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Reforma do Estado ou Reforma da Constituição?

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Agenda 18/08/2010 às 06:23

EC

Data Governo

Ementa

1

31.03.1992 Collor

Remuneração dos Deputados Estaduais e Vereadores

2

25.08.1992 Collor

Plebiscito previsto no art. 2º do ADCT

3

17.03.1993 Itamar

Altera arts. 40,42,102,103,150,156,160,167 da CF etc

4

14.09.1993 Itamar

Dá nova redação ao art. 16 da CF

1-rev

01.03.1994 Itamar

Acrescenta arts. 71,72,73 ao ADCT

2-rev

07.06.1994 Itamar

Altera o art. 50 caput e § 2º da CF

3-rev

07.06.1994 Itamar

Altera al. c inc.I, al. b inc.II, o § 1º e o inc.II do §4º da CF

4-rev

07.06.1994 Itamar

Dá nova redação ao §9º do art. 14 da CF

5-rev

07.06.1994 Itamar

Substitui a expressão 5 anos por 4 anos no art. 82 da CF

6-rev

07.06.1994 Itamar

Acrescenta § 4º ao art. 55 da CF

5

15.08.1995 FHC

Altera o § 2º do art. 25 da CF

6

15.08.1995 FHC

Altera o inc.IX do art. 170, o art. 171 e o § 1º do art. 176 da CF

7

15.08.1995 FHC

Altera o art. 178 da CF e dispõe sobre medidas provisórias

8

15.08.1995 FHC

Altera o inc.XI e al. a do inc.XII do art. 21 da CF

9

09.11.1995 FHC

Dá nova redação ao art. 177 da CF, alterando e inserindo §§

10

04.03.1996 FHC

Altera os arts.71 e 72 do ADCT, introduzidos pela EC1- rev/92

11

30.04.1996 FHC

Permite admissão de prof., técnicos e cientistas estrangeiros

12

15.08.1996 FHC

Contribuição provisória sobre movimentação ou transmissão de valores e de créditos e direitos de natureza financeira

13

21.08.1996 FHC

Dá nova redação ao inc. II do art. 192 da CF

14

12.09.1996 FHC

Altera arts. 34,208,211,212 da CF e dá nova redação ao art. 60 do ADCT

15

15.09.1996 FHC

Dá nova redação ao § 4º do art. 18 da CF

16

04.06.1997 FHC

Dá nova redação ao §5º art. 14, caput art.28, inc.II art.29, caput art.77 e art.82 da CF

17

22.11.1997 FHC

Altera os arts. 71 e 72 do ADCT, introduzidos pela EC1- rev/92

18

05.02.1998 FHC

Dispõe sobre o regime constitucional dos militares

19

04.06.1998 FHC

Modifica o regime da Administração pública, servidores e agentes políticos

20

15.11.1998 FHC

Modifica o sistema da previdência social

21

18.03.1999 FHC

Prorroga e altera alíquota da contribuição provisória sobre movimentação ou transmissão de valores e de créditos e direitos de natureza financeira

22

18.03.1999 FHC

Acrescenta par.único ao art. 98 e altera as al. i do inc.I do art. 102 e c do inc. I do art. 105 da CF

23

02.09.1999 FHC

Altera os arts. 12,52,84,91,102 e 105 da CF (criação do Min. da Defesa)

24

09.12.1999 FHC

Altera dispositivos da CF pertinentes à representação classista na Justiça do Trabalho

25

14.02.2000 FHC

Altera o inc.VI do art.29 e acrescenta o art.29-A à CF que dispõem sobre limites de despesas com o Poder Legisl.Municipal

26

14.02.2000 FHC

Altera a redação do art. 6º da CF

Em termos substantivos, as emendas apresentam-se, sobretudo a partir da Administração Fernando Henrique Cardoso, como preparação para o projeto de reforma do governo, tendo ênfase no fator econômico. Exemplifica-se: a EC 6/95, ao revogar o art. 171 da Constituição da República, suprimiu a possibilidade de os Poderes Públicos concederem benefícios especiais em favor de empresas brasileiras de capital nacional (regra protecionista que adotam as maiores economias mundiais, a começar pela norte-americana); no âmbito das propostas de emenda constitucional, há propostas objetivando a revogação da reserva a brasileiros do controle das empresas de imprensa, rádio e televisão, como a PEC 31/96, ou supressão da vedação de participação de empresas e capitais estrangeiros na assistência à saúde, como a PEC 52/95; neste bojo, é de se entender a proposta de supressão da Justiça do Trabalho por motivo de economia orçamentária.

Cabe relembrar que as emendas constitucionais são votadas a partir de propostas que podem ser oferecidas pelo presidente da República, por mais da metade das Assembléias Legislativas das Unidades da Federação, ou por um terço no mínimo dos membros da Câmara dos Deputados ou do Senado Federal, manifestando-se cada uma delas pela maioria relativa de seus membros, nos termos do art. 60 da Constituição da República. Informa ainda o § 2º do mencionado dispositivo constitucional [215] que a proposta será discutida e votada em cada Casa do Congresso Nacional em dois turnos, considerando-se aprovada se obtiver, em ambos, três quintos dos votos dos respectivos membros.

É certo, porém, segundo os dados pesquisados, que entre 5 de outubro de 1988 e 12 de março de 2000 tramitaram no Senado Federal propostas de emenda oriundas desta Casa, da Câmara dos Deputados e da Presidência da República. Referenciada na base de dados do Senado Federal, a pesquisa pôde estabelecer o seguinte quantitativo, relativamente à proposição de emendas à Constituição que tramitaram, ou em trâmite, naquela Casa legislativa, em 12.03.2000 [216]:

Propostas de Emenda à Constituição -PECs

Ano

PECs

Ano

PECs

1988

----

1994

08

1989

06

1995

73

1990

04

1996

59

1991

27

1997

43

1992

09

1998

48

1993

07

1999

96

2000

10

Total

390 [217]

Percebe-se que trezentas e noventa propostas tramitaram (ou tramitam ainda) apenas no Senado Federal, integrado por quase sete vezes menos representantes do que a Câmara dos Deputados [218], perfazendo uma média de 33,3 propostas por ano [219]. A produção de propostas acompanha a mesma curva percentual ascendente das emendas, partindo de seis e quatro, em 1989 e 1990, até atingirem os patamares de setenta e três noventa e seis, em 1995 e 1999, respectivamente.

O montante dessa produção (somada à da Câmara dos Deputados e à produção residual [220] da Presidência da República), ao lado das emendas constitucionais efetivamente promulgadas e das medidas provisórias - que já chegaram a ser editadas na proporção de 32,3 por mês, no primeiro ano de governo Fernando Henrique Cardoso, entre 01.01.1995 e 19.04.1996 [221] - confirmam o que se afirmou precedentemente sobre a interpenetração das funções dos Poderes da República, sendo de se enfatizar a função legiferante cada vez mais intensa assumida pelo Poder Executivo.

O esforço legislativo que se demanda ao Congresso Nacional, no sentido da apreciação e votação dessa produção excepcional - medidas provisórias e propostas de emenda constitucional -, afigura-se de tal monta, que se revela capaz de absorver, com exclusividade, o potencial regular de produtividade dos membros de suas casas, sobretudo se se considerar o complexo iter processual das primeiras e a obrigatoriedade de votação em dois turnos em ambas as Casas do Congresso, no caso das segundas.

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Ressalta da leitura do quadro a seguir a efetividade da ação do Poder Executivo, principal interessado nas emendas constitucionais, pois as reformas são, para o governo federal, conforme acima se ilustrou, "condição de governança". Das dezessete propostas de emenda originárias da Presidência da República, quinze (99,37%) foram transformadas diretamente em normas jurídicas, sendo que uma foi retirada pelo Autor, e outra, arquivada; das propostas oriundas da Câmara dos Deputados, em número de doze, oito (80%) foram transformadas em norma jurídica, sendo que uma foi rejeitada e outra, arquivada; quanto às trezentas e sessenta e uma propostas originárias do Senado Federal, apenas quatro (1,17%) foram transformadas em norma jurídica, sendo as demais arquivadas [222], prejudicadas, rejeitadas, retiradas pelos/as Autores/as ou ainda se encontram em tramitação [223].

Relação das PECs conforme seu status legislativo(*)

ARQ

PRJD

REJ

TNJR

TRÂM

RET

Totais

1989

Senado

Câmara

Executivo

 

3

 

2

 

1 (EC1/92)

 

06

1990

Senado

Câmara

Executivo

 

1

 

2

 

1 (EC2/92)

 

04

1991 Senado

Câmara

Executivo

 

1

1

 

18

 

3

 

3(EC3,4/93;15/96)

 

1

 

27

1992 Senado

Câmara

Executivo

 

 

7

 

1

 

1

 

09

1993 Senado

Câmara

Executivo

 

7

 

07

1994 Senado

Câmara

Executivo

 

7

 

1 (EC11/96)

 

08

1995 Senado

Câmara

Executivo

 

34

 

8

 

3

 

2(EC12/96;PLSF)-

1(EC13/96)

8(EC5-9/95;10, 14/96; 19/98)

 

12

1

 

4

 

73

1996 Senado

Câmara

Executivo

 

42

1

 

3

 

1

 

1(EC15/96)

2(EC14/96;20/98)

 

8

 

1

 

59

1997 Senado

Câmara

Executivo

 

31

 

4

 

 

1EC16/97)

3(EC17/97;18/98; 22/99)

 

3

 

1

 

43

1998 Senado

Câmara

Executivo

 

40

 

4

 

 

1(EC21/99)

 

2

 

1

 

48

1999 Senado

Câmara

Executivo

 

1

 

 

 

1(EC23/99)

 

92

02

 

96

2000

Senado

Câmara

Executivo

 

09

01

 

10

(*) Legendas: ARQ: arquivada; PRJD: prejudicada; REJ: rejeitada; TNJR = transformada em norma jurídica; TRÂM: em trâmite; RET: retirada pelo autor; PLSF: projeto de lei do Senado Federal.

A pesquisa informou outros dados que, se não diretamente ligados à temática "proliferação", que se enfatiza neste ponto do trabalho, revelam a representatividade política das propostas apresentadas, devendo-se lembrar que os Senadores representam, no Congresso Nacional, as Unidades da Federação, enquanto a Câmara dos Deputados reúne os representantes do povo, nos termos do art. 45 da Constituição da República. Infere-se que em termos percentuais, o Centro-Oeste é a Região que maior peso apresenta no cômputo geral, com 22,22% das propostas, relativamente a cinco Unidades da Federação. Em ordem decrescente, e em razão proporcional, o Nordeste, com nove Estados, apresentou 25,56% das propostas, o Norte, com seis Estados, 21,57%, enquanto o Sul e o Sudeste, cujas bancadas parlamentares têm importante peso político, apresentaram o menor percentual, a saber, respectivamente, 19,93% e 10,47%.

Os dados sugerem - o que, porém, não se comprovou, em razão das dimensões e do escopo da própria pesquisa empreendida - mais de uma leitura das relações entre os Poderes, na medida em que determinadas matérias são predominante e indistintamente apresentadas por representantes de uma mesma Região, ou ainda, são reiteradamente apresentadas por partidos da base governista naquela Casa congressual. Em quadro anexo (Anexo I) é possível verificarem-se as propostas apresentadas pelos senhores Senadores, por Partido Político e por Unidade da Federação, sendo oportuno destacar que, em ordem decrescente, são os seguintes os Partidos com maior número de propostas apresentadas: PMDB: 105 (34,31%) propostas em 21 UFs; PFL: 68 propostas (22,22%), em 16 UFs; PSDB: 67 propostas (21,9%), em 13 UFs; em seguida, o PTB com 18 propostas (5,89%) em 6 UFs, o PDT com 15 Propostas (4,9%) em 6 UFs e o PT com 13 propostas (4,25%) em 6 UFs.

Propostas de Emenda à Constituição apresentada pelos Estados, por Região [224]

Região

UF

PECs

Região

UF

PECs

Norte

71

AC

04

RN

01

AM

12

SE

10

AP

14

Centro-Oeste

70

DF

31

PA

09

GO

TO

08

19

RO

18

MT

11

RR

14

MS

01

Nordeste

84

AL

03

Sudeste

36

ES

07

BA

12

MG

09

CE

19

RJ

08

MA

11

SP

12

PB

19

Sul

63

PR

20

PE

08

RS

30

PI

01

SC

13

Finalmente, porém não por uma menor importância, resta analisar as propostas de emenda à Constituição em seu aspecto material, detalhadas no Anexo II, relativamente aos dispositivos constitucionais objetivados. Ao todo, quatrocentos e quarenta e três dispositivos (entre artigos (cento e quarenta e um), parágrafos, incisos e alíneas, tanto da Carta Maior como do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias-ADCT, foram objeto de proposta de mudança, seja através de alteração do texto constitucional, seja pela supressão ou acréscimo de parágrafos ou incisos, ou pela apresentação de nova redação substitutiva, incluídos os cinco artigos introduzidos na Carta Política por emendas constitucionais.

O quadro deixa de detalhar, porém, noventa e duas propostas genéricas, por referirem-se à inclusão não tópica de artigos, parágrafos, incisos e alíneas, à alteração de dispositivos não especificados, a especificações materiais sem delimitações formais ou ainda a Título, Capítulo e/ou Seção e ao ADCT, genericamente.

É de se ressaltar que, com exceção do art. 1º, todo o Título I, definidor dos princípios fundamentais da ordem constitucional, bem como quase todos os artigos explicitadores dos direitos e garantias fundamentais que integram o Título II (direitos e deveres individuais e coletivos, direitos sociais, nacionalidade, direitos e partidos políticos), foram objeto de proposta de emenda, seja por iniciativa de membros do Congresso Nacional, seja da Presidência da República. Sem que se pretenda discutir terminologicamente o conceito - o que extrapolaria os limites deste trabalho -, trata-se de matérias constitucionalmente consideradas "pétreas", insusceptíveis de reforma pelo processo de emenda, conforme o comando do inciso IV do § 4º do artigo 60 (cujo parágrafo 2º é também objeto de proposta de emenda) da Lei das Leis, que os membros dos Poderes da República juraram respeitar.

Esses dados informam que praticamente toda a Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 1988, tem sido objeto da empresa reformadora estimulada e liderada pelo governo federal, não raro com a aquiescência da própria sociedade. Neste ponto, cumpre chamar a atenção para o papel desempenhado pela mídia em geral, que em grande parte vem influenciando a população a respeito das reformas, disseminando notícias de que delas resultarão benefícios para todos, em todos os setores. [225] Não se discute a necessidade de mudanças, que se impõem em muitos setores, não apenas em razão da crise mundial, como da evolução da própria a sociedade, porém o modo como vem sendo conduzido o processo, ao arrepio da própria sociedade que, quando dignamente convocada para participar do processo de reconstrução política e institucional do país, por ocasião da Assembléia Nacional Constituinte de 1986, dignamente compareceu e expressou sua vontade. Neste sentido, é de se destacar, ainda, um grande número de propostas de emenda que não se conformam às determinações das agências internacionais, indicando caminhos para uma mudança, sobretudo as que respeitam à reforma política, como as que instituem o voto facultativo (PECs 6 e 25/96, 39/98, 31 e 44/99), redução do mandato de Senadores (PECs 45/98 e 68/99), instituem a fidelidade partidária e disciplinam a perda de cargos eletivos (PECs 44/98 e 46/99), restringem a divulgação de pesquisas eleitorais (PECs 40/98 e 43/99).

Não se defende a rigidez absoluta da Constituição, que precisa ajustar-se à realidade social, à realidade política. Porém, qualquer processo de reforma deve ater-se à vontade da própria Constituição, conforme demonstrado no Capítulo 2. Neste sentido, cumpre examinar que sentimento da Constituição o discurso oficial, empreendedor das reformas econômicas e constitucionais, revela:

"Os constituintes de 1988, entretanto, não perceberam a crise fiscal, muito menos a crise do aparelho do Estado. Não viram, portanto, que agora era necessário reconstruir o Estado. Que era preciso recuperar a poupança pública. Que era preciso dotar o Estado de novas formas de intervenção mais leves, em que a competição tivesse um papel mais importante. Que era urgente montar uma administração não apenas profissionalizada, mas também eficiente e orientada para o atendimento dos cidadãos". Bresser Pereira [226]

Em 1988 os Constituintes viram o que era de ser visto: a necessidade de estabelecimento de princípios, direitos e garantias protetores e estimuladores da cidadania reprimida por tanto tempo, de esboçar um quadro geral de valores e de limites a partir do qual os brasileiros, finalmente, viessem a exercer de tal forma sua cidadania que, transcorridos mais de dez anos, pudessem dizer, com sua própria voz, que serviços, para que fins desejam sejam prestados pelo Estado, e que preço estão dispostos a pagar por eles.

Quando, a respeito do governo Collor, se afirma que "Na área da administração pública, porém, as tentativas de reforma do governo foram equivocadas. [...] o fracasso se deveu, principalmente, por haver tentado reestruturar o aparelho do Estado sem antes reformar a Constituição" [227], entende-se a Constituição como um instrumento para se atingir a um fim, e não como o próprio fim que a sociedade desejou imprimir - e que limitou - ao Estado. Não é de se aceitar, em nome da soberania popular e do princípio da rigidez constitucional protetiva de princípios e valores fundamentais, que a Carta Política seja meramente um instrumento viabilizador de reformas tão profundas, que se possa rasgar e emendar como uma simples "folha de papel". Afinal, quem está promovendo as reformas e as privatizações nada mais são que governantes transitórios, que devem ater-se ao gerenciamento desses bens e nunca à sua liquidação, sem que para tanto opinem a sociedade, os contribuintes, donos do patrimônio público nacional [228].

Simultaneamente a ajustes de ordem econômica inadiáveis, seria dever de qualquer governo comprometido com o desenvolvimento nacional estimular e incentivar a participação da sociedade na re/construção de seu Estado, através de mecanismos importantes como maximização do potencial dos meios de comunicação, desenvolvimento de experiências de observatório através de controle e fiscalização de políticas públicas (como se faz nos emblemáticos países anglo-saxões), promoção de campanhas de comprometimento público do governo, valorização das organizações da sociedade civil e das práticas de participação popular, campanhas de mobilização de massas em torno de problemas específicos, reconhecimento, valorização e incorporação da intervenção popular direta em atividades econômicas representada pela chamada economia informal. Parece que deve ser esta a base de legitimidade de um governo eleito democraticamente.

O esforço de reforma que o governo federal vem empreendendo, que culminou com a promulgação das Emendas 19 e 20/98, que modificaram, em seus princípios e estrutura a administração pública, a primeira, e a previdência social a segunda, é resposta às exigências monetaristas do capital transnacional, logo das grandes corporações transnacionais, representado pelas agências internacionais - Fundo Monetário Internacional-FMI e Banco Mundial-BIRD, sobre todas as outras.

A rigor, a reforma administrativa, considerada básica para as demais, por envolver a medula do próprio governo-Estado, já tem seus fundamentos lançados. O momento, agora, é de discutir-se a Constituição da República (que vem sendo tão profundamente emendada), sua força normativa, sua vontade, os limites impostos para sua reforma, e as mutações constitucionais que se realizam pari passu com as mutações da própria sociedade.

Chegando ao final do segundo milênio, o Brasil vem se aproximando de uma reforma técnica do Estado, seguramente mais consciente do tamanho de sua crise, porém mais distanciado da política, na medida em que o modelo tradicional do sistema representativo vem se estagnando, diante da violenta e devastadora força do processo globalizado de massificação das economias e do processo de transformação da sociedade.

A transnacionalização da atual ordem mundial, pondo em xeque os fundamentos do Estado e da democracia, evidencia que não é mais possível organizar a vida institucional e governar como antes, sobretudo pela falta de base territorial para as tomadas de decisões, hoje condicionadas pelo capital internacional.

Diante desse quadro parece quedar evidente a necessidade de se devolver ao verdadeiro dono do poder a voz capaz de expressar uma nova forma de organização social e de participação, em uma síntese mais atuante de democracia direta e representativa, como, aliás, é a vontade da Constituição - ainda cidadã - de 1988, de forma que se empreendam as necessárias e urgentes reformas do Estado a partir das reais necessidades e em razão do interesse coletivo.

Em nome da soberania popular, insculpida como princípio fundamental no parágrafo único do art. 1º da Constituição da República, é de se renegar a apropriação do poder de reforma constitucional da maneira como vem sendo feita, pelo Congresso Nacional, sem referendo popular. É de se exigir a realização de plebiscitos, referendos e iniciativas legislativas populares, como determinou a Lei nº 9709/98, atendendo à vontade da Constituição, conforme demonstrado em capítulo anterior. A sociedade deve consolidar e impulsionar seus órgãos de colaboração, controle e intervenção na vida estatal, para assumir a posição que lhe cabe de titular da verdadeira soberania, que pertence à Nação e não ao governo.

Conforme lição de Fábio Konder Comparato,

"Quando as classes dominantes já não mantêm nenhum dever de lealdade ao país, a alternativa é clara: ou o povo assume diretamente o poder político, ou perde em definitivo sua independência.

A necessidade de uma reconstitucionalização completa da sociedade brasileira põe-se, desde logo, como inevitável, e o seu objetivo se delineia com toda clareza em dois sentidos: atribuir diretamente ao povo, de um lado, a competência para tomar as grandes decisões nacionais; reconstruir, de outro lado, o poder de direção do Estado sobre o conjunto das atividades econômicas, em função dos objetivos nacionais aprovados pelo povo. [229]"

Do contrário, como em um círculo vicioso que se repete desde os primórdios da colonização brasileira, estar-se-á negando à sociedade um papel que lhe é próprio, usurpando-lhe a cena política.

"Às vésperas do 500º aniversário do Descobrimento, corremos o sério risco de voltarmos, como numa viagem redonda, aos primórdios da colonização, quando não existia nem podia existir sentimento nacional. O primeiro historiador do Brasil, Frei Vicente do Salvador, retratou fielmente a mentalidade das primeiras gerações de colonizadores, agora reproduzidas nas novas classes dominantes:

'E deste modo se hão os povoadores, os quais, por mais arraigados que na terra estejam e mais ricos que sejam, tudo pretendem levar a Portugal e, se as fazendas e bens que possuem souberam falar, também lhes houveram de ensinar a dizer como os papagaios, aos quais a primeira coisa que ensinam é: papagaio real para Portugal, porque tudo querem para lá.. E isto não têm só os que de lá vieram, mas ainda os que cá nasceram, que uns e outros usam da terra, não como senhores, mas como usufrutuários, só para a desfrutarem e a deixarem destruída'" [230].Fábio Konder Comparato

Sobre a autora
Regina Helena Machado

Jurista. Bacharel em Direito (Faculdades Integradas Candido Mendes, Ipanema, 1992/1996). Especialização (Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro, 1997/1999). Gestora em Direitos Humanos (Secretaria Especial dos Direitos Humanos, Presidência da República, 2005). Autora de livros: "Medida provisória ou a medida do poder (Rio de Janeiro: Liber Juris, 1997); "Reforma do Estado ou Reforma da Constituição?" (Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001) e de vários artigos.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MACHADO, Regina Helena. Reforma do Estado ou Reforma da Constituição?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2604, 18 ago. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17116. Acesso em: 24 nov. 2024.

Mais informações

Obra originalmente publicada como livro "Reforma do Estado ou Reforma da Constituição?" (Lumen Juris, 2000).

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