Capa da publicação Responsabilidade civil parental por abandono afetivo: argumentos contrários
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Reflexões acerca da responsabilidade civil parental por abandono afetivo

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22/07/2010 às 10:05
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Principais argumentos contrários à indenização por abandono afetivo parental, destacando a destituição do poder familiar como consequência jurídica.

Resumo: O presente estudo visa traçar, em síntese, os principais argumentos contrários à tese da possibilidade de fixação de indenização por dano moral em conseqüência do abandono afetivo na relação parental, à luz dos pressupostos gerais da responsabilidade civil. Aponta-se, como conseqüência jurídica, no âmbito do direito de família, a destituição do poder familiar em decorrência do abandono moral, com base no princípio da dignidade da pessoa humana.

Palavras-chave: Responsabilidade Civil. Abandono Afetivo. Impropriedade. Ausência dos pressupostos gerais de responsabilidade civil. Conseqüência jurídica do abandono afetivo. Destituição do poder familiar.

Sumário: 1 Introdução; 2 Reflexões sobre o tema da afetividade; 3 Conceito e pressupostos de responsabilidade civil em confronto com a tese da responsabilidade civil parental por abandono afetivo; 3.1 Da ilicitude da conduta; 3.2 Da conduta culposa; 3.3 Do abandono afetivo e do dano moral; 3.4 Do nexo de causalidade; 4 Repercussão jurídica do abandono afetivo parental: possibilidade de destituição do poder familiar; 5 Conclusão; 6 Referências Bibliográficas.


1. INTRODUÇÃO

Historicamente, desde a vigência da Constituição Italiana de 1948, o Código Civil daquele país, apesar de ainda funcionar como eixo do sistema privado, estabelecendo as principais normas de índole eminentemente privadas que disciplinam as relações jurídicas entre os indivíduos, passou a ser interpretado e ressignificado por normas constitucionais. Tal fenômeno, posteriormente denominado de constitucionalização do direito civil, ocorreu na Itália, pelo fato de que o Código Civil lá editado em 1942 o foi sob a égide de governo autoritário ou fascista que suprimia os direitos dos indivíduos em face do Estado, frontalmente oposto ao espírito democrático da nova ordem constitucional e dos direitos fundamentais.

Sobre o tema, explica Timm:

Na Itália, o fenômeno em tela tem a data de 1º de janeiro de 1948, com a entrada em vigor da sua nova Constituição e pode ser caracterizado como segue. Primeiro, o Código Civil deixou de constituir o centro geométrico de toda ordem jurídica constituída. O primado da legislação passou para a Constituição, ao lançar as bases de uma nova sociedade ideologicamente comprometida.A Constituição passou a regular não só a organização do Estado e a tutelar as liberdades públicas e os direitos políticos, mas também imiscuiu-se em institutos basilares da sociedade burguesa liberal, antes tratados exclusivamente nos Códigos, como o casamento, a propriedade, a liberdade econômica, etc., dando poderes a grupos intermediários, ou seja, que ficam entre a pessoa humana e o Estado e se constituem em organizações sociais onde o indivíduo exerce a sua personalidade. (2008, p.16).

A Constituição Federal do Brasil de 1988 elevou ao seu texto diversas relações de direito privado, como, por exemplo, a disciplina da propriedade privada que passa a ter função social (artigo 170, inciso III), proteção à imagem e indenização por dano moral (artigo 5º, inciso V), além de vários temas de direito de família (artigo 226).

Assim, surge no Brasil a chamada Escola de Direito Civil-Constitucional, conforme anota Sampaio Júnior:

Para os teóricos dessa escola, a Constituição da República de 1988 teria instaurado novos parâmetros hermenêuticos, que exigiriam da imediata adequação das normas vigentes à ordem constitucional. Entretanto, não se tratava apenas de uma análise do instituto da recepção da normas anteriores pelo novo regramento constitucional. Tratava-se, sim, de aplicar o Direito conforme o espírito da Constituição e com amparo na sua principiologia, centrada na dignidade da pessoa humana. Isto é, a validade do ordenamento infraconstitucional é condicionada à sua adequação aos princípios constitucionais, sendo juridicamente reconhecidas e tuteladas apenas aquelas normas que com ele guardem sintonia (2009, p.71).

Escrevendo sobre o tema da Constitucionalização do direito civil, menciona Dias:

Grande parte do direito civil está na Constituição, que acabou enlançando os temas sociais juridicamente relevantes para garantir-lhes efetividade. A intervenção do Estado nas relações de direito privado permite o revigoramento das instituições de direito civil e, diante do novo texto constitucional, forçoso ao intérprete redesenhar o tecido do direito civil à luz da nova Constituição. Essa é uma característica do chamado estado social, que intervém em setores da vida privada como forma de proteger o cidadão, postura impensável em um estado liberal que prestigia, antes e acima de tudo, a liberdade. O direito civil constitucionalizou-se, afastando-se da concepção individualista, tradicional e conservadora-elitista da época das codificações do século passado. Agora, qualquer norma jurídica de direito das famílias exige a presença de fundamento de validade constitucional. (2007, p. 36).

Em harmonia com o pensamento da citada doutrina brasileira civil-constitucional, liderada por autores como Gustavo Tepedino, alguns estudiosos do direito de família brasileiro, como Maria Berenice Dias (2008) e Ana Carolina Brochado Teixeira (2008), partem da idéia de que o estudo e interpretação das normas infraconstitucionais relativas ao direito de família contidos no Código Civil e legislação esparsa devam ser operacionalizados pela aplicação de vários subprincípios (afetos às relações de direito de família) derivados da dignidade da pessoa humana, que se expressa em um dos fundamentos da República Federativa do Brasil (artigo 1º, III, da Constituição Federal).

Essa doutrina cita, dentre outros, o princípio da não intervenção ou da liberdade do planejamento familiar, da igualdade dos filhos havidos ou não na constância do casamento, da igualdade entre cônjuges e companheiros, da igualdade no exercício do poder familiar, da solidariedade familiar, do melhor interesse da criança, da função social da família, e, finalmente, o princípio da afetividade (TEIXEIRA; RIBEIRO, 2008).

Sob o fundamento de que a afetividade é princípio de direito de família, como derivação implícita do princípio da solidariedade (artigo 3º, inciso I, da Constituição Federal) e da dignidade da pessoa humana, começaram a surgir provocações ao Poder Judiciário pleiteando indenizações por dano moral em casos em que há abandono afetivo de pais em relação aos seus filhos, diante do presumido dano moral e psíquico sofrido em decorrência da ausência ou desprezo do ascendente, sob o argumento que a obrigação daquele não se esgotaria no dever de sustento material, mas também no dever de afeto, conforme anota Gonçalves:

Algumas decisões de São Paulo, Minas Gerais e Rio Grande do Sul têm acolhido a pretensão de filhos que se dizem abandonados ou rejeitados pelos pais, sofrendo transtornos psíquicos em razão da fata de carinho e de afeto na infância e juventude. Não basta pagar a pensão alimentícia e fornecer os meios de subsistência dos filhos. Queixam-se estes do descaso, da indiferença e da rejeição dos pais, tendo alguns obtido o reconhecimento judicial do direito à indenização como compensação pelos danos morais, ao fundamento de que a educação abrange não somente a escolaridade, mas também a convivência familiar, o afeto, o amor, o carinho, devendo o descaso entre pais e filhos ser punido severamente por constituir abandono moral grave. (2007, pág. 699).

No Rio Grande do Sul, na cidade de Capão da Canoa, há registro de sentença oriunda do processo n.º 1.030.012.032-0, que reconheceu o direito à indenização de uma filha abandonada afetivamente pelo pai, fixando-se o valor do abandono em duzentos salários mínimos, conforme cita Castro:

A história é de uma jovem, fruto de um relacionamento sem sucesso, que desde seus primeiros anos relacionou-se com o genitor apenas em audiências. Apesar do comprometimento, inclusive em juízo, de estar presente durante a criação da filha, o pai jamais demonstrou qualquer afetividade pela criança, pouco se importando com a sua existência, dando-se satisfeito com a condenação à obrigação material (2010, p. 01).

Caso emblemático foi dirimido pelo Superior Tribunal de Justiça, ao julgar o Recurso Especial n.º 757.411-MG, j. 29-11-2005, que reformou decisão Tribunal de Justiça de Minas Gerais da 7ª Câmara Cível, na Apelação nº 408.550-5-BH, que havia fixado indenização de 200 salários mínimos ao pai, com fundamento de que a responsabilidade (pelo filho) não se pauta tão-somente no dever de alimentar, mas se insere no dever de possibilitar o desenvolvimento humano dos filhos, baseado no princípio da dignidade da pessoa humana.

O Superior Tribunal de Justiça reformou o acórdão, que dividiu as opiniões dos ministros. Ressaltando-se que apenas um ministro (Barros Monteiro), entendeu que o genitor tem o dever de assistir moral e afetivamente o filho, e só estaria desobrigado de pagar a indenização se comprovasse a ocorrência de motivo de força maior. Os outros ministros assim não entenderam, afirmando que o que a lei prevê como punição pelo abandono afetivo é a perda do poder familiar, devendo ser afastada a responsabilidade patrimonial. (GONÇALVES, 2007).

Em resumo, a decisão citada foi no sentido da inexistência de ato ilícito a ser indenizável em virtude do abandono afetivo, nos moldes do artigo 159 do Código Civil de 1916. Em suma, o Superior Tribunal de Justiça entendeu que o abandono afetivo não configura dano moral, conforme ementa do julgado:

RESPONSABILIDADE CIVIL. ABANDONO MORAL. REPARAÇÃO. DANOS MORAIS. IMPOSSIBILIDADE. A indenização por dano moral pressupõe a prática de ato ilícito, não rendendo ensejo à aplicabilidade da norma do artigo 159 do Código Civil de 1916 o abandono afetivo, incapaz de reparação pecuniária. 2. Recurso especial conhecido e provido", STJ, REsp n. 757411, 4ª T, Rel. Min. Fernando Gonçalves, julgado em 29/11/2005. Votou vencido o Ministro Barros Monteiro, que dele não conhecia. Os Ministros Aldir Passarinho Junior, Jorge Scartezzini e Cesar Asfor Rocha votaram com o Ministro relator. (TEIXEIRA; RIBEIRO, 2008, p. 40/41).

Recente decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo inovou em relação ao mencionado entendimento do Superior Tribunal de Justiça relativo ao tema do abandono afetivo ao reconhecer o direito à indenização ao filho, em virtude da alegação de que seu pai o teria desprezado desde criança em virtude de uma deformidade física em sua orelha, o que teria lhe gerado angústia e dano psíquico. A decisão da 4ª Câmara de Direito Privado teve como base o entendimento do Desembargador Ênio Zuliani, relator do recurso, e a divergência do Desembargador Maia da Cunha. Segundo Zuliani o pai não teria sido solidário com o drama do filho, restringindo-se a cumprir a sentença da ação de alimentos, nada tendo feito para amenizar o drama pessoal vivido pelo filho em decorrência da má-formação da sua orelha. [1]

Somando-se à importância da análise da jurisprudência nacional que já enfrentou o tema, há notícia de que tramita na Câmara o Projeto de Lei 4294/08 de autoria do deputado Carlos Bezerra (PMDB-MT) que sujeita pais que abandonarem afetivamente seus filhos a pagamento de indenização por dano moral, propondo alteração no Código Civil. [2]

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Com efeito, coloca-se como relevante a reflexão sobre a possibilidade ou não da atribuição de indenização civil pelo abandono afetivo parental.

Primeiramente, deve-se enfrentar a questão da natureza jurídica do afeto. Há de fato um dever jurídico de afeto dos pais em relação aos filhos? Trata-se de um ônus? Trata-se de mera obrigação moral?

Em um segundo aspecto, deve-se enfrentar a possibilidade em tese do preenchimento dos pressupostos gerais da responsabilidade civil, já que a matéria relativa ao direito de família avançaria sob os pilares do sistema geral do Código Civil, que permanece íntegro no sistema normativo. Logo, deve-se indagar: 1) qual o tipo de responsabilidade atribuída ao agente: subjetiva ou objetiva?; 2) o abandono afetivo configura dano moral por omissão?; 3) pode ser provado o dano psíquico sofrido pelo abandonado?; 4) Como provar o nexo de causalidade entre o abandono e o suposto dano psíquico?

Por último, ressalta-se o perigo da patrimonialização de questões de família e a crítica da utilização da responsabilidade civil punitiva, bem como a inutilidade de fixação dessa indenização do ponto de vista do restabelecimento ou surgimento do bom convívio entre aqueles ligados pelo vínculo de sangue, mas separados por fatores íntimos. Nesse aspecto, deve-se analisar a conveniência e oportunidade sociais da adoção da tese da reparabilidade civil por ausência de afeto nas relações parentais, inclusive levando-se em conta, em caso de menor, a doutrina da proteção integral e do melhor interesse da criança.


2. REFLEXÕES SOBRE O TEMA DA AFETIVIDADE

Pode-se afirmar que, segundo significativa corrente doutrinária, a afetividade, ou seja, o liame psicológico-emocional que une os indivíduos de um núcleo, seria o vínculo central e definidor da família contemporânea.

Tecendo considerações sobre o tema, Tartuce preleciona:

No que tange a relações familiares, a valorização do afeto remonta ao brilhante trabalho de João Batista Vilella, escrito no início da década de 1980, tratando da desbiologização da paternidade. Na essência, o trabalho procurava dizer que o vínculo familiar seria mais um vínculo de afeto do que um vínculo biológico. Assim, surgiria uma nova forma de parentesco civil – a parentalidade socioafetiva – baseada na posse de estado de filho.(In: TEIXEIRA; RIBEIRO, 2008, p. 48).

Para esse pensamento, a afetividade estaria caracterizada como verdadeiro princípio ou fundamento do direito de família moderno por ser o elemento principal na identificação dos laços familiares não formalizados pela estrutura tradicional do casamento, ou na caracterização dos vínculos de filiação, conforme preleciona umas das principais vozes sobre o tema, Maria Berenice Dias:

O novo modelo da família funda-se sobre os pilares da repersonalização, da afetividade, da pluralidade e do eudemonismo, impingindo nova roupagem axiológica ao direito de família. Agora, a tônica reside no indivíduo, e não mais nos bens ou coisas que guarnecem a relação familiar. A família-instituição foi substituída pela família-instrumento, ou seja, ela existe e contribui tanto para o desenvolvimento da personalidade de seus integrantes como para o crescimento e formação da própria sociedade, justificando, com isso, a sua proteção pelo Estado. ( 2007, pág. 41).

Acrescenta, ainda, a mesma autora:

Ao serem reconhecidas como entidade familiar merecedora da tutela jurídica as uniões estáveis, que se constituem sem o selo do casamento, tal significa que o afeto, que une e enlaça duas pessoas, adquiriu reconhecimento e inserção no sistema jurídico. Houve constitucionalização de um modelo de família eudemonista e igualitário, com maior espaço para o afeto e a realização individual. (2007, pág. 67).

Ganharia, assim, mais importância na caracterização da família o laço de união e amor do que propriamente o fator meramente genético.

Essa interpretação parte da idéia que a Constituição Federal do Brasil, ao prever a liberdade do planejamento familiar, em seu artigo 226, §7º, bem como a igualdade entre os filhos havidos ou não dentro da estrutura do casamento, no artigo 227, §6º, teria democratizado o conceito de família.

O que uniria primordialmente os indivíduos numa relação familiar deixaria de ser a estrutura formal e passaria a ser primordialmente o vínculo psicológico-afetivo. Tal afirmação parte da constatação princípio da igualdade e da liberdade, entre os diversos tipos de entidade familiar, seja a união estável, seja o casamento propriamente dito, seja a entidade monoparental, ou entidade homoafetiva, as quais devem merecer a mesma proteção jurídica estatal, o que se fundamentaria no princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da Constituição Federal).

Partindo-se desta premissa, lançada por parte da doutrina familiarista brasileira, na jurisprudência nacional a relação de afeto passou a ser utilizada como critério preponderante para solução de conflitos versando sobre filiação, invoncando-se, mais uma vez, o princípio da dignidade da pessoa humana.

É o que se extrai, por exemplo, da seguinte decisão:

NEGATÓRIA DE PATERNIDADE. ADOÇÃO À BRASILEIRA. CONFRONTO ENTRE A VERDADE BIOLÓGICA E A SOCIOAFETIVA. TUTELA DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. PROCEDÊNCIA. DECISÃO REFORMADA. 1. A ação negatória de paternidade é imprescritível, na esteira do entendimento consagrado na Súmula 149/STF, já que a demanda versa sobre o estado da pessoa, que é a emanação do direito da personalidade. 2. No confronto entre a verdade biológica, atestada em exame de DNA, e a verdade socioafetiva, decorrente da adoção à brasileira (isto é, da situação de um casal ter registrado, com outro nome, menor, como se deles filho fosse) e que perdura por quase 40 anos, há de prevalecer à solução que melhor tutele a dignidade da pessoa humana. 3. A paternidade socioafetiva, estando baseada na tendência da personificação do direito civil, vê a família como instrumento de realização do ser humano; aniquilar a pessoa do apelante, apagando-lhe todo o histórico de vida e condição social, em razão de aspectos formais inerentes à irregular adoção à brasileira, não tutelaria a dignidade humana, nem faria justiça ao caso concreto, mas, ao contrário, por critérios meramente formais, proteger-se-iam as artimanhas, os ilícitos e as negligências utilizadas em benefício do próprio apelado

(TJPR, Apelação Cível 0108417-9, Rel. Des. Accácio Cambi, publicado em DJ 04/02/2002).

Neste sentido, explica Queiroz:

É devido a tal mutabilidade conceitual que a filiação não pode ser entendida como fenômeno biogenético (biológico pelo parto e genético pela transmissão do código genético), mas, sim, como fenômeno cultural e prescrição jurídica. Nesse diapasão, os termos pai e genitor não redundam mais em sinônimos. Genitor é aquele que fornece o material genético e pai é aquele que detém o liame da filiação. As referidas figuras não podem ser confundidas pela ordem normativa, dada a distância que as separa no estágio atual da biotecnologia de reprodução humana e da configuração da paternidade. (In: TEIXEIRA; RIBEIRO, 2008, pág. 199).

Entretanto, muito embora haja afirmação por parte da doutrina que o princípio da afetividade seja extraído dos já mencionados princípios constitucionais, não há referência expressa a ele na legislação infraconstitucional brasileira.

É o que pondera a mesma doutrinadora acima referida:

O Código Civil também não utiliza a palavra afeto, ainda que, em alguns dispositivos, se possa entrever esse elemento para caracterizar situação merecedora de tutela. Invoca somente o laço de afetividade como elemento indicativo para a definição de guarda do filho quando da separação dos pais (CC 1584 parágrafo único). Ainda que com grande esforço se consiga visualizar na lei a elevação do afeto a valor jurídico, mister é reconhecer que tímido mostrou-se o legislador. (DIAS, 2007, pág. 68).

Há, inclusive, entre os estudiosos do direito de família brasileiro, quem teça críticas ao conceito de família fundado no afeto, conforme expõe Rocha:

Como se não bastasse o modo inapropriado com que o afeto tem sido invocado por parte da doutrina brasileira, o "afeto" não é um dado da realidade capaz de identificar a família nem mesmo em sentido filosófico-científico. Há realidades afetivas que extrapolam os limites da família e realidades não afetivas que se incluem no conceito de família. Exorbitam do conceito de família a mera amizade e o namoro. Faltam-lhes outros elementos que comparecem com freqüência na formação da família: estabilidade, intuito de formação de família, coabitação e dependência econômica. Há outras situações em que a socioafetividade se contrapõe ao sistema jurídico. O casamento gera família, independentemente da situação socioafetiva, por força do que dispõe a Constituição nos §§ 1º e 2º do artigo 226 ( 2009, p. 61).

E acrescenta o mesmo autor:

A constatação de que a ordem jurídica sobre a família e sua proteção não estão atreladas necessariamente aos fenômenos psíquicos, notadamente à existência de afeto, induz que este constitui apenas um dos elementos (um dos mais importantes) para a construção constitucionalmente adequada do conceito de "família". O conceito de "família", no entanto, é sociológico, como anotou Popper: A psicologia é uma ciência social visto depender, grandemente, nossos pensamentos e ações, de nossas condições sociais. Idéias como (a) imitação, (b) a linguagem, (c) a família, são obviamente idéias sociais; e está claro que a psicologia da aprendizagem e do pensamento e também, por exemplo, a psicanálise, não podem existir sem utilizar uma ou outra dessas idéias sociais. Portanto, a psicologia pressupõe idéias sociais, o que demonstra ser impossível explicar a sociedade exclusivamente em termos psicológicos ou reduzi-las à psicologia. Logo, não podemos considerar a psicologia como a base das ciências sociais. (2009, p. 64).

Ainda, sobre o tema do afeto, arremata Lisboa:

Afeição é um sentimento que se tem em relação a determinada pessoa ou algum bem. Afeiçoar-se significa identificar-se, ter afeto, amizade ou amor. Os membros de uma família, em sua maioria, possuem laços de afeição uns pelos outros. Entretanto, isso não é realidade absoluta. Há entidades familiares desgraçadas por inimizades capitais e por relacionamentos praticamente nulos. Ora, nenhuma pessoa pode ser compelida a afeiçoar-se a outra, pouco importando se há entre elas algum parentesco ou não. Bom seria se todos tivessem afeto uns pelos outros, cumprindo o mandamento bíblico e de outras religiões não cristãs. Todavia, a complexidade das relações interpessoais muitas vezes leva a situações que impedem ou mesmo enfraquecem esse nível de relacionamento. E não há qualquer poder temporal capaz de modificar esse quadro, compelindo uma pessoa a se afeiçoar a outra. (2008, pág. 25).

Pondera-se que a elevação da afetividade como verdadeiro princípio de direito de família, que encontra respaldo em grande parte da moderna doutrina familiarista nacional, não é tema pacífico, havendo críticas por ser o afeto tema relacionado à psicologia, não podendo ser o único critério para identificação dos modelos familiares, sendo abstrata tal tese unicamente baseada no princípio da dignidade da pessoa humana, princípio fundamental da República Federativa do Brasil, mas que se constitui em cláusula aberta, de difícil conceituação, conforme expõe Tavares:

[...] não se alcançará, no entanto, o que "efetivamente" é o âmbito de proteção da dignidade. Isso porque, segundo INGO WOLFANG SARLET, uma das principais dificuldades, todavia – e aqui recolhemos a lição de MICHAEL SACHS – reside no fato de que no caso da dignidade da pessoa, diversamente do que ocorre com as demais normas jusfundamentais, não se cuida de aspectos mais ou menos específicos da existência humana (integridade física, intimidade, vida, propriedade, etc), mas, sim, de uma qualidade tida como inerente a todo e qualquer ser humano, de tal sorte que a dignidade – como já restou evidenciado – passou a ser habitualmente definida como constituindo o valor próprio que identifica o ser humano como tal (2008, p. 537).

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Sobre o autor
Samir Nicolau Nassralla

Graduado pela Faculdade de Direito de Franca - SP; Defensor Público do Estado de São Paulo; Especialista em Direito Civil pela PUC-MG

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

NASSRALLA, Samir Nicolau. Reflexões acerca da responsabilidade civil parental por abandono afetivo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2577, 22 jul. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17029. Acesso em: 29 mar. 2024.

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