EMENTA: 1. A dignidade da pessoa e sua consagração constitucional. 2. O conteúdo do princípio. 3. A igualdade entre os homens. 4. A impossibilidade de degradação do ser humano. 4.1. Dignidade da pessoa humana, direito e processo penal. 4.2. Dignidade da pessoa humana como limite à autonomia da vontade. 4.3. A tutela dos direitos da personalidade. 5. Direito a uma existência material mínima. 6. Palavras finais.
1. A dignidade da pessoa e sua consagração constitucional.
Instituição em torno da qual, desde os mais remotos tempos, sempre gravitou a experiência jurídica das comunidades foi a personalidade. Significa a possibilidade de conferir-se a um ente, humano ou moral, a aptidão de adquirir direitos e contrair obrigações.
Na atualidade, é pacífica a sua titulação por todos os homens. Observando-se a longa evolução por que passou a humanidade, vê-se que tal nem sempre aconteceu. A escravidão, bastante arraigada nos hábitos dos povos clássicos da Grécia e de Roma, implicava na privação do estado de liberdade do indivíduo, sendo reputada como a capitis deminutio máxima.
Coube ao pensamento cristão, fundado na fraternidade, provocar a mudança de mentalidade em direção à igualdade dos seres humanos. Essa luta, que teve seu lugar ainda no final do Império Romano, com a proibição de crueldades aos escravos, imposta pelo Imperador Constantino, continuara com o ressurgimento da escravidão, provocado pelas navegações, de modo a merecer censura do Papa Paulo III, através da bula Sublimis Deus, de 1537, somente cessando com o triunfar dos movimentos abolicionistas do Século XIX e do alvorecer da centúria que acaba de findar-se(1).
Na atualidade, pauta a tendência dos ordenamentos o reconhecimento do ser humano como o centro e o fim do Direito. Essa inclinação, reforçada ao depois da traumática barbárie nazi-fascista, encontra-se plasmada pela adoção, à guisa de valor básico do Estado Democrático de Direito, da dignidade da pessoa humana.
A Constituição da República italiana, de 27 de dezembro de 1947, pareceu propender a esse respeito quando, no pórtico do seu art. 3º, inserido no espaço reservado aos Princípios Fundamentais, afirmou que "todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei".
Porém, a iniciativa pioneira nesse manifestar é admitida como pertencente à Lei Fundamental de Bonn, de 23 de maio de 1949, responsável por solenizar, no seu art. 1.1., incisiva declaração: "A dignidade do homem é intangível. Os poderes públicos estão obrigados a respeitá-la e protegê-la". O preceito recolhe sua inspiração na Declaração Universal dos Direitos Humanos, aprovada pela Assembléia Geral das Nações Unidas de 10 de dezembro de 1948, sem olvidar o respeito aos direitos naturais, inalienáveis e sagrados do homem, propugnados pelos revolucionários franceses através da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 26 de agosto de 1789(2).
Nessa linha, a Constituição da República Portuguesa, promulgada em 1976, acentua, logo no seu art. 1º, inerente aos princípios fundamentais, que: "Portugal é uma República soberana, baseada, entre outros valores na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e empenhada na construção de uma sociedade livre, justa e solidária". Da mesma forma, a Constituição da Espanha, advinda após a derrocada do franquismo, expressa : "A dignidade da pessoa, os direitos invioláveis que lhe são inerentes, o livre desenvolvimento da personalidade, o respeito pela lei e pelos direitos dos outros são fundamentos da ordem política e da paz social". Na França, malgrado a sua tradição na proteção dos direitos individuais, não se encontra o princípio explicitado no sucinto texto da Constituição de 1958, tendo sido, como nos informa FRANCK MODERNE(3), objeto de extração pelo labor hermenêutico do Conselho Constitucional, servindo de arrêt de principe a decisão 94-343-344 DC, proferida em 27 de julho de 1994.
Com a derrocada do comunismo no leste europeu, as recentes constituições dos países que outrora se filiaram a essa forma de governo totalitária, passaram a cultuar, entre as suas diretrizes, a dignidade do ser humano. Assim se verificou nos textos seguintes: Constituição da República da Croácia, de 22 de dezembro de 1990 (art. 25); Preâmbulo da Constituição da Bulgária, de 12 de julho de 1991; Constituição da Romênia, de 08 de dezembro de 1991 (art. 1º); Lei Constitucional da República da Letônia, de 10 de dezembro de 1991 (art. 1º); Constituição da República eslovena, de 23 de dezembro de 1991 (art. 21); Constituição da República da Estônia, de 28 de junho de 1992 (art. 10º); Constituição da República da Lituânia, de 25 de outubro de 1992 (art. 21); Constituição da República eslovaca, de 1º de setembro de 1992 (art. 12); Preâmbulo da Constituição da República tcheca, de 16 de dezembro de 1992; Constituição da Federação da Rússia, de 12 de dezembro de 1993 (art. 21).
O nosso constitucionalismo que, a partir de 1934, vem sofrendo forte influxo germânico, não ficou alheio ao tema(4). O Constituinte de 1988 deixou claro que o Estado Democrático de Direito que instituía tem, como fundamento, a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III).
Traçada essa exposição inicial, volveremos nossa abordagem em direção à identificação do âmbito de conformação material do princípio para, em seguida, apontar as conseqüências de maior relevo que resultam do seu reconhecimento em nossa Lei Maior.
2. O conteúdo do princípio.
O postulado da dignidade humana, em virtude da forte carga de abstração que encerra, não tem alcançado, quanto ao campo de sua atuação objetiva, unanimidade entre os autores, muito embora se deva, de logo, ressaltar que as múltiplas opiniões se apresentam harmônicas e complementares.
KARL LARENZ(5), instado a pronunciar-se sobre o personalismo ético da pessoa no Direito Privado, reconhece na dignidade pessoal a prerrogativa de todo ser humano em ser respeitado como pessoa, de não ser prejudicado em sua existência (a vida, o corpo e a saúde) e de fruir de um âmbito existencial próprio.
Por sua vez, ERNESTO BENDA(6) aduz que a consagração, no art. 1.1. da Lei Fundamental tedesca, da dignidade humana como parâmetro valorativo, evoca, inicialmente, o condão de impedir a degradação do homem, em decorrência de sua conversão em mero objeto de ação estatal. Mas não é só. Igualmente, esgrime a afirmativa, de aceitação geral, de competir ao Estado a procura em propiciar ao indivíduo a garantia de sua existência material mínima.
Mais completo, JOAQUÍN ARCE Y FLÓREZ - VALDÉS(7) vislumbra no respeito à dignidade da pessoa humana quatro importantes conseqüências: a) igualdade de direitos entre todos os homens, uma vez integrarem a sociedade como pessoas e não como cidadãos; b) garantia da independência e autonomia do ser humano, de forma a obstar toda coação externa ao desenvolvimento de sua personalidade, bem como toda atuação que implique na sua degradação; c) observância e proteção dos direitos inalienáveis do homem; d) não admissibilidade da negativa dos meios fundamentais para o desenvolvimento de alguém como pessoa ou a imposição de condições subumanas de vida. Adverte, com carradas de acerto, que a tutela constitucional se volta em detrimento de violações não somente levadas a cabo pelo Estado, mas também pelos particulares.
Vistas essas posições, lícito proceder às suas conciliações mediante a decomposição alvitrada pelo último dos autores. É que este, ao desmembrar os diversos pontos de reflexo do princípio analisado, demais de encampar a opinião dos doutrinadores antes referidos, ampliou o raio de ação demarcado à dignidade da pessoa humana.
Com base na sistematização de JOAQUÍN ARCE Y FLÓREZ - VALDÉS, podemos, mediante as adaptações necessárias, revelar o substrato material da dignidade da pessoa humana em nossa ordem jurídica.
Disso resulta que a interferência do princípio se espraia, entre nós, nos seguintes pontos: a) reverência à igualdade entre os homens (art. 5º, I, CF); b) impedimento à consideração do ser humano como objeto, degradando-se a sua condição de pessoa, a implicar na observância de prerrogativas de direito e processo penal, na limitação da autonomia da vontade e no respeito aos direitos da personalidade, entre os quais estão inseridas as restrições à manipulação genética do homem; c) garantia de um patamar existencial mínimo(8).
Prosseguindo, examinaremos, pormenorizadamente, cada um dos aspectos mencionados.
3. A igualdade entre os homens.
A consagração da dignidade da pessoa humana, como visto, implica em considerar-se o homem, com exclusão dos demais seres, como o centro do universo jurídico. Esse reconhecimento, que não se dirige a determinados indivíduos, abrange todos os seres humanos e cada um destes individualmente considerados, de sorte que a projeção dos efeitos irradiados pela ordem jurídica não há de se manifestar, a princípio, de modo diverso ante a duas pessoas.
Daí seguem-se duas importantes conseqüências. De logo, a de que a igualdade entre os homens representa obrigação imposta aos poderes públicos, tanto no que concerne à elaboração da regra de direito (igualdade na lei) quanto em relação à sua aplicação (igualdade perante a lei). Necessária, porém, a advertência de que o reclamo de tratamento isonômico não exclui a possibilidade de discriminação, mas sim a de que esta se processe de maneira injustificada e desarrazoada. Assim bem explanou CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO, em excelente monografia, [9] corroborado pela ensinança de CARMEN LÚCIA ANTUNES ROCHA(10).
Em segundo lugar, emerge a consideração da pessoa humana como um conceito dotado de universalidade. Inviável, portanto, qualquer distinção de direitos entre os nacionais e estrangeiros, salvo quanto àqueles vinculados ao exercício da cidadania.
Assim é que deve ser entendido o caput do art. 5º da Lei Maior, de maneira que a titularidade dos direitos que enuncia se volte a todos aqueles que se encontrem vinculados à ordem jurídica brasileira, deles não se podendo privar o estrangeiro só pelo fato de não residir em solo pátrio. Seria, verbi gratia, inadmissível o não conhecimento pela jurisdição de habeas corpus, impetrado em favor de alienígena que esteja de passagem pelo território nacional, em virtude de neste não manter residência.
Sem razão JOSÉ AFONSO DA SILVA(11) quando propõe que a limitação dos destinatários dos direitos individuais pelo Constituinte de 1988, a exemplo das cláusulas constantes nas constituições pretéritas, há de acarretar conseqüências normativas. Melhor se nos afigura a postura assumida por PONTES DE MIRANDA, (12) ainda quando vigente o art. 153, caput, da Constituição de 1969, e, nos dias atuais, por CELSO RIBEIRO BASTOS(13) e NAGIB SLAIBI FILHO(14).
A esse respeito, importante salientar o relato de JOAQUÍN ARCE Y FLÓREZ - VALDÉS(15), mencionando que o Tribunal Constitucional Espanhol, através de decisão prolatada em 30 de setembro de 1995, entendeu que os direitos pertencentes à pessoa, enquanto tal, não abrangem somente os espanhóis, mas, igualmente, os estrangeiros e que tais direitos, como frisado na anterior deliberação de 23 de novembro de 1984, são aqueles imprescindíveis à garantia da dignidade da pessoa humana.
4. A impossibilidade de degradação do ser humano.
Outra vertente de relevo pela qual se espraia a dignidade da pessoa humana está na premissa de não ser possível a redução do homem à condição de mero objeto do Estado e de terceiros. Veda-se a coisificação da pessoa. A abordagem do tema passa pela consideração de tríplice cenário, concernente às prerrogativas de direito e processo penal, à limitação da autonomia da vontade e à veneração dos direitos da personalidade.
4.1. Dignidade da pessoa humana, direito e processo penal.
Aqui se está a garantir que o Estado, ao manejar o jus puniendi em benefício da restauração da paz social, atue de modo a não se distanciar das balizas impostas pela condição humana do acusado da prática de crime. Por mais abjeta e reprochável que tenha sido a ação delituosa, não há como se justificar seja o seu autor privado de tratamento digno.
Abordando o tema à luz do arts. 1.1 e 103.1, ambos da Constituição alemã, ERNESTO BENDA(16) afirma que a dignidade da pessoa humana, no campo penal, traduz ao acusado o direito de poder defender-se mediante ativa participação no processo, como também a não ser forçado a falar contra a sua vontade, excluindo-se a utilização de meios psicológicos ou técnicos (narcoanálise ou detector de mentiras), a fim de se averiguar a veracidade das declarações daquele.
Linhas adiante(17) aduz que o art. 1.1 da Lei Fundamental de 1949 proíbe penas desproporcionais e cruéis, tendo em vista a necessidade de se respeitar os pressupostos básicos de uma existência individual e social do condenado, estando a licitude da prisão perpétua a depender de se reservar àquele a possibilidade de liberdade, uma vez cumprida parte considerável da pena. Quanto à sanção capital, sustenta que a sua imposição, através da reforma do art. 102 da Constituição, enfrentaria os limites do poder constituinte derivado, impostos pelo art. 1.2, em virtude de pressupor que o Estado se subtrairia à missão de ressocializar o delinqüente.
A esse respeito, não restou omisso o direito constitucional brasileiro. A Constituição de 1988, no rol de direitos individuais do seu art. 5º, trouxe a lume importantes exigências que o Estado, no desenrolar de sua função punitiva, há de observar, sob pena de desrespeitar a dignidade da pessoa humana(18). Assim sendo, podemos descortinar, no referido dispositivo, garantias inerentes à: a) vedação em submeter qualquer pessoa a tratamento desumano ou degradante (inciso III), assegurando-se ao preso o respeito à integridade física e moral (inciso XLIX); b) observância do devido processo legal (inciso LIV) (19) com todos os seus consectários, entre os quais o contraditório e a ampla defesa (inciso LV), o julgamento por autoridade competente (inciso LIII), a não admissibilidade de provas obtidas por meio ilícito (inciso LVI), a proscrição de juízos ou tribunais de exceção (inciso XXXVII) e a consideração de que ninguém será reputado culpado senão antes do trânsito em julgado de sentença condenatória (inciso LVII), importando esta última em pressupor que a segregação do acusado, antes da sentença irrecorrível, somente se legitima em situações proporcionais previstas em lei; c) legitimidade material do direito de punir, tais como a reserva legal da definição de crimes e cominação de penas (inciso XXXIX), a individualização destas na medida da culpabilidade do infrator (incisos XLV e XLVI), a interdição de determinadas sanções, tais como a pena capital, a prisão perpétua, os trabalhos forçados, o banimento e as penas cruéis (inciso XLVII); d) movimentação da competência prisional (incisos LXI a LXVI e LXVIII); e) execução da pena (incisos XLVIII e L) (20).
Os preceptivos citados servem para ilustrar a grande preocupação dispensada ao princípio da dignidade da pessoa humana, a fim de impedir que a atividade punitiva do Estado, manifestada sob o interesse de velar pela segurança da coletividade, resulte como justificativa à depreciação do indivíduo.
4.2. Dignidade da pessoa humana como limite à autonomia da vontade.
Valor que, amparado na igualdade formal das partes, granjeou enorme prestígio com o Estado Liberal foi o da autonomia da vontade, de modo que o art. 1.134 do Código Civil de Napoleão, promulgado em 1804, solenizava o preponderante papel da força geratriz do consentimento, afirmando fazer o contrato lei entre as partes.
Essa concepção sofrera forte mitigação com o triunfar do Estado prestacionista, calcado na constatação de que substancialmente as pessoas apresentam desigualdades, e, por isso, a manifestação volitiva há de encontrar pontos de contenção.
Nesta abordagem, não nos deteremos na carga limitativa que os mandamentos legais, no intuito de compensar a qualidade de hipossuficiente de alguns contratantes, encetam para delimitar as faculdades jurídicas decorrentes da vontade. A nossa atenção será dispensada àquelas situações em que um dos contratantes é reduzido à condição de mero objeto da pretensão contratual, com o desrespeito à sua condição de pessoa, tal como se verifica nas hipóteses de risco de vida, ou em que a execução da prestação importe para o pactuante em sua exposição ao ridículo.
Questão interessante é a das obrigações cujo cumprimento envolve risco de vida. LUIS DÍEZ - PICAZO e ANTONIO GULLÓN(21), demais de afirmarem que a maioria das legislações que se têm ocupado sobre o assunto consideram inexigíveis as prestações capazes de implicar na realização de atos excepcionalmente perigosos para a vida ou integridade física do obrigado, sustentam que, em tais situações, cuja enumeração exaustiva é impossível proceder, há a autoridade social de servir-se da consciência social, com vistas a verificar com que intensidade se possa estimar o contrato como contrário à ordem pública e aos bons costumes.
Em nosso direito, não se pode perder de vista o art. 82 do Código Civil, ao inserir, como condição objetiva de validade do negócio jurídico, a liceidade de seu objeto, o qual não poderá contrariar a ordem pública, a moral e os bons costumes.
Nessa linha, pode-se citar o art. 7º, XXXIII, da CF, que, no intuito de preservar a saúde do laborista de tenra idade, proíbe o trabalho noturno, perigoso ou insalubre a menores de dezoito anos e de qualquer labor a menores de dezesseis anos, salvo na condição de aprendiz e, mesmo assim, a partir de quatorze anos.
Dessarte, vindo a lume um contrato, em que uma das partes se obrigara a cumprir prestação consistente em ato suscetível de acarretar-lhe, em condições anormais, risco de vida, ou capaz de impor séria ofensa à saúde, tem-se a ocorrência de maltrato à ordem pública e, como conseqüência, a invalidade do negócio jurídico (art. 145, II, CCB). Aqui a ordem pública é ferida independente da eventual desigualdade econômica das partes, mas em razão do objeto da relação jurídica obrigacional traduzir menoscabo à índole humana do indivíduo.
Outras hipóteses aptas a gerarem desrespeito à dignidade do ser humano se centram naquelas contratações em que o contratado, durante a execução do seu objeto, encontra-se ante situação capaz de submetê-lo ao ridículo, ou melhor, a tratamento degradante.
Ilustra bem o assunto o comentário, levado a cabo por JOAQUIM B. BARBOSA GOMES(22), de decisão do Conselho de Estado da França, de outubro de 1995, responsável por acarretar sensível reviravolta na noção de ordem pública como retora do exercício do poder de polícia.
O fato, largamente presente nos noticiários, remontou ao final do ano de 1991, sendo patrocinado por empresa do ramo de entretenimento para jovens, ao lançar, em algumas discotecas da região metropolitana de Paris e arrabaldes, uma não usual atração, conhecida como "arremesso de anão" (lancer de nain), consistente no lançamento pela platéia de um indivíduo de pequena estatura (um anão) de um ponto a outro do estabelecimento, tal como se fosse um projétil.
Interditada a prática por ordem do prefeito de Morsang-sur-Orge, sob a alegativa de violação ao art. 131 do Código dos Municípios, bem assim com fundamento no art. 3º da Convenção Européia de Direitos Humanos, tal decisão foi anulada pelo Tribunal Administrativo de Versailles.
Levado o caso ao Conselho de Estado, este, decidindo recurso, reformou a decisão de primeiro grau da jurisdição administrativa, com vistas a manter hígido o ato administrativo impugnado, declarando que o respeito à dignidade da pessoa humana é um dos componentes da noção de ordem pública, cabendo à autoridade administrativa, no uso do poder de polícia, interditar espetáculo atentatório a tão importante valor. Da deliberação, algumas constatações ainda podem ser destacadas: a) a dignidade da pessoa humana, como lastro do poder de polícia, representa uma limitação à liberdade individual, mais precisamente à liberdade de contratar, tutelando, assim, o indivíduo contra si próprio; b) no escopo de definir o que se deve entender por tratamento degradante, o Conselho de Estado hauriu noção da Corte Européia dos Direitos Humanos (caso Tyer), ao apontar aquele na atitude "que humilha grosseiramente o indivíduo diante de outrem ou o leva a agir contra a sua vontade ou sua consciência".
Considerando-se que, na França, a dignidade da pessoa humana foi reverenciada pela jurisdição administrativa, a despeito de não constar expressa na Lei Fundamental, (23) com maior razão há de se concluir pela necessidade de sua observância nestas plagas, onde inserida como fundamento da República Federativa do Brasil (art. 1º, III), de modo que se há de concluir pela ilegitimidade das disposições, constantes em negócios jurídicos, que produzam situações de aviltamento do ser humano. A manifestação volitiva, nessas situações, expor-se-á a censuras do Judiciário e da Administração, calcadas, quanto a esta, na competência de polícia.
4.3. A tutela dos direitos da personalidade.
Conatural ao reconhecimento jurídico da dignidade da pessoa humana decorre a salvaguarda dos direitos da personalidade. Estes, consoante a precisão conceitual de CARLOS ALBERTO DA MOTA PINTO, (24) configuram "um conteúdo mínimo e imprescindível da esfera jurídica de cada pessoa", incidentes sobre a sua vida, saúde e integridade física, honra, liberdades física e psicológica, nome, imagem e reserva sobre a intimidade de sua vida privada. Dessa enumeração, emanam questões relativas à vida em formação, aos novos métodos de reprodução da pessoa humana, à manipulação genética da pessoa, (25) às situações de risco de vida, ao transplante de órgãos, tecidos e partes do corpo humano, entre outras de patente atualidade.
Notabilizam-se por serem: a) de natureza extrapatrimonial, embora o seu maltrato possa implicar em reflexos econômicos; b) direitos absolutos, com eficácia erga omnes, pois o seu respeito é imposto a todos (Estado e particulares); c) irrenunciáveis, não podendo o seu titular deles abdicar; d) intransmissíveis, restando inválida a sua cessão a outrem, mediante ato gratuito ou oneroso; e) imprescritíveis, uma vez que o transcurso do tempo, sem o seu uso pelo titular, não lhe acarreta a extinção.
Dentre essas características, duas delas guardam íntima vinculação ao tema sob enfoque, quais sejam a irrenunciabilidade e a intransmissibilidade. É que estas impedem que a vontade do titular possa legitimar o desrespeito à condição humana do indivíduo. Isso não quer significar que tornem, de todo, irrelevante o consentimento nessa seara. Apenas limitam a liberdade de sua manifestação quando contrária à ordem pública. Exemplificando, de nenhuma valia se afigura o consenso capaz de importar na supressão do bem da vida. Diferentemente, assoma admissível, observados certos parâmetros, uma limitação voluntária do direito à integridade física, como se vê no consentimento para intervenções médicas (dispensável em casos de estado de necessidade), submissão a operação plástica de cunho estético, participação em jogos esportivos violentos, etc.
Impondo balizas à expressão volitiva, o art. 81 do Código Civil português de 1966 assevera que o consentimento do titular não poderá contrariar a ordem pública, ficando-lhe assegurado o direito de revogá-lo a qualquer tempo. Por seu turno, a hispânica Lei 25, de 20 de dezembro de 1990, denominada Lei do Medicamento, disciplina, nos seus arts. 59 e seguintes, que o assentimento para a realização de experiências clínicas há de ser prestado de modo expresso, mediante escrito, após o interessado haver recebido informação precisa sobre a natureza da intervenção, seu alcance e risco, podendo, a qualquer tempo, ser revogado sem invocação de causa.
No nosso direito positivo, o art. 82 do Código Civil, ao mencionar os requisitos indispensáveis à validade dos atos jurídicos, é incisivo em dizer que esta requer objeto lícito, de modo a afastar as disposições ofensivas à ordem pública. No que concerne à revogabilidade do consentimento, tem-se, na recente Lei 9.434/97, a disciplinar a remoção de órgãos, tecidos e partes do corpo humano para fins de transplante e tratamento, que o doador, estando vivo, poderá, a qualquer instante revogar a doação, desde que o faça antes desta (art. 9º, §5º). Quanto à doação post mortem, a MP 1.718 – 3, de 30-12-98, inseriu §4º ao art. 4º, dispondo que o pai, a mãe, o filho ou o cônjuge, poderá manifestar-se contrariamente à doação, o que será prontamente acatado pelas equipes de transplante e remoção.
Necessário, assim, ter em conta que a observância das conseqüências jurídicas decorrentes dos direitos de personalidade é imprescindível ao respeito da dignidade do ser humano, porquanto a sua idealização, com ênfase para a jurisprudência alemã, formada ao depois da segunda conflagração mundial, teve em mira evitar que o indivíduo fosse submetido a qualquer sorte de menosprezo, quer pelo Estado, ou pelos demais indivíduos.