é recentíssimo, a par dos resultados do levantamento supra referido. Assim sendo, os pioneiros no estudo da teoria da desconsideração da personalidade jurídica, bem como o legislador do Código Civil, não poderiam levá-las em conta. Indubitavelmente, se conseguissem antever a presença maciça das associações na sociedade brasileira, considerariam a possibilidade de abuso destas pessoas jurídicas, adiantando-se no regramento desta hipótese. Tal digressão faz-nos concluir que a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica às associações é compatível com a evolução histórica desta teoria.

Sobre o autor
Jairo Cavalcanti Vieira

Procurador Geral do Ministério Público de Contas do Maranhão, Especialista em Direito Civil

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VIEIRA, Jairo Cavalcanti. A desconsideração da personalidade jurídica aplicada às associações. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2544, 19 jun. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/15064. Acesso em: 23 dez. 2024.

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