4. As novas "Leis Orgânicas Municipais"
Art. 29, caput, da Carta Brasileira de 1988 determina que "o Município reger-se-á por lei orgânica, (...) aprovada por dois terços dos membros da Câmara Municipal, que a promulgará, atendidos os princípios estabelecidos nesta Constituição, na Constituição do respectivo Estado e os seguintes preceitos: (...)".
Alguns Anteprojetos da Constituinte ainda assinalaram essas leis orgânicas como "constituições municipais", insistindo muitos autores até o final que fosse empregado o conceito constituição, porque somente ele expressaria corretamente a valorização que a nova Carta Magna atribuiu à instituição do município.(60) Na redação final da Constituição desistiu-se de usar esse termo somente por razões de tradição e não pelo fato que ele tenha sido considerado "juridicamente forte demais".
No entanto, houve autores de peso que tomaram posição contra a promulgação de tais leis orgânicas quase constitucionais em cada município.(61) Sugeriu-se também que se concedesse essa competência apenas às cidades de população maior, visto que muitos municípios menores do interior não dispunham da cultura jurídica necessária e que em pequenas sociedades a elaboração de um tal diploma legal fundamental fossem demasiadamente influenciadas pelas estruturas locais de poder econômico.(62)
Em retrospectiva, eram justos os receios de que a maioria dos municípios não iria conseguir ajustar e compatibilizar os seus textos constitucionais com os do respectivo estado e da União e, assim, produzissem um grande número de dispositivos inconstitucionais.(63)
Hoje já podemos afirmar que muitas das Cartas Municipais promulgadas em 1990 contêm normas que evidentemente extrapolam as competências locais.(64) No entanto, temos de esperar qual destino será dado no futuro a tais dispositivos locais por parte dos tribunais brasileiros que, até agora, emitiram relativamente poucas decisões a respeito.
As leis locais contrárias à Lei Orgânica Municipal serão ilegítimas e inválidas, desde que assim seja declarado pelo Judiciário, por via indireta, não estando prevista a ação direta de inconstitucionalidade para tal fim.(65)
Na Alemanha, cada município edita o seu estatuto básico (Hauptsatzung)(66), que regulamenta as questões fundamentais do funcionamento da sua administração. Os estatutos básicos das cidades e comunas da Alemanha não possuem - ao contrário das novas Leis Orgânicas Municipais no Brasil - a qualidade de uma "constituição local" e estão fortemente influenciados pelas Leis de Organização Municipal de cada estado federado (Landeskommunalordnungen). Eles também não definem a abrangência da autonomia de cada município, mas servem como base jurídica do trabalho diário da administração local.
No entanto, essas leis estaduais sobre a gestão municipal, na Alemanha, são capazes de criar verdadeiras obrigações de empenho administrativo por parte das comunas, o que não aconteceu no Brasil no passado.
Vale enfatizar que as antigas Leis Orgânicas Municipais dos estados brasileiros (em vigor até 1990) continham inúmeros dispositivos que representavam meras sugestões às administrações municipais. Não podendo impor aos municípios certas exigências, a legislação estadual simplesmente sugeria a adoção de técnicas administrativas.(67)
5. A organização municipal uniforme da Constituição Brasileira
O Art. 29 da Constituição Brasileira contém um elenco de prescrições obrigatórias pelas quais todos os municípios tinham de se orientar para a elaboração das suas Leis Orgânicas. Os mais importantes são as regras da eleição dos representantes políticos (I-III) e a sua remuneração (V), o número de vereadores proporcional à população (IV), as incompatibilidades (VII), o julgamento e a perda de mandato do prefeito (VIII, XII) e a permissão da iniciativa popular para certos projetos de lei (X).
Podemos observar que a maior parte da organização política dos municípios está prescrita pela Carta Federal. Todos entes locais brasileiros estão sujeitos a uma organização uniforme sem que se considere o seu estado de desenvolvimento, o tamanho, a densidade demográfica ou as atividades econômicas prevalecentes.(68)
No Brasil, há muito tempo constitui também costume jurídico-constitucional a transferência de princípios fundamentais da esfera central (União) para o âmbito regional do estado e a área local do município, sem que esses princípios sofressem maiores modificações ou adaptações. O Supremo Tribunal Federal, durante as últimas décadas, veio a transferir princípios oriundos do processo legislativo federal - direitos de iniciativa e de veto - e do relacionamento entre o Presidente da República e a Câmara, quase sem alterações, para o relacionamento entre o Prefeito e a Câmara Municipal.
Dentro dessa prática, os municípios brasileiros, desde os anos 30 do século XX, foram obrigados a assumir também o sistema presidencialista e a divisão de poderes entre os seus órgãos políticos.(69) A Constituição Federal de 1967/69 prescreveu no seu Art. 15 a separação estrita do legislativo e do executivo dos entes locais. Com isso, um outro preceito constitucional, o de uma "organização municipal variável" (Art. 14, § único) não podia lograr quase nenhum efeito. Celso Bastos comenta à respeito: "Esta a razão pela qual, embora prenhe de significação lógica, a expressão variável segundo as peculiaridades locais remanesce, na pratica, letra morta. E que ela não desfruta de campo material de atuação livre."(70)
Por sua vez, a Lei Fundamental Alemã, no seu Art. 28, inciso I, limita-se a determinar que os municípios devem ter "uma representação do povo resultante de eleições gerais diretas, livres, iguais e secretas". Embora na Alemanha a organização municipal também não é individualmente confeccionada para atender às necessidades particulares de cada cidade, a sua regulamentação, contudo, é da competência quase exclusiva dos estados federados (Länder). Na Alemanha, existem nada menos do que quatro tipos diferentes de organização política municipal, dos quais alguns foram reformados durante os últimos anos.(71)
Em alguns estados alemães, o prefeito (Bürgermeister) e os vereadores (Räte = conselheiros) são diretamente eleitos pelo povo; em outros, os cidadãos votam apenas nos vereadores, os quais, por sua vez, elegem um integrante do conselho para ser o prefeito. Além disso, há estados onde o prefeito possui os plenos direitos de chefe do executivo local; em outros, ele somente exerce funções representativas, enquanto a administração do município cabe a um diretor executivo (Stadtdirektor). No estado economicamente mais importante da Alemanha, na Renânia-Norte/Westfália, o governo das comunas e cidades é atribuído a uma comissão executiva (Magistrat) eleita pelo Conselho, e o prefeito é somente o diretor dessa comissão, um primus inter pares.
Como vimos, a Constituição Brasileira regulamenta a organização política dos municípios de uma maneira mais minuciosa do que qualquer texto constitucional anterior. Por isso, ficam bastante limitadas as possibilidades dos entes locais de chegar a uma organização institucional realmente variada; esse quadro também não muda em virtude da concessão da Constituição aos municípios de elaborarem as suas próprias Cartas Locais.
Como decorrência dessa minuciosa regulamentação, a estrutura organizacional de poder nos municípios continua a ser padronizada, inviabilizando-se qualquer tentativa de inovação quanto ao modelo governamental como, por exemplo, executivos colegiados para municípios de pequena dimensão territorial e densidade populacional, conselhos populares dotados de parcela decisória de poder político, a criação constitucional do cargo do "administrador municipal" (city manager), etc.(72)
O Estado do Rio Grande do Sul já concedeu em 1891 aos seus municípios o direito de elaborar as suas próprias Leis Orgânicas. Nesses textos locais, no entanto, geralmente não se tentou fixar qualquer exceções ao modelo tradicional vigente em todo o Brasil. Não houve uma organização da administração variável mais adequada às condições locais concretas ou uma reformulação das relações entre os órgãos políticos.(73) Vale ressaltar que, já antes de 1988, os municípios brasileiros foram juridicamente capacitados a introduzir, por exemplo, o cargo do "city-manager" como chefe da administração ou a instituição de conselhos populares como órgãos assessores do prefeito, mas eles simplesmente não fizeram uso desse direito.(74)
É importante frisar que os municípios do Brasil, há muito tempo, costumam imitar voluntariamente normas legais e modelos de organização administrativa do estado ou da União e transferi-los, sem maiores adaptações, para o seu âmbito. As cerca de 5.500 Leis Orgânicas promulgadas em 1990 ou depois contêm inúmeros expressões, dispositivos e instrumentos legais que evidentemente foram copiados dos textos constitucionais superiores.(75)
Esse fenômeno da simetria legal, criticado por muitos autores, deve-se, principalmente, à tendência exagerada dos políticos locais e assessores legislativos das Câmaras a chegar a numa unidade legal. Essa atitude pode ser explicada tanto pela insegurança de muitos vereadores e funcionários quanto também pelo simples comodismo daqueles que, antes de tudo, "não querem fazer nada errado". A uniformidade das instituições de governo local no Brasil tem resultado mais da tradição e da imitação do que de imposições legais.(76)
6. As funções diferenciadas dos municípios na Alemanha
O sistema vigente na República Federal da Alemanha diverge bastante do quadro brasileiro. A Lei Fundamental Alemã estabelece como princípios que "os Estados executarão as leis federais como matéria própria" (Art. 83). A aplicação das leis federais, através dos órgãos públicos, cabe preponderantemente aos estados. A União tem apenas competências muito limitadas no campo da execução administrativa. A vantagem desta administração descentralizada está em que as caraterísticas regionais e locais podem ser melhor consideradas e desta maneira haver um julgamento mais justo de cada caso no cumprimento das leis.
A aproximação ao cidadão, de parte da administração pública alemã, é fortalecida ainda pelo fato de que os estados, em muitos dos casos, utilizam-se das administrações municipais como instância de mais baixo nível hierárquico para a execução das leis. No mundo inteiro, as funções da administração municipal têm crescido muito no decorrer da história e têm em conta, sobretudo, o desenvolvimento econômico e tecnológico; são os governos locais que devem atender às chamadas "necessidades vitais".
De acordo com o princípio da "incumbência universal" ou "omnipotência" (Allzuständigkeit), os municípios alemães teoricamente cuidam de todos os assuntos da comunidade local, exceto quando uma lei superior disponha de maneira diferente. Na medida em que for viável, estados e União devem se valer dos órgãos executivos dos municípios quando precisam cumprir suas próprias funções ali no local, sem instalar repartições especiais suas.
Na verdade, esse sistema é resultado de economia administrativa. Vale o princípio da "singularidade da administração" pública em nível local: as instituições dos diversos níveis administrativos públicos, em certa medida, se engrenam umas nas outras, apesar de nem sempre deixarem de existir antagonismos entre esses níveis também.
Na Alemanha, tradicionalmente distinguimos duas grandes áreas funcionais da atuação administrativa municipal: o círculo próprio de atuação e as funções delegadas pelo estado. Dentro das tarefas próprias ainda distingue-se entre as facultativas e as obrigatórias. Dentre os assuntos facultativos do município alemão, temos os assuntos culturais, fomento de esportes, instalações de transporte, de centros para a juventude, lares de idosos, piscinas públicas, etc. Essas funções são da responsabilidade exclusiva do município, que não precisa executá-las se os órgãos políticos não o julgarem necessário.
Cada vez mais importância estão ganhando os "encargos obrigatórios" (Pflichtaufgaben). Os estados federados da Alemanha têm o direito de obrigar os seus municípios ou associações intermunicipais a cumprirem certas tarefas. Lá, existem inúmeras leis estaduais que obrigam diretamente os entes locais a exercerem determinados serviços públicos. Dentre essas tarefas constam questões referentes à ordem e segurança pública e ao atendimento das principais necessidades cotidianas: abastecimento de água tratada, coleta e tratamento de esgotos, ordenamento do uso do solo através de planos diretores de obras e construções, transportes coletivos urbanos, construção e conservação das vias públicas municipais, instalações de combate a incêndios, instalação e manutenção de prédios escolares e hospitais de tratamentos urgentes e instalações de assistência social.
Os assuntos delegados (Auftragsangelegenheiten), por sua vez, são repassados aos governos locais por força de leis estaduais ou, excepcionalmente, federais. Nesses casos, confia-se aos municípios apenas a execução da tarefa, e ele a exerce na qualidade de mandatário do estado.(77) São as mais importantes dessas funções a segurança pública, a manutenção da ordem geral, a proteção da natureza, o controle da caça e da pesca, o regulamento do trânsito local, a fiscalização de construções, o trato de assuntos relacionados à saúde pública e veterinária, as questões de registro civil e residência bem como as eleitorais e relativas a estrangeiros.
Nas tarefas que o município exerce por delegação superior, pode este fiscalizar se essa execução está sendo feita de forma adequada. Nesses casos, a fiscalização estatal abrange, além da legalidade, também a conveniência da execução. Aliás, é freqüente os municípios se queixarem que o reembolso estadual não costuma chegar a cobrir, de fato, as despesas que acarretam para os entes locais. O município alemão tem, pois, um "duplo caráter": é entidade da auto-administração e, ao mesmo tempo, órgão executor do seu respectivo estado federado.(78)
Na verdade, o volume das funções delegadas exercidas pelo município alemão, tornam-se cada vez maior, convertendo o município, cada vez mais, em instância local do estado. Por outro lado, os municípios preferem executar tarefas estaduais com seus próprios servidores a admitir a instituição de uma série de órgãos estaduais específicos no seu território que certamente iria destruir a unidade de administração pública.
Ao contrário da situação alemã, o município brasileiro, devido a sua posição jurídico-constitucional forte, não pode ser obrigado, mediante lei superior, a executar serviços e tarefas estaduais ou federais que têm a sua base na legislação desses outros níveis estatais. O direito constitucional-municipal do Brasil, por tradição, não prevê a delegação obrigatória ou "automática" de tarefas por parte das esferas estatais superiores para os entes locais. Para que a União e os estados possam delegar funções de seu âmbito para os municípios, é preciso a celebração individual de convênios administrativos, que, até hoje, representam o principal instrumento de colaboração entre a União, os estados e os municípios. Em 1998, a figura do convênio foi reintroduzida no texto constitucional (art. 241) pela Emenda n° 19. (79)
Até hoje é esclarecedora a lição de Castro Nunes (80), que apontou o duplo caráter das municipalidades americanas e européias (alemãs, francesas, italianas) como órgãos destinados ao governo da localidade e, ao mesmo tempo, como agências da administração geral dos estados, revelando os poderes paralelos de que está investido o município. Ressaltava o eminente autor que, no município brasileiro, quase não se acusa na órbita da sua atividade uma esfera delegada distinta da esfera propriamente municipal, esclarecendo que essa característica vinha do antigo regime, visto que as Câmaras municipais nunca eram agentes da Província.
A Constituição Brasileira de 1988, na base da ideologia de uma autonomia municipal formalmente fortíssima, não prevê a possibilidade da obrigação dos entes locais para o desempenho de determinadas tarefas e serviços públicos. A única verdadeira obrigação dos municípios brasileiros para cumprir uma determinado serviço público existe na área da educação. O Art. 212 da Constituição Federal os obriga a aplicar vinte e cinco por cento, no mínimo, da receita resultante de impostos na manutenção e desenvolvimento do ensino.
As Constituições Estaduais e mesmo a legislação infraconstitucional não podem criar obrigações para os municípios.(81)