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Autonomia municipal no Brasil e na Alemanha.

Uma visão comparativa

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Agenda 01/12/1999 às 01:00

7. A garantia constitucional e a definição da autonomia municipal

A equiparação formal dos municípios brasileiros com os estados e a União mediante a sua elevação para a terceira esfera estatal da Federação foi ainda fortalecida pelos dispositivos dos Art. 29 e 30 da Constituição Federal. A Constituição Brasileira concede, no seu Art. 30, aos entes locais áreas específicas de competência.

O Art. 24 da Carta Brasileira, que trata das competências legislativas concorrentes, não inclui os municípios (82), aos quais, segundo o Art. 30, II, CF "compete suplementar a legislação federal e a estadual no que couber". O exercício desta competência exige a existência de uma norma superior e de uma lacuna da mesma, que deve ser preenchida, atendendo, assim, a um interesse local.(83) Muitas vezes, a União e os estados demoram de reconhecer problemas e não reagem dentro de prazos toleráveis. Enquanto não existem leis superiores, os municípios podem agir numa maneira mais livre e emitir, na base do Art. 30, inciso II, CF, normas em áreas que não fazem parte das suas competências expressas. Nesses casos, os entes locais são capazes de "antecipar" os dispositivos dos níveis estatais superiores.

Nessa altura, pode se tornar difícil a demarcação entre os incisos II e I do Art. 30 CF. Todavia, consideramos de importância reduzida a distinção exata entre essas duas normas, visto que elas se complementam, sendo sempre o ponto nodal da questão, nos dois casos, a presença de um interesse local. Ao mesmo tempo, é claro que não pode ser suplementada toda legislação estadual e federal, visto que há matérias cujo tratamento em nível municipal seria absolutamente desconcernante.(84) Atualmente o município pode, mesmo em assuntos sobre os quais ele possuía, antes de 1988, nenhuma competência, suprir omissões da legislação superior.(85)

Importância suprema possui o Art. 30, inciso I, da Constituição Federal; segundo este, "compete aos municípios legislar sobre assuntos de interesse local". Essa norma concede aos entes locais uma competência legislativa exclusiva nas áreas onde predomine o interesse local. O conceito do "interesse local" ocupa uma posição central para a definição do conteúdo da autonomia municipal no Brasil. A predominância, e não a exclusividade, continua sendo a justa interpretação desse novo conceito.(86)

O conceito do "interesse local" é de fundamental importância, não somente para a limitação das competências legislativas, mas também na atribuição das responsabilidades pela prestação dos serviços estatais, onde desempenha papel decisivo. A Constituição brasileira prevê, como as Cartas anteriores, ao lado da competência municipal de legislar (Art. 30, I, II) a de prestar serviços públicos de interesse local (Art. 30, V).

Enquanto nas Leis Maiores do Brasil sempre houve essa distinção expressa entre as duas áreas da ação legislativa e administrativa da esfera local, a Lei Fundamental da Alemanha entende o poder do município para produzir normas legais (Satzungsgewalt) como "complementação instrumental do cumprimento auto-responsável das suas tarefas locais".(87) Na base dessa teoria, a competência normativa não foi especialmente mencionada pela Lei Fundamental Alemã.

Na verdade, a prestação dos serviços públicos municipais se realiza através da execução das leis locais a respeito, visto que, no Estado de Direito moderno, o poder público desenvolve quase todas as suas ações e atividades com base em leis.(88) Os serviços municipais constituem verdadeiras tarefas cujo cumprimento por parte das prefeituras garante a organização ordenada do dia-a-dia das populações nas cidades e vilas rurais.

A expressão "interesse local" do novo texto constitucional brasileiro (Art. 30, I) veio a substituir o conceito tradicional do "peculiar interesse", que foi introduzido pela Constituição republicana de 1891. Vale frisar, contudo, que, já antes de 1988, muitos autores costumavam usar a expressão conjunta do peculiar interesse local. Portanto, a doutrina é quase pacífica que o conteúdo material desse conceito não foi alterado e que "a mudança da letra não eqüivale a uma mudança do espírito da Constituição".(89)

O conceito do peculiar interesse local nunca foi definido de uma maneira satisfatória pela doutrina e jurisprudência brasileiras, continuando pouco esclarecido o seu significado dentro do sistema complexo das competências privativas e concorrentes da União e do estado erguido pela nova Carta Magna.

A maior parte da doutrina se limita, até hoje, a declarar que o interesse local deve ser entendido como predominante e não exclusivo, sem, no entanto, fornecer critérios válidos para definir o que seja um "interesse local predominante" no caso concreto.(90) Outros autores o consideram "critério vago que nada define de positivo e cujos limites ficaram nebulosos" e que o termo "quase não presta mais para uma aplicação num caso concreto".(91)

A expressão do interesse local é semelhante àquela usada pela Lei Fundamental Alemã, que - diferente da situação no Brasil - não atribui competências específicas aos entes locais, mas contém no seu Art. 28, II, uma atribuição global de competência, que garante aos municípios apenas genericamente o direito de "regularem todos os assuntos da comunidade local".

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No entanto, ao contrário da situação alemã, no Brasil, durante as últimas décadas, chegaram pouquíssimas ações judiciais aos crivos dos tribunais. Ademais, a esmagadora maioria dos municípios brasileiros se encontra numa situação financeira precaríssima, fazendo com que as prefeituras e câmaras dificilmente recusem a intromissão das administrações estaduais ou órgãos federais nos seus assuntos locais, desde que esta seja acompanhada por medidas de ajuda técnica e financeira. Muitas vezes, os entes locais até agradecem tais "ingerências" para se livrar de tarefas caras e politicamente pouco interessantes como o saneamento básico.

Com toda razão perguntou Álvaro Pessoa: "Qual prefeito está disposto a bancar uma briga com o Governador de Estado para definir em matéria de peculiar interesse até onde vai o peculiar interesse do seu município?".(92)

No Brasil, seria necessário também uma atuação mais expressiva das Associações Municipais regionais e nacionais (Kommunale Spitzenverbände), que na Alemanha tradicionalmente possuem uma força política bastante elevada para representar com êxito os interesses municipais junto aos órgãos estaduais e federais. Essas associações dispõem de uma boa estrutura administrativa capaz de prestar uma assistência jurídica eficiente aos seus membros e também encorajam as cidades e comunas rurais a reivindicarem o pleno respeito da sua autonomia ajudando-os até, se for imprescindível, nos litígios contra o estado ou a União em defesa da sua autonomia.

Vale enfatizar, no entanto, que, ao contrário do ordenamento jurídico brasileiro, a delimitação da autonomia local na Alemanha, segundo o Art. 28, inciso II, da Lei Fundamental, deve ser efetuada expressamente "nos moldes das leis" (im Rahmen der Gesetze), ou seja, através da legislação superior, preponderantemente a estadual. Na base dessa ampla "liberdade de formação legislatória"(93), os estados federados alemães, ao editar as suas Leis de Organização Municipal (Kommunalordnungen), vieram a delimitar de maneira nítida o âmbito dos serviços a serem cumpridos pelas suas prefeituras locais.

Vale lembrar que, no Brasil, este "primeiro passo" de delimitação das competências e da definição da autonomia municipal não cabe aos estados, mas aos próprios municípios nas suas Leis Orgânicas.

Porém, o estado alemão, em todas suas regulamentações legais, é obrigado a seguir os princípios constitucionais oriundos do Art. 28, II, da Lei Fundamental no sentido de que deve deixar para os municípios uma área para o cumprimento auto-responsável dos assuntos que dizem respeito à comunidade local. Uma intervenção no conteúdo essencial desse direito seria inconstitucional e poderia ser levada pelo ente local afetado à apreciação judiciária.(94)

A liberdade dos municípios alemães, garantida pela Constituição Federal, desde os anos 50 veio a ser fortalecida pelo Tribunal Constitucional Federal (Bundesverfassungsgericht), que desenvolveu a sua teoria da seara substancial (95) ou do mínimo intangível (96) que proíbe a supressão da autonomia municipal como instituição por parte do estado ou da União bem como qualquer restrição que atinja o seu "conteúdo essencial" (Wesensgehalt).

Segundo o entendimento alemão, a garantia do direito de auto-administração dos municípios, na sua essência, significa que transferências ou "deslocamentos" de funções e responsabilidades para outros níveis da administração pública - uma medida lícita no sistema alemão mediante lei estadual - não devem reduzir substancialmente as formas de atuação e influência das prefeituras e não sejam de tal monta "que, em decorrência, o município veja alterados a sua imagem, a sua estrutura e o seu tipo tradicionalmente caraterísticos".(97)

Vale ressaltar que, na Alemanha de hoje, há muitos municipalistas que alegam um sufocamento da autonomia local através de uma rede cada vez mais densa de prescrições da legislação estadual, formada por regulamentações demasiadamente pormenorizadas e perfeccionistas. O município alemão, durante as últimas décadas, perdeu bastante da sua espontaneidade e liberdade de ação, e o controle por parte do estado se tornou cada vez maior.(98)


8. Perspectivas para uma melhor distribuição de competências entre as esferas estatais; o papel dos estados brasileiros na definição do "interesse local"

Por último, resta traçar o caminho para uma melhor definição dos direitos e responsabilidades dos municípios no futuro. Na última Assembléia Nacional Constituinte Brasileira, o Anteprojeto da Subcomissão dos Municípios e Regiões previa a seguinte regulamentação:

          Art. 9º - Compete privativamente aos municípios:

I - legislar sobre assuntos de interesse municipal predominante;

III - organizar e prestar os serviços públicos locais;

§ 1º - as atribuições dos municípios poderão variar segundo as particularidades locais, sendo, entretanto, de sua competência exclusiva os serviços e atividades que digam respeito ao seu peculiar interesse, tais como: (...)(99)

§ 3º - Os municípios poderão prestar outros serviços e desempenhar outras atividades, mediante delegação do Estado e da União, sempre que lhes forem atribuídos os recursos necessários.

§ 4º - As particularidades locais, para efeito da variação a que se refere o § 1º deste artigo, serão definidos em lei complementar estadual.

Os autores do anteprojeto visaram a "vencer a fórmula tradicional e indefinida na enunciação do papel, das atribuições, competências e encargos municipais, e buscar meios para melhor precisar esses elementos para especificar, de modo proporcional e adequado, os recursos necessários à manutenção dos municípios".(100)

Esse tipo de catálogo dos serviços locais para todo o território nacional sempre sofreu críticas por parte da doutrina. Alegou-se que a noção de peculiaridade local no que se refere à prestação de serviços públicos não seja passível de um entendimento padronizado, mas variável em função da localização geográfica, dimensão, população, tradição, aspectos históricos e culturais, potencialidades, níveis de urbanização, caraterísticas do solo, aspirações do povo, proximidade ou afastamento de centros polarizadores, etc.(101) Diante da mutação por que passam certas atividades e serviços, a variação de predominância do interesse municipal, no tempo e no espaço, é um fato, particularmente no que diz respeito à educação primária, trânsito urbano, telecomunicações, etc.(102) Por conseqüência, a solução das atribuições explícitas foi rejeitada pelo Relator da Constituinte.

Compartilhamos, em parte, as críticas em relação de uma enumeração dos serviços genuinamente municipais em nível nacional pela própria Carta Federal. A inconveniência desse procedimento, porém, não nos leva necessariamente a considerar indispensável a utilização do vago conceito do "(peculiar) interesse local" com todas as dificuldades de sua definição acima expostas. Como certamente não convém atribuir funções e tarefas iguais para municípios paulistas, gaúchos, nordestinos ou amazonenses, das metrópoles até as aldeias rurais, uma tal exemplificação do interesse municipal nos parece ter uma viabilidade bem maior se fosse efetuada no nível de cada estado da Federação Brasileira. O § 4º do Art. 9º do anteprojeto abria justamente esse caminho para incluir os estados na definição da autonomia dos seus municípios.

Podemos constatar que, hoje, cabe também às Leis Orgânicas Municipais o importante papel de definir as matérias de competência municipal no seu caso concreto, explicitando a expressão vaga que é o termo interesse local do Art. 30, I, Constituição Federal.(103) O conteúdo das Leis Orgânicas serve como indicação pela distribuição das responsabilidades no caso concreto.

No entanto, não é possível parar por aí, não podendo caber somente aos entes locais o traçado das linhas divisórias entre as suas atribuições e as tarefas do estado e da União. O município, sozinho, não é capaz de delimitar as responsabilidades pela execução dos serviços públicos e de definir o conteúdo do seu interesse local.(104)

A maioria das Leis Orgânicas locais declararam ser o município competente em quase todas as áreas da administração pública: saúde, educação, licenciamento de atividades, transporte, fomento econômico, produção de alimentos, proteção do meio ambiente, etc., estabelecendo, muitas vezes, competências concorrentes.

Porém, o sistema jurídico-administrativo brasileiro já sofreu bastante com a tradicional prática dessas competências concorrentes, onde as três esferas se atrapalham, se atropelam ou se omitem na prestação dos serviços, sendo um dos efeitos mais danosos dessa concorrência de atribuições o impedimento da cobrança da prestação efetiva dos serviços pela sociedade.(105) Cabendo indiferentemente a qualquer nível de governo a prestação de um serviço, fácil se torna a omissão de qualquer deles, na esperança de que os demais decidam assumir o encargo.(106)

Álvaro Pessoa comentou a respeito: "Virtualmente o município brasileiro possui, hoje, um potencial de competências, que, além de misterioso, e mais um obstáculo do que um auxílio. São inumeráveis as áreas de competência que se poderiam chamar superpostas ou complementares, onde algumas vezes a União, outras o estado-membro deseja e praticamente não pode legislar. Não há sistema de exclusão ou ordenação de competência que possa ajudar no desate de tão complexo nó constitucional".(107)

Essa indefinição de competências foi transferida para o regime da Constituição de 1988. Até hoje continua válida a observação de Lordello de Mello: "O que devia ser a responsabilidade de cada uma esfera estatal resulta, não raro, na irresponsabilidade de todas". Para ele, o sistema de competências concorrentes exige, para sua eficiência, um alto grau de coordenação, difícil de ser atingido em face de certos aspectos da autonomia dos estados-membros e do município. "Não prevalecendo, entre nos, o regime da subordinação administrativa das coletividades territoriais inferiores às superiores, torna-se difícil a coordenação da ação das primeiras pelas segundas, o que somente poderá ser conseguido através de um sistema de auxílios condicionados e de mecanismos adequados de fiscalização dos recursos concedidos (...)."(108)

Prescrições isoladas sobre o "pretenso" interesse local de um município certamente não levarão os órgãos da respectiva administração estadual a alterar e adaptar o seu desempenho em relação à cidade. Uma combinação integrada das funções entre as diferentes esferas estatais exige a participação do estado e do Município ao mesmo tempo. Por isso, parece errônea a afirmação que, depois de 1988, caberia somente às Leis Orgânicas Municipais definir a abrangência e conteúdo do seu "interesse local".

Na verdade, também ficou difícil, no sistema da Carta de 1988, entender o papel das Constituições Estaduais em relação aos municípios, "visto que os entes locais acham os parâmetros e limites definidores da sua autonomia diretamente na Carta Federal, sobrando, portanto, pouco espaço para o estado cuidar do município".(109)

Mesmo assim, poderíamos atribuir aos textos estaduais, que tratam das competências municipais, o seguinte significado: onde a Carta Estadual declara os municípios a serem competentes para determinadas tarefas (110), o próprio estado reconhece, de maneira indireta, que tais funções - salvo raras exceções - não são de interesse predominantemente regional (= estadual) e que, portanto, estão os municípios facultados e "exortados" a editar suas próprias legislações nessas áreas, podendo incluí-los, desde o início, nas suas Leis Orgânicas Municipais.

Essa interpretação "indireta" não seria necessária se a Constituição Federal tivesse atribuído - como previa o Anteprojeto - aos estados a competência expressa de definirem mediante lei complementar as "particularidades locais, para efeito de variação" (Art. 9, § 4º). Tal procedimento também teria a grande vantagem de poder traçar linhas de responsabilidade entre os governos estaduais e as prefeituras, onde hoje existem inúmeras dúvidas, omissões e superposições dos planos, programas e atividades.

Na base do acima exposto, surge a pergunta: quais sejam os critérios adequados para uma definição realística da autonomia municipal no Brasil?

          José Maria Dias observa que "a velha surrada questão de analisar-se o municipalismo brasileiro tentando posicioná-lo, justificá-lo e engrandecê-lo, apenas com argumentos de índole federativa, com base exclusivamente no peculiar interesse local, está ficando superada e com as suas energias esgotadas".(111)

Por isso, se faz mister compreender o problema sob os enfoques histórico-econômico e administrativo e para chegar a uma atitude conciliadora entre o jurídico-constitucional e o administrativo-econômico. Para tal fim, poderá servir a já antiga teoria das escalas (112), que busca orientar a repartição das competências, encargos e serviços entre os diferentes níveis estatais segundo critérios geográficos, econômicos, técnicos, financeiros bem como de poder político e de força administrativa.

São justamente esses aspectos variados, que deveriam entrar na definição do interesse local, seja na fase de auto-identificação dos municípios na sua Lei Orgânica, seja na concretização legislativa mais genérica por parte dos estados federados ou, por final, na decisão do juiz sobre o caso concreto.

Sobre o autor
Andreas Joachim Krell

professor de Direito da UFAL e da pós-graduação da UFPE, doutor em Direito pela Universidade Livre de Berlim

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

KRELL, Andreas Joachim. Autonomia municipal no Brasil e na Alemanha.: Uma visão comparativa. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 4, n. 37, 1 dez. 1999. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/1557. Acesso em: 5 nov. 2024.

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