3. CONCEITO E PRESSUPOSTOS DE RESPONSABILIDADE CIVIL EM CONFRONTO COM A TESE DA RESPONSABILIDADE CIVIL PARENTAL POR ABANDONO AFETIVO
Antes de se enfrentar propriamente o problema proposto, qual seja a possibilidade de reparação civil por abandono afetivo parental, necessário se faz a conceituação de responsabilidade civil e suas hipóteses.
Eis a redação do artigo 927 do Código Civil brasileiro: "Aquele que, por ato ilícito (artigos 186 e 187) causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo." Considera-se como ato ilícito, "aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral", bem como "o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes", conforme artigos 186 e 187 do mesmo diploma legal.
Em resumo, a responsabilidade civil consiste na obrigação imposta àquele que praticou o ato ilícito de reparar o prejuízo sofrido por outrem. É o dever jurídico atribuído ao causador do dano de reparar a lesão suportada por terceiro, conforme ensina Gonçalves:
O instituto da responsabilidade civil é parte integrante do direito obrigacional, pois a principal conseqüência de um ato ilícito é a obrigação que acarreta, para o seu autor, de reparar um dano, obrigação esta de natureza pessoal, que se resolve em perdas e danos. Costuma-se conceituar "obrigação" como o vínculo jurídico que confere ao credor o direito de exigir do devedor o cumprimento de determinada prestação. A característica principal da obrigação consiste no direito conferido ao credor de exigir o adimplemento da prestação. É o patrimônio do devedor que responde por suas obrigações. As obrigações derivadas dos "atos ilícitos" são as que se constituem por meio de ações ou omissões culposas ou dolosas do agente, praticadas com infração a um dever de conduta e das quais resultam um dano a outrem. A obrigação que, em conseqüência, surge é a de indenizar ou ressarcir o prejuízo causado (2007, p. 02).
Sérgio Cavalieri Filho define o responsável como:
A pessoa que deve ressarcir o prejuízo decorrente da violação de um precedente dever jurídico. E assim é porque a responsabilidade pressupõe um dever jurídico preexistente, uma obrigação descumprida. Daí ser possível dizer que toda conduta humana que, violando dever jurídico originário, causa prejuízo a outrem é fonte geradora de responsabilidade civil (2009, pág. 02).
Acerca dos fundamentos éticos da responsabilidade civil, Sampaio Júnior pondera:
Pode-se afirmar que a responsabilidade civil, tal como hoje desenvolvida, assenta-se sobre dois distintos fundamentos éticos: a sanção a uma conduta lesiva culposa, tratando-se da responsabilidade subjetiva, e no tocante à responsabilidade objetiva, a assunção dos riscos decorrentes de uma atividade que cria, para a coletividade, riscos superiores aos que normalmente seriam de se esperar de uma atividade cotidianamente exercida (2009, p. 23).
Portanto, a responsabilidade civil pode ser dividida em duas espécies: subjetiva e objetiva. A primeira espécie ocorre quando há necessidade de ser provada a culpa do agente causador do dano. Assim, para que se caracterize a subjetividade deverá haver necessariamente um dano, a comprovação de dolo ou culpa e o nexo causal entre o dano e a ação que o provocou.
Por seu turno, a responsabilidade será objetiva demonstrando-se apenas a causalidade entre o ato e o prejuízo causado, não havendo a necessidade de se comprovar a culpa ou dolo do agente. É também chamada de responsabilidade pelo risco, na qual "o exercício de uma atividade que possa representar um risco obriga por si só a indenizar os danos causados por ela" segundo Sílvio de Salvo Venosa (VENOSA, 2008, p. 15).
Depreende-se, assim, os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual subjetiva: 1) ato ilícito; 2) conduta culposa; 3) dano; 4) nexo de Causalidade.
O tema da ilicitude será analisado mais a frente. Por conduta culposa entende-se a inexecução de um dever que o agente podia conhecer e observar. O terceiro requisito diz respeito ao dano ou lesão sofrida, já que sem a prova do dano ninguém pode ser responsabilizado. Segundo a melhor doutrina, o dano pode ser material ou simplesmente moral, ou seja, sem repercussão na órbita financeira do ofendido. (GONÇALVES, 2007).
O quarto pressuposto, o nexo de causalidade, é explicado como "a vinculação entre determinada ação ou omissão e o dano experimentado" (PELUSO, 2009).
Um pai que ostensivamente humilha seu filho, exteriorizando qualquer tipo de conduta vexatória, ao praticar uma conduta ativa, inegavelmente, em tese, cometeria ato ilícito passível de indenização por dano moral, assim como qualquer outra pessoa poderia ser responsabilizada. A questão que se coloca é outra. Da conduta meramente negligente do pai ou mãe em dar afeto ao filho, mesmo suprindo todas as suas necessidades materiais e intelectuais, através de conduta meramente omissiva, acarretaria um dano moral passível de ser indenizado?
O artigo 186 do Código Civil menciona o termo "ação ou omissão voluntária". E, em seguida, aponta as modalidades de culpa: imprudência e negligência.
A questão da possibilidade da reparação civil por abandono afetivo se baseia, em síntese, no argumento de que o dano psíquico sofrido pela prole desprezada pela conduta negligente do pai ou mãe configura, de fato, espécie de dano moral e ofensa a direito de personalidade do ofendido.
A questão é polêmica e divide opiniões na doutrina.
Sobre o tema vale transcrever a opinião do Desembargador Luiz Felipe Brasil Santos, citado por Castro, que anota:
A matéria (abandono afetivo) é polêmica e alcançar-se uma solução não prescinde do enfrentamento de um dos problemas mais instigantes da responsabilidade civil, qual seja, determinar quais danos extrapatrimoniais, dentre aqueles que ocorrem ordinariamente, são passíveis de reparação pecuniária. Isso porque a noção do que seja dano se altera com a dinâmica social, sendo ampliado a cada dia o conjunto dos eventos cuja repercussão é tirada daquilo que se considera inerente à existência humana e transferida ao autor do fato. Assim, situações anteriormente tidas como "fatos da vida", hoje são tratadas como danos que merecem atenção do Poder Judiciário, a exemplo do dano à imagem e à intimidade da pessoa (2010, p. 2).
Magdaleno (2006, p. 159) é adepto da possibilidade da responsabilização, expressando que o direito de dano é aplicável sim ao direito de família, tendo por fundamento o abuso de direito que prevê o artigo 187 do Código Civil e não o ato ilícito
Defendendo a conveniência de responsabilização civil por abandono afetivo, Giselda Maria Fernandes de Novaes Hironaka sustenta que:
[...] a indenização por abandono afetivo, se for utilizada com parcimônia e bom senso, sem ser transformada em verdadeiro altar de vaidades e vinganças ou em fonte de lucro fácil, poderá converter-se em instrumento de extrema importância para um direito de família mais consentâneo com a contemporaneidade, podendo desempenhar, inclusive, um importante papel pedagógico no seio das relações familiares (2007, pág. 16).
Sobre o tema, posiciona-se, ainda, Gonçalves:
A questão é delicada, devendo os juízes ser cautelosos na análise de cada caso, para evitar que o Poder Judiciário seja usado, por mágoa ou por outro sentimento menos nobre, como instrumento de vingança contra pais ausentes ou negligentes no trato com os filhos. Somente casos especiais, em que fique cabalmente demonstrada a influência negativa do descaso dos pais na formação e no desenvolvimento dos filhos, com rejeição pública e humilhante, justifica o pedido de indenização por danos morais. Simples desamor e falta de afeto não bastam. ( 2007, pág. 700).
Posicionando-se pela impossibilidade é Lopes (2006, p. 54): "Filio-me ao entendimento que a violação aos deveres familiares gera apenas as sanções no âmbito do direito de família, refletindo, evidentemente, no íntimo afetivo e psicológico da relação [...]."
Percebe-se, de plano, que mesmo a doutrina favorável à tese da reparabilidade do dano afetivo prega cautela e análise minuciosa dos casos levados à Justiça, a fim de evitar uma espécie de patrimonialização da falta do sentimento no seio das famílias, banalizando-se esse tipo de demanda.
Tais considerações doutrinárias a respeito da conveniência ou não de adoção da tese do dano afetivo abordam o tema no contexto da repercussão social da medida, preocupando-se com a questão já notória da industrialização do dano moral, bem como ressaltam a duvidosa função pedagógica de fixação de indenização ao causador do dano afetivo.
Além das pertinentes objeções de índole sociológica levantadas em relação à tese da reparabilidade do dano em razão do abandono afetivo, considerada em si uma conduta éticamente reprovável, deve-se enfrentar a problemática da presença dos requisitos de responsabilização civil.
3.1 DO ABANDONO AFETIVO PARENTAL E ILICITUDE
A primeira questão é saber se a conduta do pai que simplesmente despreza seu filho afetivamente, mesmo que o amparando com alimentos e necessidades materiais, contribuindo inclusive para seu estudo, configura ato ilícito.
Nos termos da legislação vigente, cabe aos pais o dever de sustento, educação e formação moral dos filhos menores. É o que dispõe o artigo 1634, inciso I, do Código Civil, segundo o qual: "Compete aos pais, quanto a pessoa dos filhos menores: I – Dirigir-lhes a criação e educação;". Já o Código Penal brasileiro reprime taxativamente a conduta do abandono material (artigo 244), bem como o abandono intelectual (artigo 246). [3]
Portanto, é expressa na lei a obrigação de sustento material e suporte moral e intelectual dos pais em relação aos filhos. A questão é saber se o abandono ou inexistência de afeto na relação parental constitui em obrigação jurídica, cujo descumprimento acarreta um ato ilícito.
Acerca da conceituação de ato ilícito ensina Venosa:
Por ato ilícito, entende-se aquele que promanam direta ou indiretamente da vontade e ocasionam efeitos jurídicos, mas contrários ao ordenamento. O ato de vontade, contudo, no campo da responsabilidade deve revestir-se de ilicitude. Melhor diremos que na ilicitude há, geralmente, uma cadeia ou sucessão de atos ilícitos, uma conduta culposa. Raramente, a ilicitude ocorrerá com um único ato. O ato ilícito traduz-se em um comportamento voluntário que transgride um dever. Como já analisamos, ontologicamente, o ilícito civil não difere do ilícito penal; a principal diferença reside na tipificação estrita deste último. Na responsabilidade subjetiva, o centro do exame é o ato ilícito. O dever de indenizar vai repousar justamente no exame de transgressão ao dever de conduta que constitui o ato ilícito. Como vimos, sua conceituação vem exposta no art. 186 (2008, p. 23).
Neste ponto, incide o princípio constitucional da legalidade, previsto no artigo 5º, inciso II, da Constituição Federal, segundo o qual "ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa, senão em virtude de lei". Logo, se o ato ilícito passível de reparação é aquele contrário ao direito, não havendo previsão normativa do alcance e conteúdo mínimo da obrigação de dar afeto nem na Constituição Federal, nem na legislação infraconstitucional, não há como impor a responsabilidade civil parental por essa conduta, deixando-se ao arbítrio judicial a imposição de verdadeira pena civil a uma conduta não tipificada no sistema normativo, o que afrontaria os princípios democrático e da separação dos poderes (respectivamente nos artigos 1º, caput, e 2º da Constituição Federal). É o que explica José Afonso da Silva:
O princípio da legalidade é nota essencial do Estado de Direito. É também, por conseguinte, um princípio basilar do Estado Democrático de Direito, como vimos, porquanto da essência do seu conceito subordinar-se à Constituição e fundar-se na legalidade democrática. [...] É nesse sentido que se deve entender a assertiva de que o Estado, ou o Poder Público, ou os administradores não podem exigir qualquer ação, nem impor qualquer abstenção, nem mandar tampouco proibir nada aos administrados, senão em virtude de lei. (2008, p.420).
Com efeito, refletindo sobre o abandono afetivo, ao que parece, tal conduta negativa por parte dos pais viola um dever moral com conseqüências jurídicas do que propriamente dever jurídico passível de ilicitude pelo descumprimento. Por esses motivos há extrema dificuldade no preenchimento dos pressupostos gerais de responsabilidade civil e patrimonialização da questão.
Caio Mário da Silva Pereira exprime bem a coincidência entre o preceito moral e a norma jurídica, nos seguintes termos:
Sendo ambos – moral e direito – normas de conduta, evidentemente têm um momento de incidência comum. Mas, analisados intrinsecamente, os respectivos princípios se diferenciam, quer em razão do campo de ação, quer no tocante à intensidade da sanção que acompanha a norma, quer no alcance ou efeitos desta. Moral e direito distinguem-se em que a primeira atua no foro íntimo e o segundo no foro exterior. Se a conduta do agente ofende apenas a regra moral, encontra reprovação na sua consciência, e pode atrair o desapreço dos seus concidadãos. Se a ação implica inobservância da norma jurídica, autoriza a mobilização do aparelho estatal, para recondução do infrator à linha de observância do preceito, ou para sua punição. Encarada do ângulo da intensidade, a norma jurídica é dotada de coercibilidade, que não está presente na regra moral, representando esta um estado subjetivo do agente, que pode ser adotado, ou que deve ser adotado voluntariamente, enquanto que a obediência ao preceito de direito é imposta coercitivamente pelo ordenamento jurídico. (2009, p. 9).
Na esteira desses argumentos está a opinião de Rodrigo da Cunha Pereira, que ao prefaciar a obra que analisa o Estatuto das Famílias, projeto de lei 2.285/2007, comenta com propriedade:
É preciso que as pessoas adultas, por elas mesmas, se responsabilizem pelas suas escolhas e desilusões amorosas, suas uniões e desuniões e o Estado intervenha menos na vida privada das pessoas. Poderia o Estado, através do Poder Judiciário, dizer quem é o culpado pelo fim de um casamento, por exemplo? Poderia o Estado, através do Poder Legislativo estabelecer regras para as uniões estáveis, e com isto aproximando-se cada vez mais do casamento e afastando conseqüentemente a possibilidade de uniões livres? Estas intervenções, embora bem intencionadas, perdem, cada vez mais terreno no Direito de Família. Todas estas questões estão, de certa forma, relacionadas com a essência do ser humano e as velhas reivindicações de liberdade, agora reencarnadas pela liberdade dos afetos, da solidariedade, da dignidade humana, enfim ao Desejo. (In: ALVES, 2010, p. 23).
Percebe-se, ainda, que o espírito da legislação relativa ao direito de família segue caminho inverso à excessiva intromissão do Estado na seara familiar, como ocorre pelo abandono do critério da culpa na separação judicial ou divórcio. Não pode o direito obrigar os cônjuges a prestar afeto na relação conjugal. A ausência deste implica na falência de fato da união, podendo ensejar a iniciativa da propositura da ação de separação ou divórcio com a conseqüência jurídica pertinente.
A ausência ou abandono afetivo na relação conjugal, analogicamente, não poderia ensejar direito à indenização por dano moral do cônjuge desprezado, já esse é um risco inerente das relações humanas. Não parece interesse do Estado perquirir sobre assunto tão íntimo da relação familiar, assim como é culpar alguém pela falta de amor nas relações de parentesco.
É em harmonia com tal pensamento, que anota Pinto:
Controvertida na doutrina é a questão relativa à possibilidade de reparação por dano moral no Direito de Família, especialmente nas hipóteses de separação judicial por descumprimento de alguns dos deveres do casamento. Regina Beatriz Tavares da Silva sustenta ser cabível a indenização quando houver dano ao consorte em razão de tal descumprimento, não se enquadrando nessa hipótese o simples desamor, pois falta de amor, por si só, não pode acarretar qualquer conseqüência jurídica, já que amar não é dever jurídico, inexistindo ato ilícito na falta de amor. (In: PELUSO, 2009, p. 1645).
Deve-se advertir que a patrimonialização da questão referente ao tema proposto, por indeterminação da ilicitude da conduta, corre o risco de gerar insegurança jurídica, ao atribuir indevida discricionariedade e sentimentalismo às decisões judiciais sobre a questão. Acerca do perigo da jurisprudência sentimental, citando o caso histórico de um tribuno francês, denominado de o bom juiz Magnaud (1889-1904), explica de forma brilhante Carlos Maximiliano, em sua lapidar obra Hermenêutica e Aplicação do Direito:
Imbuído de idéias humanitárias avançadas, o magistrado francês redigiu sentenças em estilo escorreito, lapidar, porém afastadas dos moldes comuns. Mostrava-se clemente e atencioso para os fracos e humildes, enérgico e severo com opulentos e poderosos. Nas suas mãos a lei variava segundo a classe, mentalidade religiosa ou inclinações políticas das pessoas submetidas à sua jurisdição. [...] O fenômeno Magnaud foi apenas retumbante manifestação de ideologia pessoal, atravessou o firmamento jurídico da Europa como um meteoro, da sua trajetória curta e brilhante não ficaram vestígios. Quando o magistrado se deixa guiar pelo sentimento, a lide degenera em loteria, ninguém sabe como cumprir a lei a coberto de condenações forenses (2007, p. 68)
3.2 DA CONDUTA CULPOSA
Como explicado, para configuração do dever de indenizar, primeiramente há de estar presente um dever jurídico, violado por uma conduta culposa. Isto porque o Código Civil é expresso no sentido de que a responsabilidade objetiva só é cabível nos casos especificados em lei ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem (artigo 927, parágrafo único, do Código Civil).
Deduz-se que a conduta de quem não dá afeto ao filho é omissiva.
Acerca da relevância jurídica da omissão para responsabilidade civil, Cavalieri Filho preleciona:
A omissão, todavia, como pura atividade negativa, a rigor não pode gerar, física ou materialmente, o dano sofrido pelo lesado, porquanto do nada nada provém. Mas tem-se entendido que a omissão adquire relevância jurídica, e torna o omitente responsável, quando este tem o dever jurídico de agir, para praticar um ato para impedir o resultado, dever esse que pode advir da lei, do negócio jurídico ou de uma conduta anterior do próprio omitente, criando risco da ocorrência do resultado, devendo, por isso, agir para impedi-lo. (2009, pág. 24).
Ora, se a conduta omissiva configuradora do dano afetivo deve ser culposa, na modalidade de negligência, torna-se ademais subjetiva a sua configuração, já que a falta de afeto pode em tese ser justificada por inúmeros fatores íntimos e até pela provocação da outra parte que detém a guarda do menor. Mostra-se temerária a atribuição de culpa exclusiva a alguém pela falta de amor. A prova da conduta culposa configura-se de difícil ou impossível verificação, quase diabólica, já que mesmo no direito ou na ciência não há definição do que seja afeto, cujo conceito e amplitude apenas poderia ser dirimido pela psicologia.
É o que explica Rocha, criticando o conceito de família fundado no afeto:
Um dado da bibliografia jurídica ligada à "teoria do afeto" surpreende: a ausência de considerações sobre o conceito de "afeto". Uma maior ênfase no conteúdo teórico do "afeto" era de se esperar numa doutrina que pretende tê-lo como núcleo do direito de família. A necessidade de estudar o significado de "afeto" torna-se ainda maior se se tem em conta a ambivalência do termo: na linguagem comum, afeto é sinônimo de carinho, simpatia, amizade, ternura, amor; na Filosofia e na Psicologia, contudo, possui significado bem diferente: é sinônimo de sentimento, emoção, paixão. A essa última acepção é a que corresponde à etimologia da palavra: "afeto" provém do latim affectus e se formou da preposição ad (para) mais o verbo facere (fazer). Ou seja, "fazer para", "influenciar", "afetar". "Afeto" designa, pois, algo que sofre influência de outro ser. (2009, p. 61).
E arremata o mesmo autor:
Enquanto o "afeto" da linguagem natural tem conotação positiva, referindo-se aos mais nobres sentimentos humanos, o "afeto" da linguagem filosófico-científica designa todas as afeições, todos os sentimentos, os mais elevados e os mais baixos. Incluem-se na noção de "afeto", no sentido filosófico-científico, o ódio, a inveja, o rancor e todos os sentimentos moralmente repudiados. (...) Uma vez que no sentido filosófico-científico "afeto" tem consonância com "sentimento", o Direito não pode ser chamado a protegê-lo incondicionalmente, uma vez que muitas de suas manifestações contrariam os valores fundamentais da ordem jurídica. Além disso, o Direito somente regula a conduta humana exteriorizada. (2009, p. 61).
Portanto, pode-se inferir que o direito não pode através da fixação de uma indenização punir uma conduta que nem mesmo se exteriorizou, no caso da simples omissão de afeto, considerando-a ilícita, já que ostenta grau de incerteza e subjetividade, já que não há conceituação jurídica da obrigação ou dever de afeto, passível de gerar indenização pelo descumprimento.
3.3 DO ABANDONO AFETIVO E DO DANO MORAL;
O terceiro ponto a ser enfrentado é a existência de dano. Como se expôs, o principal fundamento da tese da possibilidade de reparação pelo abandono afetivo parental é que tal conduta espelha espécie de dano moral.
A possibilidade de reparação do dano moral é prevista tanto na Constituição (art. 5º, incisos V e X), como no artigo 186 do Código Civil. Por dano moral, entende-se toda ofensa a direito de personalidade ou à dignidade humana. Não se confunde com o dano patrimonial, mas diz respeito à lesão de outros aspectos do direito da pessoa, não aferíveis economicamente, como, por exemplo, a honra, a imagem, seu nome, enfim todos os caracteres que se refiram ao aspecto personalíssimo do indivíduo. No dizer de uma das maiores autoridades sobre o tema, Sérgio Cavalieri Filho, o dano pode ser a direitos da personalidade que não estão diretamente vinculados à sua dignidade, possuindo, portanto, duplo aspecto:
À luz da Constituição vigente, podemos conceituar o dano moral por dois aspectos distintos. Em sentido estrito, dano moral é violação do direito à dignidade. E foi justamente por considerar a inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem corolário da dignidade que a Constituição inseriu em seu artigo 5º, V e X, a plena reparação do dano moral. Este, pois, o novo enfoque constitucional pelo qual deve ser examinado o dano moral, que já começou a ser assimilado pelo Judiciário, conforme se constata do aresto a seguir transcrito: "Qualquer agressão à dignidade pessoal lesiona a honra, constitui dano moral e é por isso indenizável. Valores como a liberdade, a inteligência, o trabalho, a honestidade, aceitos pelo homem comum, formam a realidade axiológica a que todos estamos sujeitos. Ofensa a tais postulados exige compensação indenizatória.
Ap. Cível 40.541, rel. Des. Xavier Vieira, ins ADCOAS 144.719" (2009, p. 80).
A aceitação da possibilidade de reparação do dano moral foi inicialmente muito controvertida, passando por fases: inicialmente pela da irreparabilidade, sob o argumento de que era impossível se aferir a dor, e, atualmente, pacificamente pela possibilidade de cumulação com a indenização por danos materiais.
Depreende-se dos ensinamentos sobre a configuração do dano moral que este decorre de um ato ou conduta que provoca um ato ilícito ofensivo a direito da personalidade da vítima ou à sua própria dignidade, tendo a indenização função de trazer satisfação ou paz de espírito ao ofendido, pelo reconhecimento judicial da ilicitude, e de certa forma punindo o ofensor.
Sabe-se que para configuração do dano moral, conforme a mais moderna e pacífica doutrina, é dispensável a prova do sofrimento, já que o dano se presume de uma conduta ilícita ofensiva à dignidade ou aos direitos de personalidade do ofendido. Ou seja, se há uma conduta ofensiva ao nome de um indivíduo, como sua inclusão indevida nos cadastros de inadimplentes, com publicidade, não é preciso ao ofendido provar seu sofrimento, basta apontar a conduta, que presumivelmente lhe acarretou prejuízo moral.
A fixação da indenização para reprimir a conduta lesiva atinge sua finalidade que é dar ao ofendido não a restituição material da ofensa dirigida, o que seria impossível no mundo dos fatos, mas a satisfação de que foi reconhecido o ato como ilícito e retribuído ao ofensor o mal causado, conforme preleciona Sampaio Júnior:
Diante dessas considerações, talvez se possa realmente confirmar que o pretium Dolores deixou de ser o fundamento da responsabilidade por danos morais. Não mais se paga o preço da dor, pois sequer importa que de fato exista essa dor. O que releva é sancionar uma conduta antiética. E, se possível, coibir aquela conduta.( 2009, p. 99).
Percebe-se que a reparação por dano moral decorre de condutas ilícitas que ofendem bens jurídicos tutelados pelo Estado, em que pode ser exigido respeito a esses bens.
O amor e o afeto, ao contrário, são sentimentos humanos, que não podem ser exigidos, de forma a que seu inadimplemento gere direito à indenização. Na verdade, ontologicamente, não são obrigações, mas deveres morais e éticos a que a lei comina pelo descumprimento também a mesma reprimenda, qual seja o afastamento do vínculo jurídico parental. Na verdade, o abandono afetivo não pode ser indenizado por não ter cunho obrigacional, por constituir o afeto um sentimento humano.
Pereira (2009), ao traz o conceito de obrigação como "o vínculo jurídico em virtude do qual uma pessoa pode exigir de outra prestação economicamente apreciável". Assinala, ainda, o mesmo autor que um dos elementos de toda obrigação é que o objeto, isto é, a prestação exigível pelo credor, seja determinada ou determinável:
O que não é possível, sob pena de equiparar-se à falta de objeto e, pois, de ineficácia da obrigação, é a indeterminação definitiva, que importa na própria negação do vínculo, por ausência de objetivação. Quando o objeto é indeterminável, ou pela sua natureza, ou porque circunstâncias especiais obstam à determinação, não há obrigação válida (2009, p. 21).
Em relação aos direitos de personalidade, a lei comina sanção pelo descumprimento da obrigação geral de respeito (artigo 12 do Código Civil), passíveis de reparação pecuniária em decorrência do dano moral. Pode-se exigir, por exemplo, o respeito à imagem, à honra, ao nome. Na maioria das vezes o direito impõe um non facere, isto é, uma abstenção de conduta para que não sejam violados esses bens jurídicos, que se desrespeitados geram o direito a uma indenização para compensar o prejuízo moral suportado pela vítima.
A tese da indenizabilidade do dano afetivo sustenta a possibilidade de que o Estado exija uma obrigação de fazer ou entregar um sentimento por parte do indivíduo, cujo conceito é indeterminado, fluído e impreciso. Parece pertencer à seara da psicologia o estudo do desenvolvimento da personalidade do indivíduo, bem como da repercussão da boa ou má criação dos filhos, razão pela qual suposto dano por abandono afetivo não pode ser presumido
No caso em tela existiria um comportamento omissivo, com reprovação ética e moral, com outras repercussões jurídicas, como a definição de guarda, causa de suspensão ou destituição de poder familiar, mas que não constitui isoladamente uma ofensa passível de reparação através de indenização. A sutileza da diferenciação repousa no fato que se trata de omissão de afeto, um comportamento contínuo de índole íntima e negativa.
Para certa parcela da doutrina a responsabilidade civil teria como função precípua restabelecer uma situação da vida abalada. No dizer de Venosa:
Os princípios da responsabilidade civil buscam restaurar um equilíbrio patrimonial e moral violado. Um prejuízo ou dano não reparado é um fator de inquietação social. Os ordenamentos contemporâneos buscam alargar cada vez mais o dever de indenizar, alcançando novos horizontes, a fim de cada vez menos restem danos irressarcidos. É claro que esse é um desiderato ideal que a complexidade da vida contemporânea coloca sempre em xeque. Os danos que devem ser reparados são aqueles de índole jurídica, embora possam ter conteúdo também de cunho moral, religioso, social, ético, etc., somente merecendo reparação do dano as transgressões dentro dos princípios obrigacionais.(2008, p. 01/2).
Ao se fixar indenização por abandono afetivo, isto é, pela conduta omissiva de um pai ou mãe que não dá amor a seu filho, o direito, através do Poder Judiciário, reprimiria um comportamento reprovável do ponto de vista moral, mas, questionável, se tal ingerência estatal atenderia ao melhor interesse da família, qual seja a estimulação da própria retomada do vínculo afetivo, já que para condutas personalíssimas atinentes a um fazer, dado ao seu caráter de infungibilidade e tendo em vista a liberdade individual, a única solução seria conversão em perdas e danos.
Destaque-se que existe parcela significativa da doutrina criticando a responsabilidade civil punitiva ou do punitive damage, segundo explica Sampaio Júnior:
Há forte rejeição da doutrina pátria à indenização punitiva, por vezes denominada pedagógica, sendo que o dispositivo do Projeto do Código de Defesa do Consumidor prevendo a sua introdução no âmbito das relações de consumo foi vetado por inadequado à nossa sistemática jurídica. Objeta-se que o Direito Civil não tem a função de punir o ofensor. A responsabilidade civil se assenta na idéia de amparar a vítima, ressarcindo-lhe o dano sofrido. Assim, a punição a uma conduta não ética ficaria a cargo do Direito Penal ou do Direito Administrativo, sem o que se subverteria a regra de que não há crime sem prévia lei que o defina. Sacrificar-se-ia a segurança em nome de uma conduta ética pouco palpável. (2009, p. 100).
Questionável, ainda, do ponto de vista constitucional (artigo 227 da Constituição Federal), seguindo a doutrina da proteção integral, prevista no artigo 1º do ECA, no caso de abandono afetivo de menores, se a fixação de pena pecuniária ao pai, atenderia ao melhor interesse da criança e do adolescente, dado que o processo que visa a indenização poderá ser palco de discussões e maior abalo psíquico à criança e ao adolescente que lembrará do conflito por toda a vida.
Desnecessário mencionar que não há como se adotar o regime de cumprimento forçado (executivo) das obrigações de fazer previsto no Código de Processo Civil em seu artigo 632 e seguintes, já que não se poderia aferir o cumprimento ou não da obrigação de dar amor, devido à fluidez do conceito e indeterminação probatória, assim como seria a fixação de multa diária pelo descumprimento da obrigação de dar amor.
A doutrina e jurisprudência da responsabilidade civil evoluiu, portanto, da irresponsabilidade por dano imaterial ou moral para aceitação incontroversa, nos dias atuais, dessa modalidade de reparação, com previsão expressa na Constituição Federal e no Código Civil. No entanto, razoável que não pode a teoria da responsabilidade civil ir ao outro extremo de tentar reparar condutas não exteriorizadas, como o sentimento ou o pensamento, sob o fundamento de ofensa ao princípio aberto da dignidade da pessoa humana, que se tornou panacéia para todos os apetites ideológicos não satisfeitos (ROCHA, 2009).
3.4 DO NEXO DE CAUSALIDADE
O quarto aspecto diz respeito ao nexo de causalidade entre a conduta do pai ou mãe que nega afeto ao filho e o dano causado. Segundo Neves, o nexo de causalidade pode ser conceituado como:
[...] a relação que se estabelece entre o ato (por ação ou omissão) do devedor e o dano experimentado pelo credor. Evidentemente, para que se verifique o dever de indenizar, deve estar presente essa relação de causa e efeito – o nexo de causalidade – entre o fato gerador e o dano (2009, p. 335).
A conduta de não prestar afeto na relação parental configuraria apenas uma omissão. Sobre a questão da causalidade da omissão, ensina Cavalieri Filho que:
[...] a omissão adquire relevância causal porque a norma lhe empresta esse sopro vital, impondo ao sujeito um determinado comportamento. Quando não houver esse dever jurídico de agir, a omissão não terá relevância causal e, conseqüentemente, nem jurídica. (2009, pág. 63).
No caso do abanono afetivo, mesmo que, em tese, se admita o abalo psíquico, o nexo de causalidade entre a conduta do ofensor e o dano mostrar-se-ia de improvável constatação já que outros fatores poderiam ter concorrido para a ofensa, dentre os quais pode ser citada a denominada síndrome da alienação parental, conforme explicação de sítio da internet específico sobre o assunto:
Síndrome de Alienação Parental (SAP), também conhecida pela sigla em inglês PAS, é o termo proposto por Richard Gardner [3] em 1985 para a situação em que a mãe ou o pai de uma criança a treina para romper os laços afetivos com o outro genitor, criando fortes sentimentos de ansiedade e temor em relação ao outro genitor. Os casos mais freqüentes da Síndrome da Alienação Parental estão associados a situações onde a ruptura da vida conjugal gera, em um dos genitores, uma tendência vingativa muito grande. Quando este não consegue elaborar adequadamente o luto da separação, desencadeia um processo de destruição, vingança, desmoralização e descrédito do ex-cônjuge. Neste processo vingativo, o filho é utilizado como instrumento da agressividade direcionada ao parceiro. [4]
Ainda, acerca do nexo de causalidade, Venosa explica que:
Na identificação do nexo causal, há duas questões a serem analisadas. Primeiramente, existe a dificuldade em sua prova; a seguir, apresenta-se a problemática da identificação do fato que constitui a verdadeira causa do dano, principalmente quando este decorre de causas múltiplas. Nem sempre há condições de estabelecer da causa direta do fato, sua causa eficiente. (2008, p. 48)
E cabe ao demandante o ônus da prova no que diz respeito ao nexo de causalidade, conforme ensina o mesmo autor, citando Pereira:
[...] é estabelecer, em face do direito positivo, que houve uma violação de direito alheio e um dano, e que existe um nexo causal, ainda que presumido, entre uma e outro. Ao juiz cumpre decidir com base nas provas que ao demandante incumbe produzir (2008, p. 49).
Infere-se, assim, que prova do nexo de causalidade entre a conduta do suposto ofensor no caso do abandono afetivo parental e o alegado dano, na maioria da vezes, será controvertida, pela oposição de outros fatores, o que levaria ao magistrado a apenas um juízo de probabilidade da real causa do abalo psíquico, o que poderia gerar insegurança jurídica, conforme assevera Neves:
A verdade é que não existe uma uniformidade no tratamento dos Tribunais acerca do nexo causal. Muitas vezes não será possível ter a certeza absoluta do liame causal, sendo necessário, nestes casos, recorrer-se à experiência e à probabilidade (2009, p. 339).