1. Introdução
Assente é, na moderna doutrina constitucional, que a Constituição é uma norma jurídica e não uma norma qualquer, mas a primeira entre todas, lex superior, que, em virtude de sua supremacia, erige-se como parâmetro de validez das demais normas jurídicas do sistema, inexistindo, portanto, como já asseverava Rui Barbosa, cláusulas ociosas, com mero valor de conselhos, avisos ou lições.
O presente trabalho busca, assim, contribuir para uma reflexão em torno das seguintes perguntas:
Qual o sentido e a função da expressão dignidade da pessoa humana?
Qual o seu alcance?
Que significa dizer-se, como está inscrito no inciso III, art. 1º, da Constituição Federal, que o Brasil é uma República Federativa que tem com fundamento a dignidade da pessoa humana?
2. Origem e desenvolvimento do conceito de Dignidade da Pessoa Humana
Não há, nos povos antigos, o conceito de pessoa tal como o conhecemos hoje. O homem para a filosofia grega, era um animal político ou social, como em Aristóteles, cujo ser era a cidadania, o fato de pertencer ao Estado, que estava em íntima conexão com o Cosmos, com a natureza, como ensina Jaeger1. Zeller, citado por Batista Mondin, chega a afirmar que "na filosofia antiga falta até mesmo o termo para exprimir a personalidade"2, já que o termo "persona" deriva do latim.
O conceito de pessoa, como categoria espiritual, como subjetividade, que possui valor em si mesmo, como ser de fins absolutos, e que, em conseqüência, é possuidor de direitos subjetivos ou direitos fundamentais e possui dignidade, surge com o Cristianismo, com a chamada filosofia patrística, sendo depois desenvolvida pelos escolásticos.
A proclamação do valor distinto da pessoa humana terá como conseqüência lógica a afirmação de direitos específicos de cada homem, o reconhecimento de que, na vida social, ele, homem, não se confunde com a vida do Estado, além de provocar um "deslocamento do Direito do plano do Estado para o plano do indivíduo, em busca do necessário equilíbrio entre a liberdade e a autoridade"3.
Para Immanuel Kant, na sua investigação sobre o verdadeiro núcleo da teoria do conhecimento, o sujeito torna-se o elemento decisivo na elaboração do conhecimento. Propôs ele, assim, uma mudança de método no ato de conhecer, que ele mesmo denomina "revolução copernicana". Ou seja, em vez de o sujeito cognoscente girar em torno dos objetos, são estes que giram em redor daquele. Não se trata mais, portanto, de que o nosso conhecimento deve amoldar-se aos objetos, mas que estes devem ajustar-se ao nosso conhecimento. Trata-se, como comenta Georges Pascal, de uma substituição, em teoria de conhecimento, de uma hipótese idealista à hipótese realista4.
Porém, o sujeito kantiano, o sujeito transcendental, a consciência enquanto tal, a razão universal, é "uma estrutura vazia", que, separada da sensibilidade, nada pode conhecer. O pensamento humano é, pois, dependente da sensibilidade. "Neste sentido - diz Manfredo A. de Oliveira -, pode-se dizer que a teoria é, para Kant, a dimensão da autoalienação da razão"5.
Só através da práxis, a razão se libertará da autoalienação na teoria, porquanto, no domínio da prática, a razão está a serviço de si mesma. O que significa não procurar as normas do agir humano na experiência, pois isso significaria submeter o homem a outro homem. E o que caracteriza o ser humano, e o faz dotado de dignidade especial, é que ele nunca pode ser meio para os outros, mas fim em si mesmo.
Para Kant, pois, a razão prática possui primazia sobre a razão teórica. A moralidade significa a libertação do homem, e o constitui como ser livre. Pertencemos, assim, pela práxis, ao reino dos fins, que faz da pessoa um ser de dignidade própria, em que tudo o mais tem significação relativa. "Só o homem não existe em função de outro e por isso pode levantar a pretensão de ser respeitado como algo que tem sentido em si mesmo".6
Para Kant, pois, o homem é um fim em si mesmo e, por isso, tem valor absoluto, não podendo, por conseguinte, ser usado como instrumento para algo, e, justamente por isso tem dignidade, é pessoa.
2.1. Concepções do conceito de dignidade da pessoa humana
Utilizando-nos da terminologia empregada por Miguel Reale, constatamos, historicamente, a existência de, basicamente, três concepções da dignidade da pessoa humana7: individualismo, transpersonalismo e personalismo.
Caracteriza-se o individualismo pelo entendimento de que cada homem, cuidando dos seus interesses, protege e realiza, indiretamente, os interesses coletivos. Seu ponto de partida é, portanto, o indivíduo.
Tal juízo da dignidade da pessoa humana, por demais limitado, característico do liberalismo ou do "individualismo-burguês"8, "dista de ser una respetable reliquia de la arqueologia cultural"9, compreende um modo de entender-se os direitos fundamentais.
Estes serão, antes de tudo, direitos inatos e anteriores ao Estado, e impostos como limites à atividade estatal, que deve, pois, se abster, o quanto possível, de se intrometer na vida social. São direitos contra o Estado, "como esferas de autonomia a preservar da intervenção do Estado"10. Denominam-se-lhes, por isso, direitos de autonomia e direitos de defesa11.
Redunda, ainda, como advertem Reale12 e Canotilho13, num balizamento da compreensão e interpretação do Direito e, a fortiori, da Constituição. Assim, interpretar-se-á a lei com o fim de salvaguardar a autonomia do indivíduo, preservando-o das interferências do Poder Público. Ademais, num conflito indivíduo versus Estado, privilegia-se aquele.
Já com o transpersonalismo, temos o contrário: é realizando o bem coletivo, o bem do todo, que se salvaguardam os interesses individuais; inexistindo harmonia espontânea entre o bem do indivíduo e o bem do todo, devem preponderar, sempre, os valores coletivos. Nega-se, portanto, a pessoa humana como valor supremo14. Enfim, a dignidade da pessoa humana realiza-se no coletivo.
Consectárias desta corrente serão as concepções socialista ou coletivista, do qual a mais representativa será, sem dúvida, a marxista. Com efeito, para Marx, os direitos do homem apregoados pelo liberalismo não ultrapassam "o egoísmo do homem, do homem como membro da sociedade burguesa, isto é, do indivíduo voltado para si mesmo, para seu interesse particular, em sua arbitrariedade privada e dissociado da comunidade"15. Distinguindo os direitos dos homens dos direitos do cidadão, aqueles nada mais são que os direitos do homem separado do homem e da comunidade.
Conseqüência lógica será uma tendência na interpretação do Direito que limita a liberdade em favor da igualdade16, que tende a identificar os interesses individuais com os da sociedade, que privilegia estes em detrimento daqueles.
A terceira corrente, que ora se denomina personalismo, rejeita quer a concepção individualista, quer a coletivista; nega seja a existência da harmonia espontânea entre indivíduo e sociedade, resultando, como vimos, numa preponderância do indivíduo sobre a sociedade, seja a subordinação daquele aos interesses da coletividade.
Marcante nesta teoria, em que se busca, principalmente, a compatibilização, a interrelação entre os valores individuais e valores coletivos, é a distinção entre indivíduo e pessoa17. Se ali, exalta-se o individualismo, o homem abstrato, típico do liberalismo-burguês, aqui, destaca-se que ele "não é apenas uma parte. Como uma pedra-de-edifício no todo, ele é, não obstante, uma forma do mais alto gênero, uma pessoa, em sentido amplo - o que uma unidade coletiva jamais pode ser", como sintetiza Nicolai Hartimann, citado por Mata-Machado.18.
Assim, enquanto o indivíduo é uma "unità chiusa in se stessa", a pessoa é uma "unità aperta". Em conseqüência, não há que se falar, aprioristicamente, num predomínio do indivíduo ou no predomínio do todo. A solução há de ser buscada em cada caso, de acordo com as circunstâncias; solução que pode ser a compatibilização entre os mencionados valores, "fruto de uma ponderação na qual se avaliará o que toca ao indivíduo e o que cabe ao todo"19, mas que pode, igualmente, ser a preeminência de um ou de outro valor.
Porém, se se defende, como Lacambra, que "não há no mundo valor que supere ao da pessoa humana"20, a primazia pelo valor coletivo não pode, nunca, sacrificar, ferir o valor da pessoa. A pessoa é, assim, um minimum, ao qual o Estado, ou qualquer outra instituição, ser, valor não pode ultrapassar21.
Neste sentido, defende-se que a pessoa humana, enquanto valor, e o princípio correspondente, de que aqui se trata, é absoluto, e há de prevalecer, sempre, sobre qualquer outro valor ou princípio22.
3. Os princípios como espécie de norma
Estabelecido que a pessoa — distinta do indivíduo — é um valor e o seu princípio correspondente — a dignidade da pessoa humana — é absoluto, e há de prevalecer sempre sobre qualquer outro valor ou princípio, impõe-se, agora, que se precise o conceito de princípio.
Alinhamo-nos entre aqueles — contrariamente ao pensamento dominante ainda no Brasil — que propugnam serem os princípios espécies de norma, diferentes, portanto, lógica e qualitativamente, das regras; dotados, pois, de igual positividade. São, numa palavra, princípios expressos constitucionalmente, princípios positivos.
Herbert Hart, Em O Conceito de Direito, lançado em 1961, ensina que, na busca sobre a natureza do Direito, há certas questões principais recorrentes: uma delas refere-se a que o sistema jurídico consiste pelo menos em geral em regras. Ele mesmo, constrói um modelo complexo, o Direito como a união entre regras primárias e regras secundárias, que é, assim, "a chave para a ciência do direito"23.
Reformulando o conceito de obrigação, ele remete-o necessariamente a uma regra. Em vez de se falar nela como predição ou cálculo de probabilidades, de reação ao desvio, deve-se dizer que a atitude de uma pessoa enquadra-se em tal regra.
Regra que, enquanto padrão de comportamento, "um guia de conduta da vida social" não é, de forma alguma, uma idéia simples. Há, por conseguinte, necessidade de assinalar os diferentes tipos. Assim, distinguem-se as regras primárias e as regras secundárias. Aquelas determinam que as pessoas façam ou se abstenham de fazer certas ações; estas asseguram às pessoas a possibilidade de criar, extinguir, modificar, julgar as regras primárias. Nas palavras de Hart: "As regras do primeiro tipo impõem deveres, as regras do segundo tipo atribuem poderes, público ou privado"24.
Por sua vez, as regras secundárias são de três tipos:
a) de reconhecimento (rule of recognition), permitem definir quais as regras que pertencem ao ordenamento. Seu objetivo é eliminar as incertezas quanto às regras primárias;
b) de alteração (rules of change), que conferem poder a um indivíduo ou a um corpo de indivíduos para introduzir novas regras primárias e eliminar as antigas, impedindo, assim, que sejam estáticas;
c) de julgamento ou de adjudicação (rule of adjudication), dão poder aos indivíduos para proferir determinações dotadas de autoridade respeitantes à questão sobre se, num caso concreto, foi violada uma regra primária25.
Por sua vez, o jusfilósofo norteamericano Ronald Dworkin, sucessor de Herbert Hart na cattedra de Jurisprudence na Universidade de Oxford, objetiva, em seus escritos26, fundamentalmente, mostrar as insuficiências seja do positivismo seja do utilitarismo27. Para tanto, valer-se-á, sobretudo, da diferença, de caráter lógico, entre princípio e regra. O direito é, pois, para ele um sistema de regras e princípios.
Dworkin monstra que, nos chamados casos-limites ou hard cases, quando os juristas debatem e decidem em termos de direitos e obrigações jurídicas, eles utilizam standards que não funcionam como regras, mas trabalham com princípios, política e outros gêneros de standards.
Princípios (principles) são, segundo este autor, exigências de justiça, de eqüidade ou de qualquer outra dimensão da moral. Deste conceito decorre, como lembra Vera Karam de Chueri que "o texto constitucional — não importa se brasileiro ou americano — faz com que a validade de um direito dependa não de uma determinada regra positiva, mas de complexos problemas morais"28, inexistindo, por conseguinte, a dicotomia entre questões de direito e questões de justiça, em que se supera a antinomia clássica Direito Natural/Direito Positivo29.
Afirmar que os juristas empregam princípios e não regras é admitir que são duas espécies de norma, cuja diferença é de caráter lógico. Embora orientem para decisões específicas sobre questões de obrigações jurídicas, diferem pelo cunho da orientação que sugerem. Assim, as regras, ao contrário dos princípios, indicam conseqüências jurídicas que se seguem automaticamente quando ocorrem as condições previstas. Dizemos, pois, com Lourival Vilanova, citado por Grau, que "se se dá um fato F qualquer, então o sujeito S deve fazer ou deve omitir ou pode fazer ou pode omitir conduta C ante outro sujeito S"30.
Um princípio não determina as condições que tornam sua aplicação necessária. Ao revés, estabelece uma razão (fundamento) que impele o intérprete numa direção, mas que não reclama uma decisão específica, única. Daí acontecer que um princípio, numa determinada situação, e frente a outro princípio, não prevaleça, o que não significa que ele perca a sua condição de princípio, que deixe de pertencer ao sistema jurídico.
Por conseguinte, as regras, ao contrário dos princípios, são aplicáveis na forma do tudo ou nada. Se se dão os fatos por ela estabelecidos, então ou a regra é válida e, em tal caso, deve-se aceitar a conseqüência que ela fornece; ou a regra é inválida e, em tal caso, não influi sobre a decisão. Num jogo de basquete, por exemplo, se um jogador comete três faltas, está fora do jogo.
Desta primeira diferença decorre uma outra: os princípios possuem uma dimensão de peso ou de importância que as regras não têm.. Quando os princípios conflitam (como a política de proteção aos consumidores de automóveis e os princípios da liberdade contratual) para resolvê-lo é necessário ter em consideração o peso relativo de cada um. Quem deve decidir um problema, em que se requer a valoração de todos os princípios concorrentes e controversos que ele traz consigo, mais que identificar um princípio válido, impõe-se encontrar uma conciliação entre eles31.
As regras não possuem esta dimensão. Não podemos afirmar que uma regra é mais importante do que uma outra dentro do sistema jurídico, no sentido de que, se duas regras colidem, uma prevalece sobre a outra em virtude de seu maior peso.
Assim, se duas regras colidem, então uma delas não pode ser válida. Em conseqüência, cada sistema jurídico possuirá meios que possibilitem regular e decidir tais conflitos. A este conflito a doutrina denomina antinomia, que são resolvidas pelos critérios:
cronológico — lex posterior derogat priori;
hierárquico — lex superior derogat inferior;
da especialidade — lex specialis derogat generali32.
O pensamento de Ronald Dworkin é retomado, dentro do sistema da civil law, pelo constitucionalista alemão Robert Alexy, que, considerando o modelo do jusfilósofo americano "demasiado simple" busca formular "un modelo más diferenciado"33.
Em Robert Alexy, a teoria dos princípios — e a distinção entre princípios e regras — constitui o marco de uma teoria normativa-material dos direitos fundamentais e, com ela, o ponto de partida para responder à pergunta acerca da possibilidade e dos limites da racionalidade no âmbito destes direitos. E será, por conseguinte, a base da fundamentação jusfundamental e a chave para a solução dos problemas centrais da dogmática dos direitos fundamentais34.
Assim, sem uma perfeita compreensão desta distinção, própria da estrutura das normas de direito fundamental, é impossível formular-se uma teoria adequada dos limites dos direitos fundamentais, quanto à colisão entre estes e uma teoria suficiente acerta do papel que eles desempenham no sistema jurídico.
Para Robert Alexy, o ponto decisivo para distinção entre regras e princípios é que estes são mandados de otimização, isto é, são normas que ordenam algo que deve ser realizado na maior medida possível, dentro das possibilidades jurídicas e reais existentes. Que podem ser cumpridos em diferentes graus e que a medida devida de seu cumprimento depende não somente das possibilidades reais mas também das jurídicas35.
Por sua vez, as regras são normas que somente podem ser cumpridas ou não. Se uma regra é válida, então, há de fazer-se exatamente o que ela exige, nem mais, nem menos. Elas contêm, pois, determinações, no âmbito do fática e juridicamente possível. Isto significa que a diferença entre regras e princípios é qualitativa, e não apenas de grau36.
Onde, porém, a distinção entre regras e princípios se mostra mais claramente se dá nas colisões de princípios e no conflitos de regras. Embora apresentem um aspecto em comum — o fato de duas normas, aplicadas independentemente, conduzem a resultados incompatíveis — diferenciam-se, fundamentalmente, na forma como se soluciona o conflito.
Assim, os conflitos de regras se resolvem na dimensão de validez. Ou seja, somente podem ser solucionados introduzindo-se uma regra de exceção, debilitando o seu caráter definitivo, ou declarando-se inválida, pelo menos, uma das regras. Com efeito, uma norma vale ou não vale juridicamente. E se ela vale e é aplicável a um caso, significa que vale também sua conseqüência jurídica37.
Daí que o conflito entre duas regras há de ser solucionado por outras regras, como "lex posterior derogat legi priori" e "lex specialis derogat legi generali". E conclui Alexy :"lo fundamental es que la decisión es una decisión acerca de la validez"38.
De sua banda, a colisão de princípios se resolve na dimensão de peso, tal como o expressa Ronald Dworkin. Quando dois princípios entram em colisão — por exemplo, se um diz que algo é proibido e outro, que é permitido —, um dos dois tem que ceder frente ao outro, porquanto um limita a possibilidade jurídica do outro. O que não implica que o princípio desprezado seja inválido, pois a colisão de princípios se dá apenas entre princípios válidos.