De início, cabe destacar a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal que parecia por uma pá de cal sobre a questão, in verbis:
EMENTA: RECURSO EXTRAORDINÁRIO. TRIBUTÁRIO. ICMS. ARRENDAMENTO MERCANTIL - "LEASING". 1. De acordo com a Constituição de 1988, incide ICMS sobre a entrada de mercadoria importada do exterior. Desnecessária, portanto, a verificação da natureza jurídica do negócio internacional do qual decorre a importação, o qual não se encontra ao alcance do Fisco nacional. 2. O disposto no art. 3º, inciso VIII, da Lei Complementar nº 87/96 aplica-se exclusivamente às operações internas de leasing. 3. Recurso extraordinário conhecido e provido. (RE 206.069/SP, Pleno, rel. Min. Ellen Gracie, j. 01-09-2005).
A decisão entende pela incidência de ICMS nas operações de leasing operacional. Apesar da eminência dos julgadores da mais alta Corte do nosso país, parece que neste julgamento não se verificou se, realmente, estavam configurados todos os elementos do fato gerador do tributo discutido.
No próprio texto constitucional, o inciso II, art. 155, preceitua que:
Art. 155. Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre: (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 3, de 1993)
II - operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, ainda que as operações e as prestações se iniciem no exterior; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 3, de 1993)
O ponto fulcral da questão gira, na realidade, em torno do termo jurídico adotado pelo constituinte, qual seja: "circulação de mercadorias". Segundo Eduardo Sabbag, [01] deve-se entender por circulação:
a mudança de titularidade do bem (não é mera movimentação "física", mas a circulação jurídica do bem). O bem sai da titularidade de um sujeito e passa à titularidade definitiva de outro. Exemplo: na saída de bens para mostruário não se paga ICMS, pois não ocorre a circulação jurídica do bem, apenas a movimentação física, não havendo mudança de titularidade; o mesmo fato ocorre na mera movimentação física de bens entre matriz e filial.
Percebe-se, então, que a incidência do ICMS exige a mudança de titularidade, caso contrário, meras movimentações de mercadorias, conforme exemplificado pelo autor acima, já caracterizariam o fato gerador do ICMS, gerando um ônus excessivo nas operações dos contribuintes.
Nos contratos de leasing (arrendamento mercantil), o arrendador não transfere sua propriedade ao arrendatário, mas apenas a posse, o usufruto e uma opção de compra não término do contrato. Inexiste, portanto, o fenômeno da circulação jurídica (fato gerador do ICMS), ocorre tão-somente uma circulação fática da mercadoria, que passa das mãos do arrendador para as do arrendatário.
Aparentemente, ponderava-se que a decisão acima iria abrir uma divergência das duas Cortes Superiores de nossa nação: o STJ e o STF. A razão era que o próprio Superior Tribunal de Justiça já havia analisado uma questão similar, entendendo que a mera circulação fática da mercadoria não ensejava a hipótese de incidência do ICMS. Nesta linha, aproveitou-se ainda para editar o enunciado da Súmula nº 166 do STJ: "Não constitui fato gerador do ICMS o simples deslocamento de mercadoria de um para outro estabelecimento do mesmo contribuinte".
No entanto, surpreendentemente, o Superior Tribunal de Justiça adotou no julgamento do REsp 822.868/SP a mesma linha do Supremo Tribunal Federal e não cogitou se estariam atendidos todos os requisitos para a incidência do ICMS nos casos leasing de aeronaves, in verbis:
TRIBUTÁRIO. RECURSO ESPECIAL. IMPORTAÇÃO DE AERONAVES MEDIANTE LEASING. ICMS. INCIDÊNCIA. ALTERAÇÃO DO ENTENDIMENTO DO STJ EM FACE DE PRONUNCIAMENTO DO STF SOBRE O TEMA.
1. O STJ, por jurisprudência uniforme, firmou o entendimento de que, em se tratando de importação de mercadoria (aeronave) mediante o negócio jurídico denominado leasing, não incidiria o ICMS. Precedentes: REsp 146389/SP (Rel. Min. João Otávio Noronha, julgado 07/12/2004, DJ 13/06.2005, p. 217); REsp436.173/RJ (Rel. Min. Eliana Calmon, DJ 30.06.2004, p. 295); AgRg no Ag 385174/RJ (Rel. Min. Castro Meira, DJ 15.03.2004, p. 223), entre outros. 2. As decisões do STJ interpretavam e aplicavam o art. 3º, VIII, da LC nº 87/96. 3. O Supremo Tribunal Federal, contudo, ao apreciar o RE nº 206.069-1, São Paulo, considerando a EC nº 33/01 (estatui que incide o ICMS em mercadoria importada desde que ocorra a sua entrada no estabelecimento comercial, industrial ou produtor, seja para consumo ou uso próprio do importador, seja para integrar o seu ativo), que deu nova redação ao art. 155, 'a', da CF, entendeu que incide o ICMS 'sobre a entrada de bem ou mercadoria importada do exterior por pessoa física ou jurídica, ainda que não seja contribuinte habitual do imposto, qualquer que seja a sua finalidade. ..', independentemente do tipo do negócio jurídico celebrado. 4. A orientação do STF foi tomada por maioria pelo Pleno, em face de importação decorrente de contrato de leasing, assim, também, a mudança de orientação da jurisprudência adotada pelo STJ deve ser realizada. 5. Recurso da Fazenda Estadual de São Paulo provido para fazer incidir ICMS sobre mercadoria importada com base em contrato de leasing. (REsp 822.868/SP, 1ª T., Rel. Min. José Delgado, j. 16-05-2006)
De fato, as decisões tanto do STJ quanto do STF pareciam que iam consolidar uma hipótese curiosa de incidência do ICMS, pois ocorreria o seu fato gerador independentemente da circulação jurídica da mercadoria. Bastaria, então, a circulação fática do objeto do contrato leasing para que restasse configurada a hipótese de incidência do ICMS.
Em tempo, contudo, o Ministro Eros Grau iluminou a questão com uma exegese adequada e coerente das características do contrato de leasing frente ao texto constitucional, a qual o conduziu indubitavelmente ao seguinte julgado:
1. A importação de aeronaves e/ou peças ou equipamentos que as componham em regime de leasing não admite posterior transferência ao domínio do arrendatário. 2. A circulação de mercadoria é pressuposto de incidência do ICMS. O imposto --- diz o artigo 155, II da Constituição do Brasil --- é sobre "operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, ainda que as operações e as prestações se iniciem no exterior". 3. Não há operação relativa à circulação de mercadoria sujeita à incidência do ICMS em operação de arrendamento mercantil contratado pela indústria aeronáutica de grande porte para viabilizar o uso, pelas companhias de navegação aérea, de aeronaves por ela construídas. 4. Recurso Extraordinário do Estado de São Paulo a que se nega provimento e Recurso Extraordinário de TAM - Linhas Aéreas S/A que se julga prejudicado. (RE 461.968/SP, Pleno, Rel. Min. Erso Grau, j. 30-05-2007).EMENTA: RECURSO EXTRAORDINÁRIO. ICMS. NÃO-INCIDÊNCIA. ENTRADA DE MERCADORIA IMPORTADA DO EXTERIOR. ART. 155, II DA CB. LEASING DE AERONAVES E/OU PEÇAS OU EQUIPAMENTOS DE AERONAVES. OPERAÇÃO DE ARRENDAMENTO MERCANTIL.
Enfim, a mais alta Corte do país ponderou as características do contrato de leasing e conclui que não ocorre o fato gerador do ICMS, simplesmente porque inexiste nesta espécie de contrato a "transferência [da mercadoria] ao domínio do arrendatário", ou seja, não ocorre a circulação jurídica tão essencial para configurar a hipótese de incidência do ICMS. Assim sendo, corrigiu-se um sério equívoco na jurisprudência, fortaleceu-se a segurança jurídica nas relações jurídico-tributárias e aprimorou-se a técnica jurídica na análise de questões tributárias envolvendo o Imposto sobre operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestação de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, ou seja, o tão famigerado ICMS.
Referências Bibliográficas:
CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de direito constitucional tributário. 25. ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2009. 1103 p.
SABBAG, Eduardo. Manual de direito tributário. São Paulo: Saraiva, 2009. 1090 p.
Nota
1 SABBAG, Eduardo. Manual de direito tributário. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 942.