CAPÍTULO 4 - BRASIL ANO 2000: REFORMA DO ESTADO OU REFORMA DA CONSTITUIÇÃO
"À medida que a proteção aos direitos públicos passava a ser dominante em todo o mundo, foi-se tornando cada vez mais claro que era preciso refundar a república, que a reforma do Estado ganhava nova prioridade, que a democracia e a administração pública burocrática - as duas instituições criadas para proteger o patrimônio público - precisavam mudar: a democracia devia ser aprimorada para se tornar mais participativa ou mais direta, e a administração pública burocrática devia ser substituída por uma administração pública gerencial". Luiz Carlos Bresser Pereira [164].
Essas palavras foram pronunciadas pelo então Ministro da Administração e da Reforma do Estado, ao Seminário sobre Reforma do Estado realizado em Brasília, em 1996, sob os auspícios das Nações Unidas, do Centro Latino-americano de Administração para o Desenvolvimento e, principalmente, do Banco Interamericano de Desenvolvimento. [165]
A noção de Estado, suas dimensões ideais e suas relações com a sociedade têm sido objeto de análises profundas em praticamente todo o mundo. O Estado onipresente e hipertrofiado não encontra espaço no mundo atual, sendo-lhe exigido reduzir seu tamanho e aumentar a eficiência de seus resultados, em uma relação custo-benefício satisfatória.
Porém, esta "refundação" da República somente terá legitimidade se submetida aos verdadeiros interesses da sociedade. É preciso reinventar o Estado, modificar seu relacionamento com o cidadão, privatizar parte de seu corpo, retirar-lhe a onipotência, submetê-lo à obediência do ordenamento jurídico e fazer com que devolva à sociedade numerosas atividades das quais se incumbiu inadequadamente e desempenhe funções sociais historicamente omitidas; em suma, que se submeta mais diretamente à sociedade brasileira, de quem sempre esteve dissociado.
"Temos vivido, como nação, atormentados pelos "males" modernos e pelos "males" do passado, pelo velho e pelo novo, sem termos podido conhecer uma história de rupturas revolucionárias. Não que não tenhamos nos modernizado e chegado ao desenvolvimento. Fizemos isso de modo expressivo, mas não eliminamos relações, estruturas e procedimentos contrários ao espírito do tempo. Nossa modernização tem sido conservadora, aliás, duplamente conservadora. Em primeiro lugar, porque tem se feito com base na preservação de expressivos elementos do passado, que são assimilados, modernizados e tornados funcionais, alcançando tamanha força de reprodução que conseguem condicionar todo o ritmo e a qualidade mesma da mudança: 'como não há ruptura definitiva com o passado, a cada passo este se reapresenta na cena histórica e cobra o seu preço'". Marco Aurélio Nogueira [166]
Mudar significa abandonar o passado em direção ao futuro, renovando a ordem institucional. Mudança é desafio, por exigir que se transponham tradições que, como máscaras, colam nos homens e nas formas da sociedade se exteriorizar. Sobretudo nas crises: como o futuro se apresenta obscuro, a saída parece ser a volta ao passado.
O Brasil não rompeu com o passado. A modernização brasileira tem sido promovida pelo Estado sem participação popular, como sempre antes. Permeável a interesses conservadores, tem sido processo de modernização (por apenas desenvolver e aprimorar seus instrumentais) sem modernidade (por não ajustá-los a uma normatividade capaz de orientar a autodeterminação política) que, optando pelo capital internacional como alavanca para o crescimento econômico, tem-se revelado processo de modernização dependente.
Historicamente, as classes dominantes têm imposto uma ordem social competitiva fechada às necessidades e aspirações das demais classes. Como examinado no Capítulo 1, nos primórdios da História do Brasil, ao rechaçar e dizimar o indígena, o colonizador rejeitava o novo, não sendo por acaso que o processo burocrático de colonização portuguesa tenha dotado a máquina estatal de força capaz de resistir às mudanças.
Dessa forma, a sociedade brasileira constituiu-se através do que Gramsci denominou "revolução passiva" [167], sem participação popular. O resultado foi o surgimento de uma sociedade desigual, fundada na não-inclusão e na qual não se logrou definir uma estrutura de classes. A cooptação pelo Estado de quadros exponenciais de vários grupos e classes sociais, máxime lideranças políticas e intelectuais, obstaculizou o processo de formação da autoconsciência e organização de classes. É de se notar que, no outro extremo, tal prática revelou-se também nociva às classes dominantes, por estancar o processo de desenvolvimento de uma burguesia industrial capaz de disputar espaço com o agrarismo que sempre predominou no País e definir o esboço de um projeto político de inspiração endógena. Em conseqüência, abrindo mão do exercício direto de funções dirigentes, que lhe poderiam caber, a burguesia nacional conformou-se com o protecionismo estatal. O que se tem visto, em geral, é a mudança promovida pelo Estado, sem o impulso de pressões organizadas dos diversos segmentos da sociedade.
4.1 A crise do Estado, o neoliberalismo, a globalização
"Depois de 1964, o Estado brasileiro teve um imenso desenvolvimento exatamente para servir ao tripé empresarial e beneficiar fundamentalmente o sócio maior aqui instalado. A Companhia Siderúrgica Nacional vende seus produtos pela metade do preço do mercado internacional exatamente para a indústria automobilística transnacional instalada no país.
É claro que, de tanto servir dessa forma, o Estado brasileiro acabou se transformando num monstro de corrupção, ineficiência e com um custo que, agora ninguém quer mais pagar. Quem o criou e dele se beneficiou, no entanto, agora aparece como inocente privatista em luta pela liberdade, pela livre iniciativa e a democracia." Herbert de Souza. [168]
Até o início dos anos 90, manteve-se no Brasil o esquema de poder político instituído pela Revolução de 30. As classes dominantes, lideradas pelo empresariado industrial, utilizavam-se do aparelho do Estado para dirigir o mercado segundo seus interesses. Explica-se.
A depressão de 1929 inviabilizou a poupança externa como garantia do processo de industrialização brasileiro. Internamente, as incipientes estruturas capitalistas não permitiam a geração espontânea de uma poupança expressiva. Como saída para a crise, adotou-se a política de substituição das importações e do confisco cambial na exportação de produtos agrícolas.
Através da política de substituição de importações, o Estado garantiu uma importante reserva de mercado no setor industrial, negando-se licença de importação tanto para produtos similares aos nacionais, como também para aqueles considerados passíveis de vir a ser internamente produzidos [169]. Pari passu, autorizava-se a importação para a montagem de fábricas nacionais.
Por seu turno, o confisco cambial na exportação derivava do monopólio estatal de todas as operações cambiais, obrigando o exportador de produtos agrícolas a entregar à instituição financeira oficial as cambiais de exportação, em troca de quantia muito inferior (em moeda nacional) à que receberia se o câmbio fosse referenciado no mercado livre.
Contemporizando com a política oficial, as duas classes firmaram um pacto, conformando-se o setor agrário exportador em manter uma posição secundária no esquema de poder, assumido pelos industriais, desde que não se alterassem a estrutura agrária e as relações de trabalho no campo.
Paralelamente ao processo de industrialização, o primeiro governo Vargas arquitetou e montou um sistema de proteção e controle dos trabalhadores urbanos que compreendia, de um lado, o estímulo à capacidade de consumo com vistas à nova produção industrial, pelo pagamento regular de salários e pela garantia de um mínimo de proteção previdenciária e, de outro, o controle de suas reivindicações, pelo controle e domínio de seus organismos protetivos.
Por sua vez, o capital internacional, no pós II Guerra Mundial, se impunha e se espalhava pelo mundo, na figura das grandes corporações, erigidas como "absolutos" [170] modernos. Na América Latina, os governos militares alijavam a sociedade civil do processo de desenvolvimento do Estado, transformado também em entidade absoluta, na qual se condensaram relações de força e de dominação.
Esse foi o quadro contextualizador da experiência político-econômica brasileira, no contexto latino-americano mais amplo, porém não diverso, da América Latina, cuja História revela repetida situação de Estados nacionais a serviço de interesses transnacionais: seja o golpe militar de 1964 no Brasil, a invasão da República Dominicana em 1965, o golpe no Peru em 1968, o golpe no Chile em 1973, as crises sucessivas na Argentina, entre outros, o processo de transnacionalização desenvolveu-se no Continente, com características semelhantes [171]:
- Estado praticamente reduzido ao Poder Executivo, centralizado e constituído a partir de decisões autoritárias com base nas Forças Armadas, em que desapareceu - ou foi contida - a divisão tradicional dos Poderes;
- movimentos populares e partidos políticos submetidos à lógica das leis de segurança nacional, transformando-se o povo no próprio inimigo;
- processos eleitorais banidos ou controlados de forma a não ameaçar o núcleo central do Poder Executivo;
- Congresso Nacional, quando não fechado, transformado em instância decorativa, chamado a apenas legitimar os atos do Executivo;
- órgãos de formação de opinião submetidos à censura estatal e, de modo geral, transformados em geradores das imagens reveladoras de uma realidade do país e do mundo programada pelos setores dominantes;
- movimentos de oposição real ao regime, tratados segundo os princípios da guerra e não da política.
Este Estado elitista, desnacionalizado, tecnocrático, repressivo revelava uma força que não era sua (enquanto Estado nacional), mas resultado de sua inserção no sistema capitalista mundial. O Estado transnacionalizado se viu, cada vez mais, impotente frente aos centros de decisão econômicos e políticos. Sem condições de determinar que tipos de industrialização e de desenvolvimento convinham às necessidades e às potencialidades do país, sobrou-lhe a condição de promover a transnacionalização e de administrar suas crises. Os sonhos de desenvolvimento nacional foram substituídos pela imponência aparente de grandes projetos internacionais, como o Jari (predatório por excelência), por exemplo, que não pertenciam nem fundamentalmente beneficiavam o país hospedeiro, no caso, o Brasil.
O esquema desenvolvido com a industrialização do país funcionou até o final dos anos 70, durante quase meio século de crescimento econômico ininterrupto, elevando o Brasil à posição de oitava potência industrial do mundo.
Todavia, os dois choques do petróleo ocorridos em 1973 e 1979, alterando o peso do custo da energia e, em conseqüência, deflagrando uma grave crise do sistema financeiro, desorganizando o modelo econômico forjado no pós-guerra, provocando enorme recessão nos países desenvolvidos, obrigando as grandes empresas a reagirem defensivamente à estagnação produtiva e instabilizando o comércio internacional golpearam de morte o Estado industrial brasileiro. No processo de globalização da economia brasileira, os industriais que resistiram à investida das macroempresas estrangeiras vêm sendo substituídos por outra categoria econômica, os banqueiros, que passam a ocupar posição dominantemente hegemônica.
"O apostolado liberal conseguiu no Brasil uma de suas mais retumbantes vitórias. As classes dirigentes brasileiras, que sempre foram avessas a ideologias, acabaram se convertendo rapidamente ao novo credo: fora do mercado, não há salvação. Aceitaram, sem maior raciocínio, a idéia de que a prosperidade geral (para efeitos retóricos) e a sua em particular (a única que realmente lhes interessava) proviria da redução do Estado nacional ao mínimo necessário. Não lhes passou nem um segundo pela cabeça que, ao assim agirem, estavam liquidando o seu principal aliado na luta concorrencial". Fábio Konder Comparato [172]
A respeito, ensina ainda Comparato que "a miragem da privatização, complementada com a exclusão do acesso de pequenas e médias empresas ao crédito bancário, em razão da política de juros astronômicos, encobria de fato a mais profunda desnacionalização que a economia brasileira jamais experimentara" [173].
Assim como aconteceu com o processo de industrialização na primeira metade do século, a desnacionalização das instituições financeiras brasileiras vem ocorrendo de forma acelerada [174]. É de se notar que a globalização não apenas não tem resolvido, como tem dificultado a formação de poupança interna, condição essencial para o desenvolvimento de qualquer país. Concomitantemente à desnacionalização do setor bancário, a capacidade estatal de financiar os investimentos em setores de base vem encolhendo expressivamente. Desde 1995, o BNDES,
"[...] em política frontalmente contrária ao interesse público, passou a financiar largamente, não o investimento em setores industriais ou de base, mas a aquisição, por consórcios internacionais ou empresas estatais estrangeiras, do controle das empresas nacionais privatizadas. Ou seja, o Estado brasileiro, que se declarava sem recursos para financiar o desenvolvimento nacional, emprestou largas somas a empresários estrangeiros, não para investir no País, mas para que comprassem bens nacionais. O preço pago, aliás, não permitiu que o Estado brasileiro amortizasse nem um real ou um dólar da dívida pública. [...] todas as operações de privatização em proveito de grupos estrangeiros soldaram-se pela despedida coletiva de trabalhadores" [175].
Cabe enfatizar que, ao alienar o patrimônio nacional, o governo federal vem fomentando o desemprego da força de trabalho, sem oferecer perspectivas de emprego, na medida em que tem exauridas suas reservas para investimento no setor produtivo. Em paralelo, vê-se a Nação diante de outra adversidade: enquanto os industriais brasileiros nunca viram no Estado seu concorrente (este era a empresa estrangeira), os bancos, são visceralmente ligados ao capital financeiro internacional, provindo sua receita mais da especulação com títulos públicos do que com financiamentos propriamente [176].
Nesse contexto, o processo de desmonte do Estado, ao lado da desnacionalização das empresas brasileiras, vem-se fazendo acompanhar da demolição do sistema de proteção aos trabalhadores, enquanto a capacidade nacional de decisão é transferida para o Fundo Monetário Internacional, para o Banco Mundial, representantes do capital transnacionais. O Estado vem se retraindo em relação às políticas sociais, à educação, à moradia, saúde, à posse da terra, diminuindo seus compromissos, deixando os movimentos sociais entregues ao "deus mercado", cuja resposta sempre dependerá, inevitavelmente, de contraprestação em dinheiro: sem dinheiro e sem Estado para garantir necessidades básicas da sociedade, estas jamais serão atendidas [177].
A globalização não é fato recente [178], aparentemente ensejando que o mundo globalizado seja menor e que os povos se encontrem mais próximos. Porém, seus efeitos se vêem com mais nitidez ao se aproximar o final do milênio, quarenta anos após seu surgimento em terreno europeu e quase dez de impacto sobre as débeis economias dos países em desenvolvimento, sobretudo latino-americanos.
Sendo problemática vivenciada em todo o mundo contemporâneo [179], porém mais drasticamente pelos países periféricos (Brasil, Argentina, México) e superperiféricos (Uganda, Moçambique, Nicarágua, Vietnã), devem-se levar em conta experiências semelhantes, no contexto político da América Latina.
Segundo Carlos E. Delpiazzo [180], no Uruguai, os instrumentos utilizados para a concreção do Estado foram supressões, concessões, transferências, desmonopolizações, fusões, associações, transformações, sendo que entre 1990 e 1990 o País sofreu um processo intenso de mudanças, no sentido da descentralização da Administração, desestatização, desmonopolização e desburocratização.
Após empreender pesquisas nos países mais industrializados da América Latina, mais especificamente Argentina, Brasil, Chile, Colômbia, México, Peru e Venezuela, o economista Wilson Cano sustentou a inviabilidade do modelo, ao argumento de que "Em cada um dos países analisados, encontramos ciclos de quatro, cinco anos de crescimento forte, misturados a crescimentos lentos e sofríveis. A questão basilar das contas do setor externo e das contas públicas, em função do peso enorme do financiamento da dívida pública, constitui um entrave à possibilidade de um processo de crescimento contínuo e sustentado para os países latino-americanos" [181]. Segundo o economista, o saldo da aplicação do modelo neoliberal na América Latina foi a desestruturação do sistema produtivo, falências e desnacionalizações, representando uma deterioração social que "se aprofunda de maneira sinistra, seja nas taxas crescentes de desocupação, na piora das relações de trabalho, no comportamento dos salários, nos níveis da linha de pobreza e na manifestação da violência em todos os países". Em suas conclusões, apresenta o seguinte quadro, relativamente aos países pesquisados:
ARGENTINA: prendeu-se ao congelamento cambial de forma institucionalizada e luta hoje por um lenitivo que a possa salvar da desvalorização cambial, como a ocorrida no Brasil em janeiro de 1999;
BRASIL: seguiu os passos da Argentina e do México, rumo ao desastre cambial, compensado pela desvalorização abrupta, recessão, renegociação da dívida e novos empréstimos, resultando em quebras financeiras, aumento da dívida externa e interna e agravamento político e social;
CHILE: optou pelo crescimento com base em seus recursos naturais, logrando alcançar bons resultados; porém, muitos dos investimentos chilenos em ativos nacionais de outros países latino-americanos desabaram em razão das manifestações da crise em 1998 e 1999;
COLÔMBIA: apesar de viver uma situação diferenciada, copiou o modelo neoliberal como se fosse qualquer um dos outros países que viviam processos inflacionários agudos e com estrutura de endividamento externo complexo;
MÉXICO: apostou em sua indústria, porém convertendo-se em departamento industrial da economia norte-americana; apresenta especificidades, devido à vinculação com o NAFTA e à fórmula peculiar de encadeamento que mantém com a indústria dos Estados Unidos;
PERU: outro caso crítico; apesar de toda a reestruturação por que passou, ainda mantém 86% de suas exportações à base de produtos primários. Em dois mandatos do presidente Fujimori, a taxa de subemprego na região de Lima chegou a 76% e o salário real caiu 60% em relação a 1980;
VENEZUELA: dada à sua escassa produtividade agrícola e industrial, optou também por investir em seus recursos naturais, no caso o petróleo, sendo de se observar que de 70% a 80% da pauta exportadora e da carga fiscal do país originam-se do petróleo, responsável pelo emprego de 2% apenas da população economicamente ativa.
O fato é que hoje, tanto os críticos, como seus próprios agentes [182], apontam o lado cruel da globalização. Estudo sobre o desenvolvimento humano em 1999, do PNUD - Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas, mostra as grandes disparidades decorrentes desse processo entre ricos e pobres, em escala mundial. Segundo o economista-chefe do Banco Mundial (BIRD), Joseph Stiglitz, o crescimento econômico por si próprio não resolverá da população mais pobre do planeta, não existindo uma solução modelar para o complexo problema do desenvolvimento. Em matéria divulgada na imprensa carioca, a jornalista Flavia Sekles assim se expressou:
"Os ricos estão ficando mais ricos muito mais rapidamente do que os pobres estão vendo sua renda crescer, e as diferenças entre ricos e pobres não estão aumentando apenas dentro dos países, mas também entre países. Segundo o relatório [do Banco Mundial], entre 1870 e 1985 a diferença de renda entre os países mais ricos e os mais pobres ficou seis vezes maior, o que demonstra como é 'difícil para os países pobres diminuir a diferença de renda que têm com seus parceiros mais ricos'. No passado mais recente, entre 1970 e 1985, a renda per capita dos países mais pobres caiu de 3,1% da renda dos países mais ricos para apenas 1,9%" [183]
É oportuno dar relevo à expressiva passagem que se transcreve a seguir, extraída das Conclusões apresentadas pelo Grupo I ao Relatório do Seminário Estado e Sociedade na América Latina, promovido em 1994 pelo Instituto de Políticas Alternativas para o Cone Sul - PACS:
"Na década de 90, descobrimos que não é necessário uma ditadura militar mas apenas um autoritarismo civil como no caso do Peru com Fujimori, uma excelente demonstração de como, para poder aplicar o ajuste neoliberal, se tem de eliminar o Congresso, reformar a Constituição, praticamente anular o novo Parlamento, fazer desaparecerem os governos regionais. Na Argentina estamos vendo também uma situação de cada vez mais autoritarismo, e aqui no Brasil, Collor era exatamente isso, um crescente autoritarismo." [184]
No caso brasileiro, a estrutura do Estado de Direito sugerida pelo ideal liberal perdera sua força com a promulgação da Constituição de 1988, valorizadora dos direitos sociais da pessoa humana, atribuindo sentido social aos novos direitos e superioridade da sociedade em face do Estado.
Entretanto, com o processo de globalização, acentuou-se o rompimento de uma ordem institucional que mal começava historicamente a amadurecer, em decorrência das conseqüências inevitáveis da queda dos blocos socialistas, que no final da década de 80 transpuseram os limites territoriais europeus, atingindo o Novo Continente: [185]
- a proteção do indivíduo e a integridade territorial modificam-se pelo encerramento da guerra fria;
- a economia sofre um processo acelerado de mundialização, com regime econômico "em nível planetário", inviabilizando a aplicação de políticas econômicas keynesianas;
- os Estados internacionalizam-se, através de participação inevitável em inúmeras organizações internacionais;
- o Direito Internacional valoriza-se, com maior poder de coerção em face de abusos individuais ou patrocinados por Estados soberanos, disponibilizando aos cidadãos foros internacionais para dedução de direitos, como a Corte Européia dos Direitos do Homem, por exemplo.
Quando, no Brasil, os setores industrial e financeiro (economicamente hegemônicos) passam a ser dominados pelo capital estrangeiro, o sistema político nacional permanece essencialmente oligarquizado e o poder de intervenção do Estado vem se reduzindo ao extremo, é de se perguntar sob que influência e em benefício de que sujeitos estão sendo tomadas as grandes decisões político-institucionais, como a sucessão insaciável de propostas apresentadas e de emendas à Constituição promulgadas in crescendo, a partir de 1989 [186].
É preciso que se atente para o fato de que, paralelamente às mudanças na ordem econômica, vem-se transformando a ordem jurídico-institucional, cabendo ressaltar a gradativa transformação do dogma da teoria clássica do Estado, de separação dos poderes da República, levados a assumir funções que não lhe eram tradicionalmente típicas.
À medida que a sociedade vem se tornando mais tensa e conflitiva, em razão da velocidade das transformações econômicas e relacionais, vêm se transformando também a correspondência entre a generalidade, impessoalidade e abstração das leis e as situações que elas regulam, posto que cada vez mais o Executivo legisla o caso concreto. Exemplo do que se afirma é a exacerbada edição de medidas provisórias, com as quais o País vem sendo governado, reeditadas dezenas de vezes, não raro ocorrendo a negação de uma pela que se lhe segue, em decorrência de alteração da realidade factual a que se refere. A produção legislativa é excessivamente intensa e prolífera neste final de milênio, em que cada Poder é chamado cada vez mais a assumir papel legiferante e adjudicante, em função da crescente heterogeneidade do corpo social. Corroborando o que se alega, José Eduardo Faria alerta para o fato de que
"Condicionado assim por dois princípios conflitantes, os da legalidade e do primado da lei (típicos do Estado liberal) e o da eficiência das políticas públicas nos campos social e econômico (típico do Estado-Providência), o Estado contemporâneo passa a agir de modo paradoxal gerando, em nome da estabilização monetária e do crescimento econômico, uma corrosiva inflação jurídica.. Este tipo de inflação se traduz pelo crescimento desenfreado do número de normas, códigos e leis, de tal modo que a excessiva acumulação desses textos legais torna praticamente impossível sua aplicação de modo plenamente lógico e sistematicamente coerente, ocasionando, por conseqüência, a "desvalorização" progressiva do direito positivo e o impedindo de exercer satisfatoriamente suas funções controladoras, disciplinadoras e reguladoras." [187]
Entrando no séc. XXI como todo o mundo, em crise, o País tem diante de si o desafio de acelerar o processo de transformação do Estado e da sociedade, devendo substituir por novos valores a mercantilização da vida e das pessoas (como sujeitos aquisitivos) e a hegemonia neoliberal defensora do livre câmbio e da democracia mínima, reduzida ao mero rito eleitoral.
Contrapondo passado e presente, com vistas ao futuro, faz-se necessário repensar as duas formas do agir político historicamente recorrentes – liberalismo e socialismo –, para vencer a atual fase de transição, na direção de um maior humanismo, de uma nova etapa da civilização, com mais direitos, possibilidades e perspectivas, além da economia, do mercado e do cálculo monetário, através de uma "prática que combata a indiferença e o egoísmo; que reinvente a política como atividade e como cultura, trazendo consigo uma outra idéia de Estado, de desenvolvimento e de sociedade". [188]
Como Barbosa Lima Sobrinho, é preciso acreditar que
"[...] o Brasil está maduro para deixar de lado a utopia e entrar na realidade com pulso firme, direcionando o país para os seus verdadeiros interesses. Desviar-se das globalizações, privatizações e outros engodos e rumar para um destino inteligente. E, como já indicava Emerson em 1837, procurando sempre 'marchar sobre nossos próprios pés, trabalhar com nossas próprias mãos, falar segundo nossas próprias convicções'." [189]
4.2 A reforma administrativa: projeto ou processo
"Aqui sobra gente para o capitalismo que temos, para o liberalismo que não sabe o que fazer da maioria da população e que por isso a teme. Aqui o capitalismo é menor que a sociedade. Sobra sociedade e falta capitalismo e se tenta substituir o capitalismo e conter o excesso da sociedade através do Estado. Por isso, no capitalismo brasileiro, o estado se voltou contra a maioria da sociedade ou a tem como seu problema. Temos mais Estado que espaço para a sociedade.
[...] Aqui, inventar a democracia é também inventar, produzir uma sociedade onde caiba toda a sociedade. E não é fácil". Herbert de Souza [190].
A administração Fernando Henrique Cardoso [191] elegeu como prioritária a tarefa de reformar o Estado, a partir da assertiva de que "[...] para efetivamente ser capaz de atender às demandas crescentes da sociedade, é preciso que o Estado se reorganize e para isso é necessário adotar critérios de gestão capazes de reduzir custos, buscar maior articulação com a sociedade, definir prioridades democraticamente e cobrar resultados." [192] Para substituir estruturas burocráticas de administração por outras mais eficientes, ditas gerenciais, criou uma nova estrutura burocrática, o Ministério da Administração e da Reforma do Estado - MARE, encarregado de pensar e planejar tal projeto, tendo como base a reforma da própria Administração.
Como contraponto para o projeto político-econômico implantado no Brasil, inspirado em experiências social-democratas européias, o modelo de reforma adotado plasmou-se na experiência inglesa, matriz a partir da qual se desenvolveram várias outras, como na Nova Zelândia, na Austrália [193], no Canadá e na Suécia.
Cabe examinar em que consistem as linhas teórico-programáticas propostas pelo MARE, revelando-se oportuno, por se tratar de projeto calcado em modelo exógeno, realçando os possíveis pontos de convergência e de diferenciação, sobretudo em relação às realidades que cada qual reflete (ou deveria refletir). Finalmente, tentar-se-á determinar em que medida essas linhas espelham a idéia expressa pelo Ministro, ao afirmar que "O objetivo é construir um Estado que responda às necessidades de seus cidadãos [...] [194]"
Nas palavras do Ministro gerente do projeto (que se vem incluindo entre as reformas constitucionais tidas como prioritárias pelo governo federal - reforma fiscal, reforma previdenciária e desmonopolização estatal), a reforma administrativa relaciona-se diretamente com a promoção da governabilidade, com o fito de aumentar a "governança", entendendo como capacidade de governar "a capacidade efetiva de que o governo dispõe para transformar suas políticas em realidade". [195]
O projeto se referencia na acepção do Estado enquanto espaço público, no qual a coisa pública (res publica), por ser de todos, deve ser protegida contra a ganância de indivíduos e grupos poderosos, atribuindo a responsabilidade por seu controle e defesa às organizações não-estatais, chamadas de organizações não-governamentais, organizações sociais, públicas como o Estado.
O novo modelo de administração foi concebido para simultaneamente configurar uma estratégia para reduzir o custo e tornar mais eficiente a administração dos serviços que incumbem ao Estado, como modo de enfrentar a crise econômica, rectius, fiscal, e dividir as responsabilidades de um Estado cujo tamanho se pretende reduzir ao mínimo, através da descentralização, da delegação da autoridade à figura do "gestor público". Neste sentido, o próprio governo que privatiza engendra instrumentos de controle das novas criaturas, o que se evidencia da alegação de que "o rígido controle sobre o desempenho, aferido mediante indicadores acordados e definidos por contrato, além de serem modos muito mais eficientes de gerir o Estado, são recursos muito mais efetivos na luta contra as novas modalidades de privatização do Estado." [196][Grifou-se]
Visando a atribuir competências e responsabilidades, dividiu-se o Estado em quatro setores de atividades, entendidos como núcleo estratégico, setor de atividades exclusivas, setor de serviços não-exclusivos e setor de produção de bens e serviços para o mercado [197].
Como setor em que se definem as leis e as políticas, bem como seu cumprimento, o núcleo estratégico é formado pelo Congresso Nacional (Poder Legislativo), pelos Tribunais (Poder Judiciário) e pela Presidência da República, assessorada por seus Ministérios, pelos Governadores e Prefeitos, assessorados por seus Secretários (Poder Executivo). Observação é feita ao fato de que, no que pertine a este núcleo, a eficácia é via de regra mais relevante que a eficiência, justificando assim a permanência no setor de estruturas administrativas burocráticas, enquanto os setores de serviços têm na eficiência seu princípio regente, devendo ser administrado gerencialmente. Entende-se que este setor deva ser ocupado por servidores públicos "altamente competentes, bem treinados e bem pagos".
O setor de atividades exclusivas é responsável pela garantia do cumprimento das leis e pela viabilização das políticas públicas, como as forças armadas, a polícia, os órgãos arrecadadores, de financiamento e de fomento, bem como de controle dos serviços sociais e da seguridade social, atividades que devem ser descentralizadas.
O setor de serviços não-exclusivos (serviços sociais) refere-se aos serviços que o Estado deve prover e que, por não envolverem o exercício do "poder extroverso" do Estado, podem ser oferecidos pelo setor privado e pelo setor público não-governamental, como os serviços de educação, saúde, cultura, pesquisa científica e afins. As atividades deste setor devem ser mais que descentralizadas, entendendo-se que a sociedade civil deverá dividir com o governo as tarefas de controle.
O setor de produção de bens e serviços para o mercado é formado pelas empresas estatais não privatizadas.
Posto o arcabouço do projeto, cabe responder a questões fundamentais, como que tipo de administração, que regime de propriedade e que tipo de instituição deve prevalecer em cada setor, tarefa que incumbe à sociedade, titular exclusiva do poder de determinar que tipo de Estado deseja instituir ou a que reforma se deve proceder, bem como o custo dessa instituição ou dessa reforma.
Importa salientar que, no Reino Unido, a instituição das chamadas quangos, ou organizações quase-não-governamentais, que controlam as universidades e os hospitais que antes sempre estiveram sob controle do Estado, foi possível graças a importante esforço de implantação, acompanhamento e avaliação, entre 1979 e 1986, de políticas, programas e projetos previamente acordados entre o Poder Público e a sociedade civil, envolvendo unidades operacionais específicas:
"A primeira-ministra havia criado uma pequena unidade para dirigir o que era conhecido por "escrutínio". Escrutínio era um processo de revisão e avaliação que examinava uma área específica de uma política, ou programa, no que dizia respeito aos gastos, e fazia algumas perguntas simples sobre as suas operações, do tipo "quanto custou", "quem foi o responsável" e "quais foram os resultados". Os escrutínios eram realizados por um pequeno grupo do ministério responsável, trabalhando com a assessoria da Unidade de Eficiência [198] - o grupo central. Eles produziam um relatório resumido em três meses; as decisões eram tomadas nos três meses seguintes e tudo estava completamente implementado num prazo total de dois anos." [199]
É expressivo notar que os setores a que se refere a experiência inglesa - universidades e hospitais - eram setores bem estruturados e tradicionalmente assumidos pelo Estado quando passaram para o controle público não governamental, e que o êxito da experiência se deveu, conforme acima transcrito, a sete anos de incessante investimento no desenvolvimento e fortalecimento desses novos mecanismos de revisão do labor estatal. Quer-se dizer que a experiência inglesa não foi burocraticamente concebida e imposta de cima para baixo; ao contrário, parece ter surgido do questionamento entre Estado e sociedade quanto às saídas possíveis para a crise econômica mundial a que também a Inglaterra se submetia e do consenso quanto ao preço a pagar por ela. [200]
Ainda, no âmbito das reformas, é de se ressaltar a efetividade da iniciativa inglesa denominada Citizen's Charter (Carta-Compromisso com os Cidadãos), iniciada em 1991 que, abrangendo vários serviços do Estado, representava declarações públicas de metas de serviços específicos que os órgãos públicos deveriam prestar aos cidadãos. Segundo o relato de Kate Jenkins [201],
"Começou, de forma bem pouco convincente, com os serviços-alvo escolhidos pelas organizações e não pelos cidadãos. Mas estimulou a imaginação num nível surpreendente. Há cartas-compromisso agora para muitos serviços e organizações, tanto no setor público, como no privado. Uma declaração de níveis de serviço é agora, vários anos depois, vista como algo a ser exigido e usado, quando a organização não consegue atingir suas metas."
As palavras com que a Consultora do governo britânico relata a experiência afirmam a importância do respeito aos contextos e limites específicos de cada país [202], bem como da necessidade de definição de programas e políticas forjados a partir de e voltados em direção ao interesse público, ao concluir que "as necessidades dos indivíduos não são apenas uma intrusão no bom funcionamento de um sistema administrativo, e sim a própria razão de ser do sistema" [203].
Não é de se admitir que uma reforma administrativa seja empreendida como um fim em si mesma, na medida em que a Administração, rectius, o Estado é apenas instrumento para que os componentes do corpo social possam alcançar plenamente seus fins próprios. De tal forma que se deve pensar em reforma exclusivamente quando o Estado deixar de ser instrumento a serviço da sociedade, clamando por nova ordem constitucional. Jamais o contrário. É de se concluir, com Omar Guerrero, que
"Reducir la administración pública a la administración o a la política deriva en una misma situación: la de engendrar un monstruo mecánico, un leviatán artificial independizado no solo de su raiz social, sino también de su pertenencia estatal. Una concepción como ésta malforma la realidad histórica de la administración pública y deforma su unitario carácter político y administrativo, al situarla al margen de los acontecimientos históricos, fuera de la realidad misma. La administración pública pierde identidad y se evapora como campo substantivo de estudio." [204]
Tampouco deve-se pensar em reformar um Estado como exigência feita por "investidores estrangeiros e pelas agências financeiras multilaterais" [205], nem como resposta a um lenitivo para impasses críticos, conforme parece sugerir o depoimento do Ministro do MARE, porém como manifestação da sociedade quanto ao que deseja para si e a que custo pretende obtê-lo:
"Os recursos econômicos e políticos são por definição escassos, mas é possível superar parcialmente essa limitação com seu uso eficiente pelo Estado, quando não se pode contar com o mercado, isto é, quando a alocação de recursos pelo mercado não é solução factível, dado seu caráter distorcido ou dada sua incompletude. Neste caso, a função de uma administração pública eficiente passa a ter valor estratégico, ao reduzir a lacuna que separa a demanda social e a satisfação dessa demanda.". [206][Grifou-se]
Não há como negar a crise, que existe e precisa ser enfrentada. Tampouco o problema reside na mera diminuição do tamanho do Estado. Ainda, não há um único caminho a seguir, o que comprovam as opções chilena e venezuelana de crescimento com base em recursos naturais, recursos de que o Brasil é excepcionalmente dotado, nem esse caminho deverá ser exclusivamente iluminado por experiências longínquas e tão diferenciadas das problemáticas enfrentadas pelo Brasil.
A questão reside em definir o quanto representa o mínimo de Estado, o que somente será possível pela prática da democracia que, neste contexto, abarca todas as dimensões da vida econômica, social e política e engloba a dimensão nacional e popular do desenvolvimento social. Mínimo de Estado que a sociedade civil, que se reorganiza desvinculada ou em confronto com o Estado, tem o poder de expressar, antes de qualquer Governo por ela eleito. Esta lição deve-se depreender das palavras proferidas pelo Sr. presidente da República, quando da abertura do Seminário Reforma do Estado e Administração Pública Gerencial:
"O Estado tem que se abrir a certas pressões da sociedade, mas a sociedade também tem que aprender a dialogar com o Estado, de uma maneira que seja adequada aos objetivos da população.[...] Porque numa democracia, em última análise, o poder legítimo é o poder legitimado pelo voto, pela cidadania. Assim, nem a burocracia em si mesma, nem os grupos da sociedade civil que não passaram pelo teste das urnas têm legitimidade para liderar a mudança." [207]
4.3 A Reforma do Estado
"[...] é preciso antes de tudo distinguir o problema do fim do Estado do problema da crise do Estado de que se fala nesses anos, com referência ou ao tema da crescente complexidade e à conseqüente ingovernabilidade das sociedades complexas, ou ao fenômeno do poder difuso, cada vez mais difícil de ser reconduzido à unidade decisional que caracterizou o Estado de seu nascimento a hoje. Por crise do Estado entende-se, da parte de escritores conservadores, crise do Estado democrático, que não consegue mais fazer frente às demandas provenientes da sociedade e por ele mesmo provocadas; da parte de escritores socialistas ou marxistas, crise do Estado capitalista, que não consegue mais dominar o poder dos grandes grupos de interesse em concorrência entre si. Crise do Estado quer portanto dizer, de uma parte e de outra, crise de um determinado tipo de Estado, não fim do Estado.". [208]
Não queda dúvida quanto à necessidade de se reformar o Estado brasileiro. Queda, sim, a pergunta: que Estado se deve reformar? que Estado se deve re/construir visando ao bem comum, suma, ao desenvolvimento social?
Qualquer processo de reforma do Estado que vise ao desenvolvimento social deve resolver o secular passivo de miséria, desequilíbrio e exclusão social, fatores de injustiça social que grassam no Brasil. Tal questão torna-se prioritária quando se percebe que se combina com a complexidade moderna acelerada pelos processos mundiais de globalização econômica, de que nenhum país pode atualmente escapar. Sobretudo quando se evidencia a tendência desses processos à fragmentação e desorganização das estruturas econômicas e sociais [209].
A questão da reforma do Estado no Brasil de hoje é mais de natureza política do que técnica. Conforme demonstrado pelo projeto do Governo Federal, não parece difícil importar tecnologias ou planos gerenciais, que os próprios gestores da globalização disponibilizam aos países periféricos, como vem ocorrendo, in casu.
4.3 A reforma do Estado ou a reforma da Constituição
"Na realidade, o contrato social precisa ser revisto porque, em virtude dele, o que ocorreu foi o fato de tornar-se o Estado dono da sociedade, em vez de ser, como deveria, o conjunto de serviços públicos à disposição da Nação, ou seja, do cidadão. [...] Essa reformulação do Estado se impõe a fim de evitar o seu colapso, que até pode significar o fim de uma civilização e a volta dos bárbaros com a qual alguns cientistas políticos nos ameaçam." Arnoldo Wald [210]
Conforme já visto anteriormente, a estrutura do Estado vem sofrendo importantes transformações, através de processos de desnacionalização e de privatização de setores até então hegemônicos e de alteração do sistema previdenciário, da administração pública, entre outras. Essas mudanças instrumentalizam-se por meio de alterações do texto constitucional, em constantes recuos das conquistas sociais de 1988. Em decorrência, a atual Carta Política vem perdendo suas características normativas, revelando-se a Constituição que mais emendas sofreu em toda a história do Brasil.
Importa lembrar que, na ordem interna brasileira, impõe-se o fundamento da soberania representado pelo poder pertencente ao povo, que o deve exercer diretamente ou por meio de seus representantes. Sob esta ótica, os compromissos que o País assumir, na ordem internacional, devem ir ao encontro dos interesses da sociedade brasileira, reafirmando as garantias constitucionais, os direitos individuais e coletivos, as cláusulas "pétreas", que não podem ser violadas por força da globalização econômica, excludente e concentrada, acolhida e estimulada pelo autoritarismo governamental que se ampara na fragilidade das instituições, transformando em estruturais problemas que poderiam ser sanados em limites conjunturais.
Para se chegar a uma visão realista do processo de "reinvenção" do Estado, na acepção dos administrativistas anglo-saxões, a partir de um suporte metodológico que confira autenticidade aos dados e observações que se oferecerão, optou-se por examinar, em detalhe, a produção legislativa pós 1988, no que concerne especificamente à espécie legislativa sob comento.
A partir dos insumos fornecidos pelo sistema de processamento de dados do Senado Federal, foi possível indexar e cruzar as informações relativas às propostas de emenda constitucional originárias daquela Casa do Congresso Nacional, por ano, por Região, por UF, por partido político e por autor (sendo certo que os dados compreendem propostas oriundas também na Câmara dos Deputados e do Poder Executivo).
4.4 As emendas constitucionais [211]: a voz do dono
Uma leitura atenta do quadro abaixo revela que as vinte e seis emendas constitucionais promulgadas entre março de 1992 e 12 de março de 2000 representam a média de cerca de três emendas por ano [212]. Porém, cabe enfatizar que chegaram a ser editadas em número de seis ao ano em 1994, das quais cinco em apenas um único dia e em 1996; em 1995, alcançaram o total de cinco emendas, sendo quatro em um só dia [213].
Além da proliferação das emendas constitucionais, há alguns dispositivos que se emendaram entre si, como a série EC 17/97 c.c. EC 10/96 c.c. EC 1-rev./92; assim também a EC 20/98, que originou a atual polêmica quanto ao pagamento de contribuição previdenciária pelos inativos e pensionistas do Estado, que o Supremo Tribunal Federal considerou, liminarmente, inconstitucional, vai de encontro a dispositivos alterados por emenda anterior, como a EC 3/93. Ainda, foram modificados dispositivos das EC 1/92 (pela EC 19/98), da EC 1- rev./94 (pela EC 17/); a EC 12/96 (pela EC 21/99), assim como a EC 18/98 (pela 19/98). [214]