Resumo: O presente artigo tem por escopo demonstrar que a Lei 12.015/09, precisamente no artigo 7º, não revogou tacitamente o então artigo 9ª da lei de crimes hediondos. Não apenas pelo princípio da continuidade normativo-típica, como por uma série de fundamentos ligados especialmente à filosofia do Direito. Assim, encontraremos respaldo suficiente para, ao menos, lograr discutir de maneira transdisciplinar a questão em voga, envolvendo pontos até então não sopesados que representam elevada importância para a compreensão e resolução do problema.
Palavras- chave: Lei 12.015/09 – Crimes hediondos – filosofia do Direito.
Abstract: This paper aims at demonstrating that the law 12.015/09, precisely in Article 7, did not repeal by implication then Article 9 of the first law of heinous crimes. Not just for the principle of continuity of normative-typical, for a number of reasons related specifically to the philosophy of law. Thus, we find sufficient support to at least achieve a transdisciplinary way to discuss the question in vogue, involving points that did not receive the correct care, which represents high importance to understanding and solving the problem.
Key-words: Law 12.015/09 - Heinous Crimes – philosophy of law.
"Minha única ocupação é cultivar em paz a filosofia, e satisfazer assim três sentimentos muito presentes em mim: o amor à reputação literária, o amor à liberdade e a piedade pelas infelicidades dos homens, escravos de tantos erros."
Cesare Beccaria
Considerações iniciais
O presente trabalho tem por escopo o desenvolvimento de argumentos filosóficos capazes de enriquecer as discussões doutrinárias acerca da revogação, ou não, do artigo 9º da Lei de Crimes Hediondos (8.072/90) pela nova Lei 12.015/09 em seu artigo 7º.
As alterações trazidas pelo recente diploma ordinário são múltiplas, no entanto todas dirigidas ao âmbito dos "crimes contra os costumes" (Título VI, da Parte Especial do Código Penal), agora disposto, em mudança redacional, como "dos crimes contra a dignidade sexual".
Estudar a temática penal em espeque sob a apreciação filosófica certifica uma construção científica mais contundente haja vista que, enquanto epistemologia, a ciência penal não pode cogitar da validade mesma de suas proposições para a resolução de desídias teóricas como se tem observado. Por outro lado, idônea será a contribuição trazida pelas especulações racionais da filosofia do Direito donde a autoridade investigativa trazida à baila por digressões multilaterais tenderá em recuperar, no discurso acadêmico, a preocupação com a avaliação sistemática dos fatores envolvidos, especialmente no caso em apreço. Se do contrário, optássemos por olvidar a importância filosófica dos temas, notadamente complexos, voltaríamos à antiga corrente positivista no sentido da filosofia de Comte e Spencer que afirmavam ser enciclopédica, meramente, a função existencial da filosofia. Tampouco, lograremos, ao longo deste, enveredar no raciocínio neopositivista à titularidade de Russel e Wittgenstein, para os quais, além de enciclopédia das ciências, a filosofia seria também atividade clarificadora das proposições destas.
De fato, ambas encontram-se superadas pela temática pós-positivista, principalmente quanto à hermenêutica aqui utilizada como viga mestra do raciocínio que, quanto aos princípios debatidos, consubstanciaremos nosso intuito nas estruturas teóricas de Alexy e Dworkin, assim como no conceito de justiça dinâmica perpetrado por Agnes Heller para justificar que o empreendimento doutrinário em discutir a revogação ou não do dispositivo supramencionado pertence ao campo ético-jurídico e não técnico-legislativo como prima facie nos é aparentado.
Vale dizer, a proteção do menor é tema alocado no centro da nova concepção paradigmática da educação, onde os atores do processo educacional (em sentido amplo, ou seja, o desenvolvimento biopsicossocial do educando) unem-se a favor deste, logo, desconstruir um aparato legislativo (causa especial de aumento de pena) é mitigar o sustento sociopolítico de justiça presente na idéia base do ordenamento jurídico brasileiro que visa a reprimenda severa daqueles que ferem o íntimo da dignidade sexual e moral dos menores, e demais casos, e, consequentemente, da família, da sociedade e do Estado.
O problema: da superfície técnica à profundidade principiológica
A Lei nº 12.015/09 como outrora mencionado alterou substancialmente alguns dispositivos do Código Penal. No entanto, a modificação a qual nos prendemos ao longo deste trabalho é em relação a alguns efeitos verificados para além do simples diploma repressivo. Especialmente a Lei nº 8.072 no artigo 9º prevê uma causa especial de aumento de pena para alguns crimes sejam eles hediondos ou não. Vejamos na dicção do texto referido:
Art. 9º: As penas fixadas no art. 6º para os crimes capitulados nos artigos 157, § 3º, 158, § 2º, 159, caput e seus §§ 1º, 2º e 3º, 213, caput e sua combinação com o art. 223, caput e parágrafo único, 214 e sua combinação com o art. 223, caput e parágrafo único, todos do Código Penal, são acrescidas de metade, respeitado o limite superior de trinta anos de reclusão, estando a vítima em qualquer das hipóteses referidas no art. 224 também do Código Penal (grifamos).
Notem que a base para fixação desta causa especial de aumento de pena estava contida na redação do artigo 224 do Código Penal, contudo, tal dispositivo foi revogado expressamente pela nova lei. Teria sido, pois, o artigo 9º da lei de crimes hediondos, tacitamente revogado? Cremos sinceramente que não. Mas, uma resposta objetiva não é suficiente para contestar tal problema, motivo pelo qual nos inclinaremos às profundezas mais dinâmicas do pensamento epistemológico e filosófico sobre o mesmo.
O artigo 2º, §1º da LICC dispõe que: "a lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior." Precisamos perceber que existe neste artigo uma ordem a ser seguida para quando formos analisar se houve de fato revogação num dado caso. Vimos que o novel diploma ordinário destinou-se ao Código Penal, olvidando de sua dicção qualquer menção expressa às legislações extravagantes, como ocorreu em relação à lei de crimes hediondos. Sendo assim, não há que cogitarmos da possibilidade, a primeira vista, de revogação expressa, pois tal não se verificou. Em segundo lugar, aparece no §1º a questão da incompatibilidade. Parece-nos, com propriedade, que a intenção do legislador ao aprovar a lei nº 12.015/09 foi de implementar, modificar, reestruturar, dar nova dimensão, punir mais severamente crimes antes diversos, porém correlatos e igualmente desprezíveis.
Quando se indaga da incompatibilidade de algo, imediato é o questionamento que fazemos ao termo, ou seja: em relação a que algo é incompatível? Seria a nova lei incompatível com a lei de crimes de hediondos, haja vista que não se extirpou do ordenamento nenhum requisito para a especial causa de aumento de pena que proscreve? A resposta só poderá ser negativa. Assim como não houve menção expressa em relação à revogação, uma simples análise material de ambos os diplomas já nos serviria de suporte fático para afirmar que ainda se encontram, num outro lugar, porém, os mesmos requisitos antes apontados pelo revogado (expressamente) artigo 224, logo, que ainda confere legitimidade para a aplicação do então artigo 9º da Lei nº 8.072/90.
Além disto, voltando à exegese literal da LICC, a lei mais recente não tratou de regular inteiramente o Código Penal tampouco a lei de crimes hediondos. A técnica legislativa em evidência tornou claro o desejo de reprimir com maior veemência os crimes relacionados à dignidade sexual, impondo mesma severidade aos agentes que cometerem tais delitos contra menores de 14 anos ou com alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência, como vemos a partir do caput do artigo 217-A e §1º.
Resolve-se o problema, superficialmente, por simples interpretação sistemática e literal da LICC, do Código Penal e das leis extravagantes, pois até o momento nos preocupamos em aplicar e interpretar regras somente. Significa dizer que ao nos depararmos com a LICC e demais diplomas, nossa intenção esteve em empregar as regras de direito disponíveis para solucionar o problema no campo da técnica jurídico-positivista, sendo que a conclusão óbvia a que poderíamos chegar era de que uma ou outra regra estaria correta (revogação expressa, tácita e a questão da incompatibilidade material), no entanto, o tema pede por observação mais acurada em virtude da presença de princípios que, como veremos, não são ditos como certos ou incertos, mas apreciados quanto à dimensão de peso e importância diante do discurso que estejam presentes. [01]
A despeito de toda argumentação técnica, pois, precisamos discutir um pouco sobre a questão do princípio da legalidade, diretamente envolvido neste debate. De fato, quando optamos pela não revogação, estamos a dizer que é idôneo, diante do caso, afastar a exegese literal do princípio da legalidade. Ocorre inobstante que o afastamento deste princípio deu-se em função da presença de outros princípios também importantes e fundamentais.
Segundo a ótica pós-positivista trazida por Dworkin sobre o conflito entre princípios, sobretudo quando se trata de um confronto em sede normativa e abstrata, não nos é lícito afastar um ou outro princípio, mas conjugá-los de modo com que possamos compô-los justamente no mesmo plano, no mesmo contexto. Queremos dizer que os princípios têm pesos diferentes quando surgidos numa mesma oportunidade teórica e/ou prática.
Verificamos, primeiramente, o que desejamos alcançar e, para isso, articulamo-nos conjuntamente para este fim. Em destaque, está o princípio da legalidade (que será desdobrado) e os princípios da dignidade da pessoa humana e da razoabilidade, este como fio condutor de nossa conciliação principiológica. Assim, aproveitaremos, enquanto modelo teórico, o pós-positivismo e, quanto à função almejada, o eixo teleológico dos princípios – como instrumentos analíticos abstratos, mas de prevalência cogente (linguisticamente formulados). [02]
Portanto, diante de um conflito aparente de princípios, precisamos analisar quais (ou qual) deles se encontram em situação de sobreposição em relação ao fim buscado mediante um juízo de razoabilidade ao longo deste procedimento.
O princípio da legalidade aparece como principal fundamento daqueles que preconizam ter havido novatio legis in mellius, logo, pregando pela revogação tácita do artigo 9º da lei de crimes hediondos por faltar-lhe base de incidência (antes do artigo 224 do CP). Todavia, já ficou claro que tais requisitos se encontram presentes no artigo 217-A, não havendo, portanto, que se falar em revogação tácita, pelo contrário, em continuidade normativo-típica.
A conduta, ou aspectos de incidência, antes descritos no artigo 224 agora se encontram no 217-A, o que torna inidônea a tese contrária à não revogação. Neste caso, a legalidade, como princípio constitucional fundamental, é afastada visto que junto ao princípio da continuidade normativo-típica encontram-se os princípios da dignidade da pessoa humana (lato sensu), da dignidade educacional (de proteção ao desenvolvimento biopsicossocial da criança e do adolescente) bem como a proteção aos portadores de necessidades especiais ou que não puderem, ao momento do fato, exprimir com clareza sua vontade.
Ainda, perante a temática pós-positivista, cujo âmago de subsistência está em descobrir o caráter transcendental da norma, no rigor da terminologia kantiana, [03] podemos extrair dimensões mais largas da dignidade da pessoa humana quando consideramos o moderno Estado Humanista de Direito como garantidor de uma sociedade equilibrada. Quer dizer, está contido na compreensão da supremacia do interesse coletivo (enquanto uma premissa ética explicitada no tópico seguinte) o teor de reprimenda de ações lesivas àquelas pessoas com insuficiente ou nenhuma capacidade de, plena e conscientemente, manifestar sua vontade.
Os princípios como categorias jurídicas de otimização dos deveres de coexistência pacífica e razoavelmente harmônicas numa sociedade multicultural são imperativos que precisam ser apreciados antes mesmo de nos embrenharmos em discussões acerca de regras técnicas. Num momento anterior, onde existia a prevalência do modelo positivista, diríamos que não haveria razão para afastar o princípio da legalidade, ainda mais em se tratando de Direito Penal onde a questão da liberdade é o cerne de toda problemática. Deste modo, como seria cabível afastar uma prerrogativa que serve justamente para assegurar que não haverá privação de liberdade e, portanto, reprimenda ilegal por parte do Estado?
Se ainda estivéssemos neste tempo a resposta seria do não afastamento. Por outro lado, mesmo como pós-positivistas, não olvidamos de alocar na discussão o princípio em confronto, bem como nossa intenção está em integrá-lo em justa composição, como dito. Esta é uma tendência lógica da construção do argumento pós-positivista, já que antes mesmo de nos tornarmos, inéditos quanto ao modelo teórico escolhido, somos, antes disto, repetidores dos modelos precedentes, ou seja, somos em parte positivistas e aí está a grandeza do novo movimento, não excluímos àquilo que nos confronta, mas procuramos o meio mais razoável de também usá-lo em nosso favor.
Dworkin promove uma queixa contra o positivismo alegando a diferença notadamente técnica entre regras e princípios quanto à colisão e resultado destes, na sobreposição de um princípio de maior peso sobre outro de menor peso(dimension of weight); situa aí uma distinção lógica, ou seja, mesmo que um dado princípio não seja utilizado no caso, pois outro é "mais importante", aquele não é inválido, apenas é afastado. Alexy, no entanto, partindo destas considerações vai além. Com base em julgados do Tribunal Constitucional Alemão, observa que ao invés de prevalência de um princípio sobre o outro, como afirmava Dworkin, o que era feito era uma ponderação entre os princípios colidentes. [04] Assim os princípios preservam em si uma dimensão de peso, mas são incapazes de determinar uma consequencia normativa de forma direta – que aconteceria se utilizássemos a tese de Dworkin friamente. Alexy, em contrapartida, prega pela criação de regras de prevalência, ou seja, para cada caso, e seus conflitos atinentes à seara dos princípios, surge regra em cuja competência reside dizer se este ou aquele se aplica. Contudo, subsiste sempre uma cláusula de reserva que implicará no constante questionamento sobre se aquele princípio antes visto como prevalecente (a partir de regra de prevalência) ainda está em condições de permanecer nesta posição; tal dúvida pode emergir a partir da constatação de outro princípio que tome maior peso para o caso discutido.
A distinção entre princípios e regras, segundo ALEXY, não pode ser baseada no modo "tudo ou nada" de aplicação proposto por DWORKIN, mas deve resumir-se, sobretudo, a dois fatores: diferença quanto à colisão, na medida em que os princípios colidentes apenas tem sua realização normativa limitada reciprocamente, ao contrário das regras, cuja colisão é solucionada com a declaração de invalidade de uma delas ou com a abertura de uma exceção que exclua a antinomia; diferença quanto à obrigação que instituem, já que as regras instituem obrigações absolutas, já que não superadas por normas contrapostas, enquanto os princípios instituem obrigações prima-facie, na medida em que podem ser superadas ou derrogadas em função dos outros princípios colidentes. [05]
Especificadamente na análise que nos cabe, no conflito entre o princípio da legalidade e a continuidade normativo-típica, assim como a dignidade da pessoa humana (leia-se do incapaz) impregnada na ratio legis da causa especial de aumento de pena prevista no artigo 9º da lei de crimes hediondos, carecemos de explicar as razões primeiras do afastamento daquele em função destes. Poderíamos aqui citar diversos princípios correlacionados à situação em que nos debruçamos, contudo basta identificar o tumulto mais básico entre a legalidade e dignidade do incapaz, à luz da razoabilidade e do Estado Humanista de Direito.
O fio condutor deste embate só pode se constituir através da razoabilidade. Perguntamos: é razoável o Estado reprimir com maior severidade o agente que atenta contra a dignidade sexual de alguém em situação de vulnerabilidade? Sim, é razoável.
No episódio, é lícito ao intérprete afastar a absoluta aplicação do princípio da legalidade em função da prevalência da dignidade. Ainda mais, a dignidade enquanto aspecto basilar de um sistema ordenado de normas, como é o brasileiro, é aquele princípio que deve sempre ser analisado prima facie. Com efeito, a legalidade é uma garantia imprescindível ao Direito Penal visto que limita seu poder de punição apenas quando a lei incriminadora for anterior à conduta praticada – só assim o Estado é legítimo para punir. Não obstante, as questões intrínsecas à proteção do menor de 14 anos, do enfermo ou deficiente mental, ou afetado por qualquer outra causa em que não possa oferecer resistência, dizem respeito à política criminal. Emprestar caráter absoluto à presunção de violência, nestes moldes, aos crimes previstos no artigo 9º da lei nº 8.072/90, é a prova de que não apenas discutimos um ambiente em que os direitos dos mais frágeis são mais protegidos, mas como um discurso que atinge a sua finalidade ética na constatação cardinal de que a violência e a criminalidade devem e precisam ser combatidas com maior severidade. Ainda, a legalidade que tratamos aqui é em virtude da causa especial de aumento de pena, pois os delitos principais não foram afetados por esta incúria, motivo pelo qual é subsidiária tal querela, como também o é, o uso da LICC como respaldo técnico-legislativo por aqueles adeptos da revogação do artigo mencionado. [06]
Alocar para o escanteio as variáveis envolvidas na hipótese de revogação do dispositivo retro é identificar que o Direito Penal é auto-suficiente a ponto de questionar da validade mesma de seus questionamentos epistemológicos e, ainda, retirar de suas conclusões análises conjunturais indispensáveis à manutenção da rigidez estrutural do sistema repressivo, de modo com que haveria aí nítido obstáculo à prevalência dos Direitos Humanos, algo do qual não podemos prescindir, tampouco desconsiderar do discurso acadêmico. Se a discussão outrora esteve em dizer se a presunção de violência devia ou não de ser absoluta é problema a ser resolvido em plano diverso do aqui apresentado – aqui demonstramos a validade constitucional e humanista do dispositivo especialíssimo, pregando pela sua continuidade no ordenamento jurídico brasileiro, afirmando a preocupação do Estado na proteção daqueles em cujo ser ainda não resida maturidade suficiente para entenderem ou reagirem numa situação de violência à sua intimidade.
Se o legislador preferiu não se manifestar quanto à revogação ou alteração da lei de crimes hediondos talvez seja porque não previu a ocorrência de desídia tão acirrada na doutrina e na jurisprudência, mas em todo caso, imaginar sua intenção na gênese normativa é técnica de hermenêutica ultrapassada já que agora temos que lidar com princípios metapositivos e pressupostos, estes sim constituintes de um paradigma sustentável para qualquer argumentação jurídica sólida e pertinente para a atual conjuntura pós-moderna. Prezamos pela consideração do discurso contido no seio social, nas conseqüências obtidas com o que está posto e não na suposição irracional do que deveria ter sido feito. "O que não se pode falar, deve-se calar" [07] – logo não cogitamos da intenção legislativa, mas na sua atitude e, como é hodierno, cumpre à doutrina e à jurisprudência "aparar as arestas" do fraco potencial articulador do nosso conturbado legislativo.
A despeito disto, precisamos adentrar com maior vigor no estudo da legalidade como uma construção histórica representativa da divisão dos poderes num Estado Democrático, ao ponto que sua observância é critério de segurança e estabilidade jurídica. [08] Tal preocupação se dá em virtude do trabalho empreendido até o momento em afastar a premissa fundamental da legalidade em razão de outros princípios que se mostram, no caso, dotados de maior peso. É uma construção doutrinária que, por sua vez, terá grande influência na jurisprudência, consequentemente, no Judiciário como um todo.
Não está em nosso interesse primordial afastar a importância institucional do Poder Legislativo, em âmbito federal, para aplicar um despotismo judiciário, porém, cumpre à ciência do Direito Penal e à filosofia como um todo, designar os caminhos pelos quais, justamente, o Estado deve aplicar as sanções e cominar as penas em nosso complexo sistema. Trata-se basicamente de obedecer ao fio condutor da razoabilidade, direcionada à possibilidade ou não do Estado punir com maior ou menor severidade determinadas práticas já consideradas como ilícitas.
Legalidade enquanto conceito comporta ampla consideração. Significa dizer que dentro deste conceito global e genérico, extraímos aquilo que serve de substrato para o campo do Direito Penal, logo, os princípios da reserva legal e da anterioridade. Desdobra-se em legalidade criminal ("nullum crimen sine lege", art. 5º, XXXIX, primeira parte da CF/88 e art. 1º do CP, primeira parte), legalidade penal ("nulla poena sine lege", art. 5º, XXXIX, segunda parte e art. 1º do CP, segunda parte), legalidade jurisdicional ou processual ("nulla coatio sine lege" – CF, art. 5º, LIV) e legalidade execucional ("nulla executio sine lege" – LEP, art. 2º). Aqui, daremos preferência ao estudo da legalidade penal. [09]- [10]
O princípio da legalidade penal, que mais nos interessa, tem oito dimensões formadoras de sua totalidade. São elas: lex scripta, lex populi, lex certa, lex clara, lex determinata, lex rationabilis, lex stricta e lex praevia. [11] Cumpriremos o desiderato de decantar cada uma destas dimensões, identificando, enfim, porque nos é lícito dizer que não houve afronta ao princípio da legalidade.
Lex scripta diz respeito à noção de civil law. Como a nossa tradição é eminentemente legalista e não atrelada aos costumes como formadores do Direito (common law) para que um crime seja punido através de uma prévia pena cominada, é indispensável que esteja escrita, quer dizer, positivada – inclusive é uma máxima do positivismo jurídico na medida em que só se pune a conduta que estiver expressamente descrita na lei. Na hipótese que trabalhamos, não houve menção expressa do legislador sobre questões de revogações reflexas oriundas da Lei 12.015/09 para a Lei 8.072/90, o que, de certo modo, mitiga a lex scripta, visto que na incidência da causa especial de aumento de pena, mesmo faltando-lhe os aspectos básicos para perfeição antes contidos no revogado artigo 224 do CP, consiste numa construção doutrinária e jurisprudencial, obviamente que afasta o núcleo fundamental da legalidade abstrata. Mas, precisamos ir além.
Lex populi é outra dimensão atrelada à já citada função social do princípio da legalidade. Melhor dizendo, atende à sua função política, pois representa a vontade do legislador enquanto legítimo representante do povo num Estado Democrático de Direito. Sobre a lex populi voltaremos a discutir no tópico subseqüente, posto que entendemos, ser da "voz do povo" uma construção filosófica de embasamento ético, que legitima maior proteção aos direitos fundamentais de vulneráveis mesmo sem a anuência e autorização expressa do legislativo. É também a tradução da vontade geral da sociedade em letra de lei.
Lex certa é na verdade o princípio da precisão ou da certeza legislativa, ou mesmo da taxatividade. [12] A Lei 12.015/09 certamente não foi precisa, caso contrário desnecessário seria tanta discussão doutrinária sobre o tema da revogação. É, outrossim, uma garantia separada por linha tênue da primeira dimensão (lex scripta) uma vez que além de estar escrita a conduta e a sanção aplicada em determinada situação, a norma penal necessariamente tem que especificar, precisar, taxar, elencar exatamente do que se trata a conduta típica. Quando à pena, ou melhor, às causas especiais de aumento de pena, uma nova lei que vem para modificar um diploma repressivo deve trazer em seu conteúdo tudo exatamente descrito e precisado sobre o alcance das alterações que ora promove. O fato ocorrido com a legislação a posteriori acaba por mitigar esta dimensão, dando ensejo à integração doutrinária e jurisprudencial como temos largamente comentado.
Lex clara, a lei deve ser clara, coesa quanto à trama dos elementos gramaticais e concisa quanto ao contexto normativo a que se refere (penal, civil, constitucional etc.). Concisão quer dizer, ainda, a observância dos efeitos que aquela nova lei irá causar na totalidade do sistema jurídico, caso contrário, fugirá de seu controle as interpretações tantas que poderão ser feitas – tudo por causa de uma obscuridade ou de uma omissão. Além disto, concisão implica na adequação social do que está disposto; quando correta indica com limpidez a ratio legis, quando, porém, incorreta, permite a justaposição multitudinária de teorias e doutrinas nem sempre conformes à realidade humanizadora que tem prevalecido ultimamente. Daí que a concisão da lei será discutida pela filosofia e não mais apenas pela epistemologia de um campo ou outro.
Lex determinata, a lei precisa descrever condutas passíveis de serem comprovadas em juízo, "a sanção penal deve retratar uma consequencia empiricamente realizável. O legislador não pode, por exemplo, fixar como pena o recolhimento do réu, no final de semana, na lua". [13]
Lex praevia, a lei precisa ser anterior à prática do fato que diz ser criminoso, ou seja, só cabe a punição se respeitado a anterioridade da lei em relação ao fato.
Lex rationabilis: tanto quanto sua gênese precisa estar lastreada numa certa razoabilidade (não se admitiria penas desproporcionais aos delitos referentes), como na sua aplicação, e diante da resolução de conflitos de validade normativa. Especialmente, não vale mais o brocardo "lex quanvis irrationabilis, dummodo sit clara" (a lei, ainda que irracional, sendo clara, tem de ser aplicada) [14], pois que a dimensão da razoabilidade é algo a ser analisada antes mesmo de cogitarmos da clareza do seu texto. Havendo verossimilhança com a razoabilidade, de plano, subentende-se a intenção da norma em cominar sanção proporcional ao delito relativo. A lei 12.015/09 demonstra não atender a tal pressuposto, sendo a lex rationabilis o aspecto mais fundamental, constituinte do esqueleto categórico do princípio da legalidade. Não havendo razão para suprimir um dispositivo, que já era presente no ordenamento, em função de uma obscuridade presente em lei nova, manter-se-á o entendimento precedente. Logo, como não há justificativa teoricamente plausível a ponto de sustentar a revogação do artigo 9º dos crimes hediondos de modo tácito pelo artigo 7º da Lei 12.015/09, visto que é irracional beneficiar os agentes por suposta novatio legis in mellius, alimentamos o argumento da continuidade normativo-típica. Ainda, é mais racional entender pela aplicação do princípio da continuidade normativo-típica do que ensejar a revogação de um dispositivo cujo lastro constitucional e humanista é evidente e absoluto portanto. Neste diapasão, Luiz Flávio Gomes indica:
"além da revogação formal impõe-se verificar se o conteúdo normativo revogado não foi (ao mesmo tempo) preservado em (ou deslocado para) outro dispositivo legal, pois se foi, não se dará a abolitio criminis e sim, uma continuidade normativa-típica (sic) (o tipo penal não desapareceu, apenas mudou de lugar)" [15]
Lex stricta, consigna, como todas as demais dimensões, numa observância estrutural, formal da norma penal, contudo, adverte que no momento da interpretação deve-se ter em mente o sentido mais estreito capaz de ser extraído. Quando a liberdade do sujeito está envolvida no problema, não podemos prescindir de uma análise estritamente submissa à vontade declarada no texto legal. Acontece que essa interpretação estrita é pertinente aos casos que a lei for obscura, donde cabe a máxima "in dúbio pro réu". Todavia, no caso ventilado, não se trata de obscuridade da novel lei, mas de omissão quanto aos efeitos reflexos/mediatos causados pela revogação expressa do artigo 224 do Código Penal. Nesta situação, e pelo fato de que os pressupostos fático-normativos da majoração prevista no artigo 9º da lei 8.072/90 ainda estarem presentes no aparelho penal, no artigo 217-A, sequer nos é permitido formular pretensão contrária à lógica sistemática que nos é apresentada. Vale dizer, ainda esta a se fazer interpretação estrita do texto da lei, porquanto não se tem imputado aos agentes majoração in mallam partem, entretanto, é o mero reconhecimento de que preenchidos os pressupostos fáticos essenciais à perfeição da causa especial de aumento de pena, pela hediondez da conduta e pela robusteza da censura comungada pela sociedade hodierna, lícito é, portanto, sua ocorrência.
Entrementes, emerge questionamento a respeito de eventual bis in eadem, por força de que a prática de estupro de vulnerável, por conter em seu tipo já a presunção de violência, tornaria inapropriada e abusiva, a atitude jurisdicional de incidir uma causa de aumento de pena justamente fundada em pressupostos mesmos (ser menor de 14 anos, deficiente mental, ou que, por outra causa, não possa exprimir ou oferecer resistência). Inobstante, como vimos, a presença do delito no hall de crimes hediondos faz com que, pela repugnância, se lhe agregue elevada majoração penal, conformando com o modelo ético de vontade social e estatal ao qual nos debruçaremos no tópico seguinte. Mesmo assim, o bis in eadem é discussão para os crimes cometidos contra vulnerável, portanto, para os demais crimes que terão suas respectivas penas majoradas quando do implemento dos requisitos tipicamente continuados no recente artigo 217-A, persiste, e subsiste, a tese pela não revogação.