1. O tradicional dualismo entre estado e sociedade
na Alemanha e a posição dos municípios
A autonomia dos municípios da Alemanha foi consagrada juridicamente no início do século XIX Em 1808, foi promulgada a Lei Prussiana das Cidades e Comunas (Preußische Städte- und Gemeindeordnung). O criador desse diploma legal histórico, Freiherr vom Stein, ainda partiu da premissa da distinção estrita entre a administração do poder público, encarnado no Rei da Prússia e os órgãos de um estado de polícia (Polizeistaat), e, por outro lado, as atividades administrativas e iniciativas políticas dos próprios cidadãos nos seus respectivos municípios.
Na verdade, a chamada "auto-administração municipal" (Kommunale Selbstverwaltung) tinha a intenção de formar um contrapeso ao estado autoritário e despertar, como "ilha local de autodeterminação" (1) o espírito de civismo (Gemeinsinn) dos cidadãos através da sua participação na vida pública. Dessa maneira, pretendeu-se incentivar a formação de uma sociedade liberal e auto-responsável dentro do sistema governamental da monarquia. (2)
Na base deste raciocínio as Constituições Alemãs de 1849 (3), no seu Art. 184, e de 1919 (Constituição de Weimar), no seu Art. 127, colocaram os direitos dos municípios no mesmo capítulo dos direitos fundamentais dos indivíduos contra o estado. No período entre a metade do século passado até o início do século XX, a doutrina jurídica desenvolveu consideráveis esforços para redefinir a posição do município dentro do recém criado estado nacional, o Império Alemão (Deutsches Reich). (4)
A maioria dos autores dessa época concordava que os municípios não podiam ser totalmente equiparados aos níveis federativos superiores, visto que estes, embora sendo prestadores de serviços e detentores de poderes públicos, não possuíam competências consubstanciais aos da União (Reich) e dos estados (Länder). (5)
Apenas Hugo Preuß tentava dissolver o dualismo conceitual entre o Poder Estatal (Staat) e o município (Gemeinde), apontando à identidade de União, estados e municípios como entidades territoriais (Gebietskörperschaften) e agentes equivalentes da administração pública moderna que todos achavam a sua legitimidade na "vontade popular" (Volkswillen). (6)
Kelsen constatou mais tarde, que, na Alemanha do século passado, os municípios só não eram considerados partes do Estado (7) porque não representavam o aparelho burocrático e autocrático com o qual esse poder geralmente era identificado na época. Se, contudo, o município - que depois existiu como "comunidade parcial" (Teilgemeinschaft) - tivesse precedido historicamente o estado que surgiu como "comunidade integral" (Gesamtgemeinschaft), então o poder estatal e o município, antigamente, teriam convergidos, em outras palavras: "o município teria sido o estado".(8)
Com o decorrer do tempo, foram especialmente as cidades alemães que se tornaram ponto de partida na auto-organização liberal-burguesa para o cumprimento dos serviços locais variados. A iniciativa própria dos habitantes e o seu espírito cívico pelo bem da comunidade se desenvolveram de uma maneira tão expressiva, que o modelo institucional da auto-administração municipal se tornou uma das idéias basilares da organização estatal na República de Weimar.(9)
A doutrina alemã dos anos 20 desse Século era pacífica sobre o fato de que uma elevação formal dos municípios para o terceiro fator básico da ordem política da nação ao lado do Reich e dos Länder teria levado à "dissolução pluralística" do estado como poder ordenador geral.(10)
Por conseqüência, em 1930 sofreu ampla rejeição a proposta formulada pela Associação das Cidades Alemãs (Deutscher Städtetag) para o estabelecimento de um "estado unitário descentralizado de auto-administração" (11) que incluía o reconhecimento dos municípios como terceiro nível das entidades territoriais da federação e a participação da esfera local na tomada de todas as decisões políticas importantes. A maioria dos juristas viam nesse modelo um "experimento policrático perigoso" dentro do qual os estados federados eram degradados para preencher apenas o lugar de uma instância intermediária entre o Reich e os municípios.(12)
Ao contrário, em seguida, as ciências jurídica e administrativa foram cada vez mais influenciadas pela teoria de Forsthoff, que alegou que a verdadeira função da esfera municipal dentro da estrutura estatal integral somente residia na diferenciação regional da execução das leis pelos órgãos da administração, possibilitando a consideração das peculiaridades locais.(13) Segundo essa teoria, a auto-administração municipal, em princípio, devia ser apolítica.
Nesse contexto, os intérpretes mais importantes do sistema de organização estatal da Alemanha atribuíram menos importância à realização de estruturas democráticas em nível local dando muito mais ênfase ao objetivo da garantia de um bom funcionamento da administração pública.(14)
No final da República de Weimar, com o surgimento da teoria da "garantia institucional" do município, a doutrina jurídica começou abandonar dogmaticamente a teoria do dualismo rígido entre a sociedade e os entes locais num lado, e o estado com os órgãos governamentais no outro. Essa idéia foi totalmente superada em 1949 pela Lei Fundamental (Grundgesetz) de Bonn que consagrou a auto-administração municipal como um dos princípios constitucionais básicos da estrutura organizacional do novo estado alemão.(15)
Na Alemanha moderna, a autonomia do município democrático tem o seu fundamento não mais no antagonismo e na oposição para o estado, mas, pelo contrário, na igualdade com ele, na medida que os entes locais representam formas primárias de comunidade política.(16) Segundo o entendimento que hoje prevalece entre os autores da área, os municípios são partes do estado, aliás, ao mesmo tempo, como agentes administrativos (Verwaltungsträger) integrantes do Poder Executivo no sentido do Art. 20, III, Lei Fundamental. (17)
Os municípios menores (Gemeinden), as cidades (Städte) e as circunscrições municipais (Kreise) cumprem as tarefas mais importantes e prestam a maior parte dos serviços aos cidadãos: por isso, também na Alemanha costuma-se assinalá-los de terceira esfera na hierarquia do estado e da administração pública.(18) Essa imagem, no entanto, é coerente somente pelo ponto de vista político-administrativo, não refletindo corretamente a situação jurídica alemã (19). Hoje em dia, o ponto crucial da questão é localizado na resposta da pergunta sobre o sentido da auto-administração municipal dentro de um estado de estrutura plenamente democrática.(20)
2. A posição forte do município brasileiro como parte do Poder Estatal
O desenvolvimento histórico e a posição das entidades territoriais locais na estrutura estatal do Brasil se apresenta numa maneira bastante diferente da situação alemã acima exposta. Foi o Portugal que criou os municípios no solo da sua colônia sul-americana como imitação dessa instituição já existente na Europa há séculos. Até a independência brasileira em 1821, o município funcionava como "ponta de lança" para penetração, sem nunca deixar de ser uma afirmação da soberania da coroa portuguesa.(21) Foram eles os verdadeiros detentores do poder de ordenação fática e decisão política. Na prática, os governos locais, as Câmaras, nessa época exerciam também funções que formalmente eram da competência dos entes estatais superiores, das doze Capitanias Hereditárias. Essas entidades, contudo, eram, na verdade, subdivisões artificiais e demasiadamente grandes do território colonial criadas por razões meramente políticas.(22)
Dentro do vasto território da colônia com a sua baixíssima densidade demográfica encontravam-se as fazendas de produção agropecuária e as plantações da cana-de-açúcar e de café; eram estes os verdadeiros centros da vida diária do povo simples cuja grande maioria não saía desses lugares durante a vida inteira. Nesse contexto, um município já representava a congregação de várias dessas micro-sociedades com o centro comercial da região como a sede do governo municipal, as Câmaras.(23) O poder das Câmaras passava a ser o poder dos proprietários: eram eles que fixavam salários e preços, regulavam o curso e valor das moedas, votavam a tributação, etc., chegando até mesmo a substituir governadores e capitães.(24)
A vastidão do país e as dificuldades para o transporte e a comunicação daí resultantes levaram necessariamente a uma concentração do poder político fático nos governos municipais. Eles constituíam verdadeiros centros de autoridade local, subordinados, em tese, ao governo-geral da capitania, mas, no decorrer do tempo, a maioria deles acabou se tornando praticamente autônomo, perfeitamente independente do poder central.(25) Foi por isso que o Imperador Dom Pedro I. fez questão que as Câmaras Municipais aprovassem solenemente a primeira Constituição do Brasil de 1824, para que a Magna Carta da Independência ganhasse mais legitimidade política.(26)
A base do município brasileiro, portanto, não é a cidade, como foi na Europa, mas a propriedade rural. Segundo Paupério faltou, no Brasil, "a escola de aprendizagem que foi a comuna rural na Europa, florescente por sua independência e autonomia na Suíça, na Alemanha, nos países eslavos e mediterrâneos".(27) Assim surgiu o "sistema social das fazendas" (28) com as suas estruturas autoritárias e feudais que quase nada tinha em comum com a vida política e social nos municípios europeus. Resumindo: a base e a origem do município brasileiro, portanto, não reside numa oposição contra o estado autoritário monárquico, como aconteceu no caso da Alemanha. As entidades locais no Brasil foram, contudo, durante muito tempo os únicos e naturais detentores da autoridade e do poder estatal.(29) Pontes de Miranda comenta a respeito: "Se a Capitania dividia, o Município organizava. Aquela era a simetria de centro, política e exteriormente imposta e portanto artificial, contra a qual trabalhava, organizando a realidade que e a vida económica e moral, a fazenda, célula do município brasileiro."
A Constituição da Independência Brasileira de 1824 mantinha, em princípio, a organização municipal que tinha se formado durante os séculos que o país era colônia do Portugal. Desde então, competia aos órgãos políticos e administrativos locais, às Câmaras, o governo econômico das cidades e vilas (Art. 167). (30) Todavia, já em 1828 as Câmaras eram subordinadas aos governos das províncias e declaradas como meras corporações administrativas. Nessa ocasião, foi prescrito, para todos os municípios do país, pela primeira vez na história, uma forma de organização idêntica sem levar em conta as suas diferenças. (31)
No final do século passado foi introduzido no Brasil praticamente "de cima para baixo" o sistema federativo para melhorar a organização administrativa do seu território gigante. Destarte, o surgimento da Federação Brasileira não se deve a um "pacto federativo" como foi o caso nos Estados Unidos e, depois, na Alemanha.(32)
O texto da Constituição de 1891, que foi a primeira a garantir a autonomia municipal no Brasil, determinou no seu Art. 68 que "os Estados organizar-se-ão de forma que fique assegurada a autonomia dos municípios, em tudo quanto respeite ao seu peculiar interesse." Na opinião de muitos juristas e políticos da época, porém, o modelo da autonomia municipal da Carta Republicana representava "uma criação engenhosa dos juristas e dos militares, afastado da realidade política e social então existente".(33)
Devido à falta de clareza na definição da autonomia local pelo texto constitucional, os governos estaduais preferiram ver no município um elemento da própria autonomia estadual (34) e logo passaram a delimitar, na base do próprio entendimento, os moldes do peculiar interesse municipal.(35) Nem os tribunais brasileiros compeliam esse ato arbitrário por parte dos estados.(36) Ao contrário: enquanto a intenção da constituição era de atribuir aos municípios uma maior independência na gestão e regularização dos seus próprios assuntos, na prática os governos estaduais exerceram cada vez mais influência sobre os órgãos da esfera local.(37)
Nas primeiras décadas desse século, os governadores dos estados brasileiros economicamente mais fortes marcavam também a política em nível nacional.(38) Foi justamente nessa época que prosperou nas regiões rurais o fenômeno do coronelismo: as famílias locais mais poderosas exerciam, através do seu chefe investido de poderes militares, o poder absoluto sobre a população pobre.(39) Assim, a autonomia municipal garantida pela Constituição de 1891, veio a contribuir, sobretudo, para o fortalecimento desses grupos extremamente egoístas.(40)
Durante muito tempo, o conceito do "poder local" assinalou no Brasil o exercício de domínio fático por parte de elites regionais e locais tradicionais que não foi legitimado nem controlado pelos órgãos políticos existentes; o poder local agia dentro de um "vácuo" quase impenetrável para o poder estatal na base da vontade popular.(41) Até os anos 30 do século XX, o municipalismo brasileiro não era a expressão da crescente luta de uma burguesia próspera nas grandes e médias cidades por uma maior influência política - como acontecia na Europa -, mas representava, antes de mais nada, uma briga pelo poder entre as oligarquias do centro e das diferentes regiões do país.
As elites regionais e grupos políticos dos governadores, contudo, na sua grande maioria conseguiram se arranjar com os detentores do poder local para que ambas as partes tirassem o máximo proveito pessoal dos seus cargos políticos.(42) Os candidatos das eleições municipais que não eram bem vistos pelo governador ou pela família do coronel simplesmente foram afastados, muitas vezes com o uso de força física. Era comum também a falsificação direta dos resultados dos pleitos locais, sem que o governo central tivesse tomado qualquer medida para suprimir essas graves irregularidades.
Na elaboração da Constituição de 1934, quase não houve dúvidas sobre a inefetivação prática da autonomia municipal por parte dos estados.(43) Existiam, porém, muitas diferenças a respeito dos remédios jurídicos que se faziam necessários para fomentar a independência das entidades locais.
Para alguns, a autonomia absoluta dos municípios traçada na Carta Republicana tinha se mostrado uma posição utópica e representava apenas um velho tabu liberal baseado numa teoria de estado já ultrapassada. Para essa corrente, uma verdadeira autonomia das prefeituras municipais somente podia ser alcançada mediante o estabelecimento formal de direitos de intervenção dos estados federados.
Estes deviam incrementar o apoio aos municípios na solução dos seus problemas o que, para eles, incluía também a fiscalização dos mesmos para assegurar, ao mesmo tempo, a consideração de interesses supra-locais e regionais na prestação satisfatória dos serviços pelas prefeituras. (44) Os defensores dessa tese consideravam a maior ameaça para as liberdades e a cidadania dos munícipes a falta de controle dos próprios chefes políticos locais. Por isso, segundo eles, a constituição de cada estado federado devia ter o direito de delimitar a autonomia dos municípios.(45)
No entanto, a maioria dos constituintes de 1934 não aceitou um direito dos estados federados para definirem e controlarem as tarefas e responsabilidades municipais; prevaleceu o intuito de resguardar e proteger a esfera da liberdade local contra qualquer influência dos níveis estatais superiores e, em cima de tudo, contra a temida ingerência por parte dos governadores. Pelos mesmos motivos, começava-se também a propugnar a competência dos Estados para a edição de Leis Orgânicas Municipais e a delimitação do âmbito das funções e liberdades dos municípios; nessa época, esse poder de definição começou a ser atribuído exclusivamente à Constituição da União ou leis complementares federais.(46)
Resumindo, podemos constatar, no Brasil, a existência tradicional de fortes ressalvas à permissão de um controle ou uma fiscalização dos municípios por parte dos estados-membros da Federação que têm as suas bases no primeiro terço deste século. A conseqüências jurídicas dessa percepção perduram até os dias de hoje, não tendo os estados brasileiros o direito de criar mecanismos de controle dos municípios, além daqueles previstos na própria Constituição Federal.(47)
Na Alemanha, existe a instituição da "supervisão municipal" (Kommunalaufsicht), que é exercida por parte dos governos estaduais visando à garantir a legalidade dos atos administrativos dos órgãos municipais e, ao mesmo tempo, impedir a promulgação de normas locais que contrariam dispositivos constitucionais superiores. Este controle se efetua, acima de tudo, mediante contatos informais como informações, conselhos, consultorias e a elaboração de propostas de correção. A supervisão não se carateriza como intervenção, mas muito mais como processo para a estabelecimento de um consenso. Prevalece a função protetora do estado perante seus municípios, que assegura a fiel execução das leis federais e estaduais por parte dos entes locais.
No Brasil, até hoje inexistem tais mecanismos de supervisão municipal, sendo que as leis locais entram em vigor sem nenhum controle de órgãos superiores, podendo somente ser revisadas ou cassadas pelos tribunais, isto é, depois de processos muitas vezes bastante demorados. Segundo a nossa opinião, uma forma institucionalizada de supervisão dos municípios também lograria ter efeitos positivos na realidade administrativa do Brasil; devia ficar assegurado, no entanto, que um tal sistema não poder-se-ia transformar em uma forma de tutela política por parte das esferas governamentais superiores. Por isso, seria necessário um considerável aumento dos contatos institucionalizados entre os Ministérios Públicos dos estados e as prefeituras e câmaras locais.(48)
3. A elevação dos municípios Brasileiros para a
"terceira esfera estatal" da Federação pela Constituição Federal de 1988
Ao lado da União e dos estados, os municípios brasileiros, dentro dos seus territórios, são detentores de legítimo poder estatal. A sua autonomia é de natureza administrativa tão bem como política. O seu peculiar interesse local e a eletividade da administração local são os dois princípios que formam a base sobre a qual se ergue a estrutura municipal brasileira.(49)
Na Alemanha, a autonomia municipal, desde o seu surgimento, também acha o seu fundamento em dois componentes básicos: primeiro, ela constitui uma expressão da divisão da administração pública em unidades controláveis; segundo, o povo local, através dos seus órgãos políticos eleitos, exerce nos municípios o poder soberano espacialmente limitado. Assim, colocam-se um ao lado do outro, a função administrativa-organizatória e a função político-democrática.(50)
Prevalece, no entanto, até hoje, o caráter administrativo da instituição municipal alemã. Lá, a doutrina jurídica considera as comunas e cidades como subdivisões administrativas dos respectivos estados, quais, porém, são dotadas do direito de autonomia pela própria Constituição Federal e também possuem importantes funções políticas. As representações populares dos municípios alemães - os Conselhos (Räte) - não são chamadas de legislativo ou parlamentos locais como acontece no Brasil com as câmaras de vereadores. Elas também não editam verdadeiras leis, mas estatutos (Satzungen), para auto-regulamentarem os assuntos da entidade local. Essa diferenciação é conseqüente: a produção de leis sempre é reservada aos órgãos do poder estatal, de qual o município, segundo o entendimento alemão, não faz parte, ao contrário da situação brasileira.
Vale ressaltar, contudo, que é completamente estranho ao entendimento jurídico brasileiro a confrontação dos conceitos de poder estatal e poder municipal que prevaleceu entre os juristas alemães durante séculos e cujos efeitos perduram até hoje. No Brasil, os políticos locais, bem como estudiosos de assuntos municipais, normalmente encontram dificuldades de entender o significado do termo alemão da auto-administração municipal (kommunale Selbstverwaltung) que tem a sua origem na oposição dos cidadãos - especialmente a burguesia do século XVIII e XIX - contra o fato de serem "administrados" pelo estado monárquico autoritário. Por isso, os alemães costumam empregar o termo "auto-administração" como sinônimo do conceito da autonomia municipal.(51)
Já Pontes de Miranda, em relação ao Art. 137 da Constituição Alemã de Weimar (1919), aludiu à diferença entre o entendimento de "auto-administração" municipal vigente na Alemanha e o sistema brasileiro da descentralização igualmente política com todas as suas conseqüências, como a divisão de poderes em nível local, o reconhecimento das Câmaras como parlamentos municipais etc.(52)
Importantes autores brasileiros destacam que os titulares de mandatos políticos na esfera municipal têm o maior interesse na elaboração de produtos políticos, ficando prejudicados a intensidade e a qualidade do trabalho administrativo e criticam o fato de os municípios serem entidades principalmente políticas e menos administrativas.(53)
Depois do fim do governo militar em 1985, ganhou força a reclamação por um município mais potente e eficiente em função da consolidação do renascido regime democrático. A pretensa intenção dessas novas forças políticas foi de estabelecer, em todo o país, um procedimento político "de baixo para cima".
Como conseqüência, o Art. 18 da Constituição Federal de 1988, pela primeira vez na história constitucional brasileira, levantou os municípios oficialmente para serem entes da União, rezando que "a organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição".
O Anteprojeto da Constituição Federal de 1967 continha a última tentativa de qualificar os municípios como meras subdivisões administrativas dos estados federados; essa opinião foi rejeitada até pelos representantes do regime autoritário por contrariar o desenvolvimento constitucional caraterístico da autonomia municipal no Brasil.
Já durante décadas, os autores mais expressivos do Direito Municipal Brasileiro vieram exigir a elevação dos municípios para serem autênticos membros da Federação, instituídos com direitos iguais em relação aos estados e à União. Para eles, o levantamento oficial dos entes locais significa apenas o reconhecimento jurídico-formal de uma situação fática existente há muito tempo.(54) Ressaltam que, na verdade, essa mudança constitucional, na prática jurídica, logrou quase nenhum efeito.(55)
No que diz respeito à distribuição de competências legislativas e administrativas, a Constituição de 1988 coloca os municípios também ao lado da União e dos estados. Essa "trilogia federativa" da existência de três entes políticos internos autônomos constitui uma peculiaridade do Brasil em comparação com todos outros países de organização federativa.(56)
Sob o aspecto formal, o município brasileiro certamente é a entidade territorial local investida da autonomia mais abrangente no mundo inteiro. No exercício das suas atribuições, ele atua em absoluta igualdade de condições com as outras esferas governamentais; os atos municipais independem da prévia autorização ou de posterior ratificação de qualquer outra entidade estatal.(57)
Não existe nenhuma hierarquia formal entre as leis da União, as dos estados e as dos municípios: cada um desses sistemas possui o seu próprio espaço de soberania enquanto se desenvolve nos limites da sua competência constitucional. Dentro dessa esfera de autonomia, a norma municipal possui um status de inviolabilidade, podendo derrogar também normas superiores que a contrariem, sendo inconstitucionais a lei estadual e a lei federal que, desbordando dos limites das respectivas competências, invadirem o campo da competência municipal.(58)
Sendo assim, podemos observar que, somente no Brasil, mediante a elevação dos municípios para o terceiro nível da federação, transformou-se em realidade com todas as conseqüências a antiga tese do mestre austríaco Hans Kelsen, que já declarou em 1925 que a administração pública não devia ser separada em duas áreas diferentes e independentes entre si - a administração estatal e a administração autônoma - em razão de que, nos dois casos, tratava-se igualmente da execução e implementação de normas jurídicas.(59) Todavia, a posição jurídica extraordinariamente forte do município brasileiro se contrapõe a sua capacidade bastante limitada de atuação prática.