4. O princípio da dignidade da pessoa humana na Constituição brasileira de 1988
Em Kant, como vimos, o que caracteriza o ser humano, e o faz dotado de dignidade especial é que ele nunca pode ser meio para os outros, mas fim em si mesmo. Como diz Kant, "o homem, e, duma maneira geral, todo o ser racional, existe como fim em si mesmo, não só como meio para o uso arbitrário desta ou daquela vontade"39.
Conseqüentemente, cada homem é fim em si mesmo. E se o texto constitucional diz que a dignidade da pessoa humana é fundamento da República Federativa do Brasil, importa concluir que o Estado existe em função de todas as pessoas e não estas em função do Estado. Aliás, de maneira pioneira, o legislador constituinte, para reforçar a idéia anterior, colocou, topograficamente, o capítulo dos direitos fundamentais antes da organização do Estado.
Assim, toda e qualquer ação do ente estatal deve ser avaliada, sob pena de inconstitucional e de violar a dignidade da pessoa humana, considerando se cada pessoa é tomada como fim em si mesmo ou como instrumento, como meio para outros objetivos. Ela é, assim, paradigma avaliativo de cada ação do Poder Público e "um dos elementos imprescindíveis de atuação do Estado brasileiro"40.
No entanto, tomar o homem como fim em si mesmo e que o Estado existe em função dele, não nos conduz a uma concepção individualista da dignidade da pessoa humana. Ou seja, que num conflito indivíduo versus Estado, privilegie-se sempre aquele. Com efeito, a concepção que aqui se adota, denominada personalista, busca a compatibilização, a interrelação entre os valores individuais e coletivos; inexiste, portanto, aprioristicamente, um predomínio do indivíduo ou o predomínio do todo. A solução há de ser buscada em cada caso, de acordo com as circunstâncias, solução que pode ser tanto a compatibilização, como, também, a preeminência de um ou outro valor.
A pessoa é, nesta perspectiva, o valor último, o valor supremo da democracia, que a dimensiona e humaniza41. É, igualmente, a raiz antropológica constitucionalmente estruturante do Estado de Direito o que, como vimos, não implica um conceito "fixista" da dignidade da pessoa humana, o "homo clausus", ou o "antropologicun fixo". Ao contrário, sendo a pessoa unidade aberta, sugere uma "integração pragmática"42.
Saliente-se, ainda, que, pelo caráter intersubjetivo da dignidade da pessoa humana, defendido por W. Maihofer, citado por Pérez Luño 43, na elaboração de seu significado parte-se da situação básica (Grundsituation) do homem em sua relação com os demais, isto é, da situação do ser com os outros (Mitsein), em lugar de fazê-lo em função do homem singular encerrado em sua esfera individual (selbstein). O que, ressaltamos nós, tem particular importância na fixação, em caso de colisão entre direitos fundamentais de dois indivíduos, do minimun invulnerável, além de, como destacou Pérez Luño, contribuir no estabelecimento dos limites e alcance dos direitos fundamentais.
Relembre-se, neste momento, a decisão do Tribunal Constitucional espanhol que, precisando justamente o significado da primazia da dignidade da pessoa humana (art. 10.1. da Constituição espanhola), sublinhou que a dignidade há de permanecer inalterável qualquer que seja a situação em que a pessoa se encontre, constituindo, em conseqüência, um mininum invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar44.
Neste sentido, ou seja, que a pessoa é um minimun invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, dissemos que a dignidade da pessoa humana é um princípio absoluto; porquanto, repetimos, ainda que se opte, em determinada situação, pelo valor coletivo, por exemplo, esta opção não pode nunca sacrificar, ferir o valor da pessoa.
Distanciamo-nos, pois, do pensamento de Robert Alexy, que, como vimos, rejeita, radicalmente, a existência de princípios absolutos, chegando a afirmar que se os há, impõe-se modificar o conceito de princípio.
Ernst Bloch, citado por Pérez Luño45, destaca que a dignidade da pessoa humana possui duas dimensões que lhe são constitutivas: uma negativa e outra positiva. Aquela significa que a pessoa não venha ser objeto de ofensas ou humilhações. Daí o nosso texto constitucional dispor, coerentemente, que "ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante" (art. 5º, III, CF). Com efeito, "a dignidade — ensina Jorge Miranda46 — pressupõe a autonomia vital da pessoa, a sua autodeterminação relativamente ao Estado, às demais entidades públicas e às outras pessoas".
Impõe-se, por conseguinte, a afirmação da integridade física e espiritual do homem como dimensão irrenunciável da sua individualidade autonomamente responsável; a garantia da identidade e integridade da pessoa através do livre desenvolvimento da personalidade; a libertação da "angústia da existência" da pessoa mediante mecanismos de socialidade, dentre os quais se incluem a possibilidade de trabalho e a garantia de condições existenciais mínimas"47.
Por sua vez, a dimensão positiva presume o pleno desenvolvimento de cada pessoa, que supõe, de um lado, o reconhecimento da total autodisponibilidade, sem interferências ou impedimentos externos, das possibilidades de atuação próprias de cada homem; de outro, a autodeterminação que surge da livre projeção histórica da razão humana, antes que uma predeterminação dada pela natureza48.
Vimos que a proclamação do valor distinto da pessoa humana teve como conseqüência lógica a afirmação de direitos específicos de cada homem. A dignidade da pessoa humana é, por conseguinte, o núcleo essencial dos direitos fundamentais, a "fonte jurídico-positiva dos direitos fundamentais"49, a fonte ética, que confere unidade de sentido, de valor e de concordância prática ao sistema dos direitos fundamentais50, o "valor que atrai a realização dos direitos fundamentais"51, "el valor básico (Grundwert) fundamentador de los derechos humanos"52. "Los derechos fundamentales son la expresión más inmediata de la dignidade humana"53.
Daí falar-se, em conseqüência, na centralidade dos direitos fundamentais dentro do sistema constitucional, que eles apresentam não apenas um caráter subjetivo mas também cumprem funções estruturais, são "conditio sine qua non del Estado constitucional democrático"54.
Outrossim, a fundamentalidade destes direitos55, tanto formal como material. Ou seja, as normas de direito fundamental ocupam o grau superior da ordem jurídica; estão submetidas a processos dificultosos de revisão; constituem limites materiais da própria revisão; vinculam imediatamente os poderes públicos; significam a abertura a outros direitos fundamentais.
Dessa maneira, a interpretação dos demais preceitos constitucionais e legais há de fazer-se à luz daquelas normas constitucionais que proclamam e consagram direitos fundamentais, as normas de direito fundamental. Com razão, Canotilho fala "que a interpretação da Constituição pré-compreende uma teoria dos direitos fundamentais"56. E, nas palavras de Pérez Luño,
"para cumplir sus funciones los derechos fundamentales están dotados de una especial fuerza expansiva, o sea, de una capacidad de proyectar-se, a través de los consguientes métodos o técnicas, a la interpretación de todas las normas del ordenamiento jurídico. Así, nuestro Tribunal Constitucional há reconocido, de forma expressiva, que los derechos fundamentales son el parámetro ‘de conformidad con el cual deben ser interpretadas todas las normas que componen nuestro ordenamiento’"57.
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