Nos tribunais brasileiros, tem sido cada vez mais frequente a discussão acerca de um tema de notável relevância: a recusa de certos pacientes, motivada por convicções religiosas, à submissão a certos tratamentos ou intervenções médicas. Chama a atenção, em especial, o caso das Testemunhas de Jeová, que não admitem receber transfusões de sangue, nem mesmo nas situações que impliquem risco de vida.
As decisões judiciais sobre o tema oscilam. Recentemente, divulgou-se o teor da sentença proferida pelo juiz da 2ª Vara da Fazenda Pública do Distrito Federal, que autorizou médicos da rede pública de saúde a realizarem transfusões de sangue em uma mulher, mesmo contra a vontade da própria paciente. Para o magistrado, "entre o direito à liberdade religiosa e o direito à vida, deve prevalecer o direito à vida". No caso, a paciente estava inconsciente, e laudos médicos comprovaram que ela corria risco de vida, caso não recebesse tratamento neurocirúrgico de urgência, incluindo transfusões de sangue. Os médicos, contudo, tomaram ciência de uma procuração assinada e reconhecida em cartório, em 2006, em que a paciente informou, expressamente, seu desejo de não receber sangue de outras pessoas. Assim, diante do estado de inconsciência da paciente, seus procuradores levaram adiante o seu desejo de não sofrer qualquer tipo de transfusão de sangue.
Ao solucionar o conflito, o magistrado lembrou que a vida é "bem inviolável, máxime do nosso ordenamento e protegida pelo Estado com prioridade". Com base nestes argumentos, o juiz concedeu alvará judicial à filha da paciente, para que esta pudesse ser atendida imediatamente.
Cabe analisar a questão à luz do ordenamento brasileiro. Num primeiro momento, verifica-se que a Constituição da República, em seu art. 5º, alça ao status de fundamentais os direitos à vida e à liberdade de crença.
Além disso, é imprescindível averiguar a regulamentação que o Código Civil confere à questão. Segundo estabelece seu art. 15, "ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica". O que se tem, pois, é que não se pode impor a alguém a prática de um ato que encerre grave risco contra a sua própria vida. Sendo esta o bem maior de todos, caberá ao paciente decidir, livre de coação, se pretende submeter-se ou não a determinado tratamento ou cirurgia.
O dispositivo contido no Código Civil, no entanto, não basta para solucionar os complexos problemas que podem derivar das situações que envolvam risco de vida. Por mais que se possa afirmar que quaisquer tratamentos médicos ou intervenções cirúrgicas apresentem algum risco de vida inerente, deve-se presumir que não há na lei palavras ou expressões inúteis. Assim, quando o Código Civil se reporta ao "risco de vida", quer parecer que estamos a lidar com certos tipos de procedimentos que corriqueiramente tragam consideráveis risco à vida do paciente, o que pode se mostrar inclusive por estatísticas. Sendo assim, não cabe dizer que uma simples transfusão de sangue possa ser enquadrada na idéia de "risco de vida" a que alude a lei, embora se saiba que, em determinados casos, tais transfusões podem acarretar a contração de certos vírus, por exemplo.
Seria possível, então, extrair argumento a contrario sensu deste preceito e afirmar que, não havendo risco considerável de vida, caberá a submissão forçada do paciente ao ato médico? Apesar de todas as conhecidas dissensões, impõe-se resposta negativa. Ainda que a recusa à submissão a procedimento que não traga riscos consideráveis à vida do paciente é que venha a colocá-lo, aí sim, em iminente risco de vida, há que ter em conta a liberdade e os valores de cada pessoa. Num Estado Democrático de Direito, pluralista e laico por definição, cabe conservar as invioláveis liberdades de consciência e de crença. Aliás, não se diga que o fato de vivermos num Estado laico significa desconsiderar as crenças individuais. O raciocínio correto é o oposto: a laicidade significa que não há a imposição de uma religião "oficial" a ser seguida, donde decorre que todas as religiões e convicções particulares devem ser toleradas e respeitadas.
Para além disso, considere-se que as pessoas não são protegidas apenas em sua vida e integridade física, cabendo tutelar, de igual modo, a integridade psíquica, permitindo-se ao seu titular o resguardo da inviolabilidade de suas mais íntimas convicções. Impor ao paciente o dever de ter de passar o resto de seus dias convivendo com a idéia de ter traído suas próprias crenças é violar gravemente a sua integridade psíquica, ainda que tal se dê a pretexto de preservar outros bens ou valores, em princípio, mais elevados. Corre-se mesmo o risco de gerar graves perturbações psicológicas à pessoa, sem prejuízo de eventualmente se provocar seu afastamento do convívio entre seus familiares e amigos.
Numa sociedade multiculturalista, impõe-se o respeito às liberdades individuais. Por isso, mesmo que se possa validamente apontar que a aplicação do princípio da ponderação nos leva a pender para a preservação da vida, sempre que este estiver em pauta, há que considerar outros aspectos, que permitam à pessoa desenvolver a realizar sua personalidade conforme seus próprios desígnios. Entra em cena a noção de autodeterminação, no sentido de todos são livres para buscar sua realização, sem que se possa apontar um protótipo de "vida ideal", imutável à luz do tempo e do espaço. Trata-se da consagração da liberdade e da individualidade, sendo natural do ser humano ser e tornar-se o que bem entender.
Cumpre ressaltar que, nos casos das Testemunhas de Jeová, é perfeitamente possível aplicar tratamentos alternativos, que não envolvam a transfusão de sangue. A manifestação de vontade do paciente, nestas circunstâncias, deve ser observada e respeitada, ainda que manifestada por meio de um "testamento vital", que consiste num documento, devidamente assinado, em que o interessado juridicamente capaz declara quais tipos de tratamentos médicos aceita ou rejeita, o que deve ser obedecido nos casos futuros em que se encontre em situação que o impossibilite de manifestar sua vontade, como, por exemplo, o coma.
Não sucumbe, pois, a noção de que, em princípio, cabe proclamar a primazia da vida sobre os demais direitos. Apenas se defende que, aliada à proteção à vida, sejam tuteladas também a pessoa e as suas liberdades e convicções, evitando-se, com isso, violações à consciência de cada um.