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Os EUA e o direito de ingerência.

Uma análise à luz do direito internacional público

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Agenda 01/11/2000 às 00:00

I – Introdução

Com o fim da chamada Guerra Fria, muitas especulações têm sido feitas a respeito de temas sensíveis ao campo das relações internacionais. Das indagações surgidas, inquieta a muitos a situação da segurança e da paz no novo quadro geopolítico que vai se desenhando a nível mundial.

O desaparecimento da URSS ocasionou o fim da bipolaridade existente entre dois blocos ideológicos – capitalista e socialista - que disputavam a hegemonia sobre o mundo. Desta forma, surge uma atual situação de isolamento dos EUA como única superpotência mundial no campo econômico e, sobretudo, militar.

Deste novo quadro emergiu a necessidade de um readeqüamento da postura dos EUA frente ao tema da segurança internacional e, consequentemente, de uma forte pressão por eles exercida sobre os antigos ordenamentos jurídicos internacionais que regulam a matéria, bem como sobre os organismos que os articulam e executam.

A década que se finda foi cenário de fatos desafiadores ao Direito Internacional Público (DIP) contemporâneo. Livres da antiga amarra do contrapeso soviético, os norte-americanos praticam uma política externa bem mais agressiva do ponto de vista da intervenção ou ingerência em assuntos regionais, ou mesmo internos, de outras nações ao redor de todo o mundo. Não que isto não fosse também observado durante a Guerra Fria, mas, entretanto, a ameaça externa comunista que lastreava as antigas manobras intervencionistas deste país não pode mais ser usada como argumento. A nova postura de ingerência internacional americana dá-se sobre fatos reais diferentes e alicerça-se em argumentos também diferenciados.

A Guerra do Golfo – até o momento sem um desenlace derradeiro, as intervenções nos Balcãs em guerras consecutivas (Croácia, Bósnia, Kosovo) e a recente ameaça sobre a Colômbia, são alguns dos exemplos de que há uma sensível mudança na política externa de segurança dos Estados Unidos e seus aliados que assenta-se em arcabouços jurídicos não tradicionais, aos quais vêm-se denominando de Direito de Ingerência, e que se baseia em argumentos do tipo "defesa dos direitos humanos e das minorias", "preservação do meio-ambiente" e "manutenção da ordem e da paz". Estes, inclusive, são os princípios que podem levar a OTAN hoje à intervir em qualquer parte do globo, de acordo com as resoluções da última cúpula de chefes dos estados integrantes da Aliança, levando a ameaça de sua presença à qualquer região, inclusive à nossa.

Neste artigo analisamos a evolução desse novo quadro à luz do DIP, discutindo o embasamento jurídico e ideológico dado às essas novas teses e suas conseqüências para a questão da paz mundial.


II – A Ingerência em Assuntos Internos

Na doutrina internacionalista encontramos a definição de que a ingerência é um dos elementos constitutivos da intervenção. MELLO, citando Thomas e Thomas, considera que "o ato de intervenção só se caracteriza quando reúne os seguintes elementos: a) estado de paz; b) ingerência nos assuntos internos ou externos; c) forma compulsória desta ingerência; d) finalidade de o autor da intervenção impor a sua vontade; e) ausência de consentimento de quem sofre a intervenção (p. 342)". Ainda para o autor: "A única intervenção válida é a empreendida sob os auspícios da ONU" (p. 33).

É corrente a aceitação do princípio da não intervenção, inclusive presente na Carta da ONU (art. 2º, alínea 1ª), tendo em vista o resguardo do direito à soberania e do direito à igualdade jurídica entre as nações. A intervenção individual não recebe guarida dentro do DI.

No mesmo sentido, por estar intrinsecamente vinculada ao conceito de intervenção, a ingerência nos assuntos internos também é alvo de severas críticas, sobretudo quando é exercida de forma individual e compulsória.

O Direito de Ingerência é, no entanto, justificado atualmente pela causa remota de serem os fatos que levam à sua necessidade (proteção dos direitos humanos, p. ex.) mais importantes que princípios consagrados do DI, como o da soberania e o da não intervenção.


III - A Relação entre o Direito de Ingerência e os Princípios do DIP.

Neste ponto abordaremos alguns do mais importantes princípios do DIP tentando relacioná-los com o chamado Direito de Ingerência.

a)Soberania

Para o DIP a soberania é um "atributo fundamental do Estado que o faz titular de competências que, precisamente porque existe uma ordem jurídica internacional, não são ilimitadas; mas nenhuma entidade as possui superiores (REZEK, p. 229, grifo nosso)".

Neste sentido, a ingerência é um fundamento inconciliável com o princípio da soberania. Nenhuma nação possui mais soberania do que uma outra para o DI e, portanto, não possui a prerrogativa de intervir compulsoriamente em assuntos internos de um outro povo.

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b)Autodeterminação dos Povos

"Princípio que decorre do direito à existência inerente a cada Estado. Por seu intermédio, justifica-se o próprio conceito de soberania que pode ser interna ou externa (ACQUAVIVA, p. 202)."

REZEK chega a afirmar que " os povos propendem, naturalmente, à autodeterminação" e que "os Estados não se subordinam senão ao direito que livremente reconheceram ou construíram (p.3, grifo nosso)".

Se a um Estado dá-se o direito de autodeterminar-se quanto às regras internacionais a que se subordina, não há porque acolher como justo e mesmo legal o Direito de Ingerência, ato unilateral de um outro Estado (ou conjunto destes) sobre outro sem o seu consentimento.

Paradoxalmente, este princípio tem sido utilizado pelos EUA como pretexto para a ingerência quando a autodeterminação de minorias esteja ameaçada por um Estado.

c) Não Intervenção

A não intervenção é um dogma defendido desde Kant e vem sendo largamente empregada como princípio em matéria de DI. Quem talvez melhor defina este conceito é a própria CARTA DA OEA, que em ser art. 18 enuncia:

"Nenhum Estado ou grupo de Estados tem o direito de intervir direta ou indiretamente, seja qual for o motivo, nos assuntos internos ou externos de qualquer outro. Este princípio exclui não somente a força armada, mas também qualquer outra forma de interferência ou de tendência atentatória à personalidade do Estado e dos elementos políticos, econômicos e culturais que o constituem (grifo nosso)"

Sendo a ingerência parte nuclear do conceito de intervenção, o princípio da não intervenção também abarca esta prática, repudiando-a enquanto instrumento de DI.

d)Proibição do Uso da Força como Forma de Solução de Conflitos Internacionais

O DI considera ilícito o recurso à utilização do uso da força – ou de sua ameaça - para a solução de conflitos internacionais, não somente aquelas hostis e armadas, bem como as não consideradas de escopo bélico.

Neste século houve uma evolução através do estabelecimento de tratados e pactos entre as nações, que culminou com a proibição formal e extensiva contida na CARTA DAS NAÇÕES UNIDAS. O DI evoluiu para o abandono do jus ad bellum, ou direito à guerra, enquanto mecanismo lícito para o deslinde de conflitos entre Estados.

Sendo a ingerência uma forma de injunção hostil, na maioria das vezes, inclusive, armada, está em desconsonância com o preceito estudado aqui.

e) Pacta sunt servanda

Para REZEK, " pacta sunt servanda é o princípio segundo o qual o que foi pactuado deve ser cumprido (p.3)". Na definição jurídica: "Locução latina que significa a obrigatoriedade do cumprimento das cláusulas contratuais (ACQUAVIVA, p. 949)".

Sendo um modelo de norma fundada no consentimento perceptivo, ou seja, que fluem inevitavelmente da pura razão humana ou de um imperativo ético, este princípio vincula as regras dele resultantes como imprescindíveis à comunidade internacional. Deste modo, sem dúvida, instrumentos jurídicos de DI como a CARTA DAS NAÇÕES UNIDAS e da OEA, que consagram o princípio da não intervenção e todos os outros acima discutidos, vinculam seus signatários através do pacta sunt servanda, levando-os assim a obrigar-se à observação das normas neles inscritas.


IV –A Ilicitude do Emprego do Direito de Ingerência pelos EUA em Kosovo.

A ingerência dos EUA em assuntos internos de outros Estados não é matéria nova e assumiu diferentes facetas na história deste país. Instrumentos como a utilização de mecanismos de inteligência infiltrados em diversas nações com o objetivo de agir como fermento de golpes militares e enfraquecimento de governos não alinhados, vêm hoje a luz graças à revelação de documentos secretos dos arquivos do Governo Norte-americano, como é o exemplo do apoio à instalação das ditaduras militares na América Latina.

Poderíamos ainda citar ingerências armadas, como os clássicos casos da Guerra Fria: Coréia, Cuba e Vietnã, onde os EUA de forma aberta engajaram-se militarmente na chamada "política de contenção" da ameaça socialista.

Neste ponto vamos, no entanto, concentrar-nos no estudo do último e mais ilustrativo caso de ingerência externa deste país no pós-Guerra Fria e, consequentemente, já não mais amparado na lógica da "contenção": a Guerra de Kosovo.

Nesta ex-província iugoslava existe uma disputa étnica multicentenária que envolve sérvios e albaneses em litígio pelo controle de seu território. Com o esfacelamento do antigo bloco socialista, também a Iugoslávia experimentou a desagregação de seus povos através de guerras étnicas e religiosas. Foi o caso, primeiramente, da Bósnia e, mais recentemente, de Kosovo, este último, local rico em minerais, petróleo e altamente estratégico do ponto de vista geopolítico, por estar incrustado em uma das últimas áreas de consolidação da hegemonia estadunidense - os Bálcãs – sem se esquecer de que também é um enclave entre a Europa Ocidental e as ex-repúblicas soviéticas. É bom lembrar ainda que o ex-governo da Iugoslávia, recentemente derrotado, era considerado hostil à grande potência.

Esta guerra é ilustrativa pelo fato de, ali, o Direito de Ingerência ter sido acudido pela argumentação de defesa da autodeterminação de uma minoria (albanesa) que estava sofrendo violação de seus direitos humanos por parte dos sérvios. Note-se que duas das principais máximas utilizadas "modernamente" para a aplicação de dito princípio estão contidas aqui. Entretanto, para PECEQUILO, o Governo Clinton "interveio na ex-Iugoslávia em duas oportunidades, promovendo a sua primeira guerra real em Kosovo, procurando manter o controle americano da estabilidade européia." , e, continuando: "Particularmente, esta posição invejável (do poderio internacional dos EUA durante o fim do Governo Clinton – comentário nosso) tem levado a uma exacerbação dos componentes unilaterais da liderança, como percebemos em Kosovo (e também em bombardeios aéreos a alvos considerados ameaças ao interesse americano como o Iraque) - p. 25 – grifos nossos."

É justamente esta "exacerbação" da utilização de mecanismos unilaterais de intervenção que gera a ilicitude do ato em tela. Vejamos abaixo como na Guerra de Kosovo os norte-americanos violaram diversos preceitos consagrados no DIP, mais detidamente Desrespeitando à CARTA DAS NAÇÕES UNIDAS.

Artículo 2

Para la realización de los Propósitos consignados en el Artículo 1, la Organización y sus Miembros procederán de acuerdo con los siguientes Principios:

1. La Organización esta basada en el principio de la igualdad soberana de todos sus Miembros.

2. Los Miembros de la Organización, a fin de asegurarse los derechos y beneficios inherentes a su condición de tales, cumplirán de buena fe las obligaciones contraidas por ellos de conformidad con esta Carta.

3. Los Miembros de la Organización arreglarán sus controversias internacionales por medios pacificos de tal manera que no se pongan en peligro ni la paz y la seguridad internacionales ni la justicia.

4. Los Miembros de la Organización, en sus relaciones internacionales, se abstendrán de recurrir a la amenaza o al uso de la fuerza contra la integridad territorial o la independencia política de cualquier Estado, o en cualquier otra forma incompatible con los Propósitos de las Naciones Unidas. (grifos nossos)

Somente neste artigo os EUA cometem 4 transgressões de Direito Internacional. Primeiramente, por não observar os princípios da igualdade jurídica e da soberania contidos no inciso1, agindo com ingerência nos assuntos internos da Iugoslávia unilateralmente de forma compulsória. Segundo, relegam o princípio do pacta sunt servanda, enunciado no inciso 2 ao não cumprirem com as obrigações contraídas nesta Carta bem como em outros documentos internacionais de que são signatários. Desrespeitam também o inciso 3, tendo feito da hostilidade e da guerra o meio de persuasão de sua ação neste caso, não tendo buscado os meios pacíficos para a solução anterior da controvérsia e, no mesmo sentido, não cumprindo ainda com o disposto no inciso 4 a respeito do princípio da não intervenção.

Para LAMBERT: "Em caso de litígio capaz de ameaçar a paz ou a segurança internacional, a primeira obrigação imposta às partes é a busca de solução através de modos pacíficos (art. 33 da Carta das Nações Unidas) ... Não conseguindo resolver a questão por conta própria terão então que submetê-la ao Conselho de Segurança (art. 37)". Ora, os ataques à Iugoslávia foram desencadeados unilateralmente pelos EUA e seus aliados da OTAN sem nenhuma decisão prévia do Conselho de Segurança da ONU. Além de ficar configurada mais uma violação de uma norma de DI – e vejam que trata-se de uma das mais importantes, se não a mais – explicita-se aqui o que PECEQUILO denuncia em seu texto: "Existem indicações, dadas estas mudanças, que os Estados Unidos têm cada vez mais incentivado o fortalecimento da OTAN para torná-la o seu canal preferencial de ação, relegando a um segundo plano as demais instituições internacionais, estando aí incluída a ONU (na qual o poder americano estaria sendo diluído pelo multilateralismo)."

Os EUA estão deixando de lado um organismo multilateral mundial, representado pela ONU, onde inclusive exercem direito de veto em seu Conselho de Segurança, para atuar em matéria de segurança internacional através da OTAN, de participação mais restrita enquanto ao número de membros, reforçando sua tendência unilateralista nestes casos e relegando as Nações Unidas a um papel de pouca proeminência.

Ainda para a pesquisadora da USP: "...a Operação (em Kosovo) passou por cima de vários preceitos institucionais e legais do sistema, estabelecendo precedentes perigosos." (grifo nosso).


V – Fundamentação Ideológica da Postura Norte-Americana Frente ao Direito de Ingerência.

            " É preciso destacar que, ao longo de toda a história americana, e, não somente no que se refere à expansão de fronteiras, a necessidade de justificar moralmente ações de poder estará sempre presente. Aqui, revela-se mais um dos aspectos característicos do perfil de atuação americano: a combinação do idealismo e do realismo. Existe, na quase totalidade das ações americanas, a presença de um princípio e de um valor para justificar as atitudes (agressivas ou cooperativas) que forem tomadas no sistema internacional. Ao agirem, segundo esta lógica, os Estados Unidos nunca estariam perseguindo o poder pelo poder ou visando os seus interesses mais concretos e imediatos, mas sim realizando uma tarefa e um objetivo mais elevado.

Dado o caráter especial de sua república, os americanos foram escolhidos para realizar estas missões e devem fazer tudo o que estiver a seu alcance para completá-las." (Cristina S. Pecequilo)

Como fica evidente pela leitura do texto acima, não há atitude americana em relações internacionais que se justifique meramente pela via pragmática, ou seja, existe sempre um arcabouço ideológico subjacente ao real dando sustentação moral e política à suas ações em política externa.

Mesmo estando demonstrada a ilicitude da utilização do chamado Direito de Ingerência pelos Estados Unidos, há sempre uma razão real e outra moral que o justifique internamente (tem-se aqui a eterna preocupação com a "opinião pública" americana, tão cara aos governos de turno).

A ingerência possui assim como objetivo real a manutenção da hegemonia norte-americana ao redor do globo, tanto do ponto de vista da segurança como da economia, devendo assim expandir mercados através da disseminação dos valores neoliberais e afastar a ameaça à integridade de seu território estandardizando seus valores democráticos como se assim fossem universais, devendo ser aceitos por todos os países, independentemente de sua feição cultural ou política.

No plano moral, ou ideológico, existe uma construção doutrinária arraigada na sociedade estadunidense de que seu país experimentou primeiramente a construção republicana democrática e, deste modo, necessitam reproduzi-la em todo o mundo. É o que se convenciona chamar de "Destino Manifesto" – misto de direito divino - messiânico - e de categoria filosófica - presente desde a constituição do Estado Norte-Americano em sua Guerra de Independência.

O que salta aos olhos é que este "Destino Manifesto" continua presente mais do que nunca na mentalidade atual dos americanos, conforme se observa na palavra da Secretária de Estado Madeleine Albright: "O sucesso ou o fracasso da política externa do povo americano permanece como o maior fator para moldar nossa própria história e o futuro do mundo."(1)

Desta forma, o desrespeito às normas de DI, a desmoralização das Nações Unidas e as atrocidades cometidas contra a população civil durante a Guerra de Kosovo, seriam justificadas por esta missão messiânica designada à nação americana de reproduzir seus valores em qualquer canto custe o que custar, como se travassem uma verdadeira cruzada ou guerra santa.

Vinculados ao conceito de "Destino Manifesto" estariam ainda os históricos isolacionismo e unilateralismo norte-americanos que, juntos, constróem o arcabouço moral que justifica a forma deste engajamento no sistema internacional. De forma alguma os EUA abrem mão de se isolarem em atitudes unilaterais quando a missão a ser cumprida assim requerer, de modo que, apesar de atuarem em organismos multilaterais, sempre terem recorrido à unilateralidade em momentos decisivos aos seus interesses.

Sobre o autor
Wladimyr Vinycius de Moraes Camargos

acadêmico da Faculdade de Direito na Universidade Federal de Goiás (UFG), Goiânia (GO)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CAMARGOS, Wladimyr Vinycius Moraes. Os EUA e o direito de ingerência.: Uma análise à luz do direito internacional público. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 5, n. 47, 1 nov. 2000. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/1614. Acesso em: 22 dez. 2024.

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