A resposta final ao problema: da profundeza principiológica à iluminação filosófica
A discussão filosófica em torno da não revogação do artigo 9º do diploma em apreço ganha, neste ponto em específico, status de problema ético. Não é problema em seu sentido usual, é problema conotativamente aposto à seara ética. Para que possamos empreender uma argumentação plausível, sob a ótica da razão, é lícito e pertinente estabelecer, de plano, algumas premissas inaugurais que serão, ao longo do tópico, pormenorizadas.
Em primeiro lugar o conceito formal de justiça se aplica, a priori, para sustentar a tese pela não revogação do artigo 9º da lei 12.015/09. Mas é um conceito que terá sua incidência perfeita, especialmente, no procedimento de aplicação da pena e é precisamente neste momento, que, mormente, se transporta a temática do artigo 9º da lei 12.015/09. E, tal conceito formal é o corolário da noção de justiça estática, a qual representa a fórmula geral de "mesmas regras e normas para todas as pessoas de um mesmo grupo social" – sendo a sociedade brasileira o grupo que nos referimos.
Mas enquanto conceito teórico é insubsistente para nós, visto que não creditamos sua autoridade apenas à conjectura do procedimento de majoração da pena, como, principalmente, na justificativa primeira da causa de sua existência no ordenamento que, como veremos, restará fundamentada num panorama ético posteriormente abraçado por um conceito de justiça dinâmica. "O conceito formal de justiça significa a aplicação consistente e contínua das mesmas normas e regras a cada um dos membros de um agrupamento social aos quais elas se aplicam." [16]
Todavia, um conceito formal de justiça é estático, que implica, pois, num nível alto de abstração, haja vista que agrupa propriedades comuns de todos os tipos de justiça. [17] Assim sendo, a máxima expressão é a figura humanizada da justiça de olhos vendados, ou seja, aplicando, em precisão, as mesmas normas e regras aos diferentes grupos sociais. Inobstante, ainda que possa incidir sobre o procedimento de aplicação da pena, na verdade, é fraco, pois o procedimento será o efeito de uma causa pré-existente, quer dizer, efeito na medida em que uma definição exata sobre a revogação ou não do dispositivo em apreço constituirá em um poder-dever do Estado-juiz que, portanto, deverá aplicar a regra de majoração de pena, do contrário, não aplicaria, por convicção própria, deixando para a apelação ministerial eventualmente, se acreditar na não revogação, atacar a sentença então proferida. No mesmo sentido, não continua a existir na base do conceito formal de justiça um conceito de igualdade ao qual possamos nos debruçar.
Não é o rol de afetação indicado pelo artigo 9º hipótese de incidência deste conceito. Isto quer dizer que a justificativa para que tais indivíduos estejam em situação de maior proteção pelo diploma repressivo não é exatamente em atendimento a uma disposição teórica que os julgue como iguais ou desiguais, ao contrário, é uma questão de desenvolvimento biopsicossocial que encontra seu lastro, ainda, na inteligência do uso racional da liberdade destes mesmos. Ou seja, o conceito formal de justiça não explica a motivação precisa por uma suposta não revogação, já que é insubsistente teoricamente quanto à prevalência mesma de sua base de igualdade material. No mesmo âmbito, a legalidade, que também atua como sustentáculo inequívoco desta justiça hodierna, perde sua plenitude na medida em que a prova se obteve mediante o escalonamento do conceito em múltiplas dimensões (como fizemos no tópico acima). Senão vejamos: [18]
Teorias de justiça, condicionadas à visão de ser explicada em termos da dicotomia "igualdade-desigualdade", partem, como regra, do aforismo aristoteliano de que ser justo significa tratar os iguais igualmente e os desiguais desigualmente. Entretanto, esse aforismo (ou referência) é normalmente analisado sob seu contexto original, deslocado da concepção completa aristoteliana, na qual faz sentido. Aristóteles jamais acreditou que duas pessoas pudessem ser exatamente iguais. Na verdade, criticando a República de Platão (em Política), argumenta enfaticamente o contrário. Em oposição a Aristóteles, aqueles que estabelecessem uma teoria de justiça, baseada no princípio de que igualdade significa tratar os iguais igualmente e desiguais desigualmente, efetivamente pretendem que as pessoas de fato iguais sejam tratadas equanimemente e aquelas de fato desiguais sejam tratadas não-equanimemente. Mas o que efetivamente significa que duas pessoas são iguais ou, em dado aspecto, desiguais? Os seres humanos não podem ser quantificados [...].
Entendemos que na base da igualdade, para o caso que tratamos aqui, não é uma flagrante desigualdade ou balanceamento no tratamento de hipossuficientes, pelo menos não desta perspectiva teórica. Quando falamos em igualdade surge na mente um referencial, o que pressupõe a igualdade como paradigma em relação a dois indivíduos diferentes, mas, se eles estiverem inseridos na mesma cultura, não há o conceito, tampouco, se forem de culturas diferentes e aplicarmos, mesmo assim, as mesmas regras e normas, estaticamente, a ambos, também, da ótica formal da justiça, não estamos cogitando de desigualdade, mas, em contrapartida, de nítida igualdade.
Por outro lado, se adotamos como referencial de igualdade o uso racional da liberdade do indivíduo que teve, por uma questão biopsicossocial, oportunidade de se desenvolver e gerar mínima consciência, também mudará a ideia de igualdade, posto que, visceralmente, os protegidos e, portanto, causa do efeito da majoração elevada da pena prevista no artigo 9º da lei 12.015/09, não são estaticamente, ou condicionalmente, postos numa noção de desigualdade, porque se o fossem, seria no lastro de um paradigma de comparação entre indivíduos com idênticas oportunidades de desenvolvimento biopsicossocial. Enfim, são protegidos, ocasionando num efeito penal mais duro, a ponto de uma necessidade evidente de afastamento da legalidade estrita, para atender ao desiderato de que não têm o necessário potencial de uso de suas liberdades ou a consciência para si das mesmas [19], enquanto dimensão de exterioridade da liberdade mesma, que é auto-afirmação do ser, ou seja, sabem que existem, mas não podem projetar vontade consciente para o exterior e, assim, responder às moléstias e, também, anuírem ou se absterem com aquilo que, por natureza, desconhecem. Por estes motivos, cai por terra um conceito formal de justiça no caso aqui debatido.
Quando optamos por utilizar de uma argumentação primeira a respeito de princípios, nitidamente nos envolvemos num discurso onde a tendência é a de tão-somente estruturar uma tese através do juízo de princípios correlacionados ao caso em destaque. Assim, preferíveis são os princípios para justificar a aplicação ou não aplicação de determinado dispositivo legal tendo como pano de fundo a melhor interpretação conferida, o que, como dito, não obsta a prevalência de todos os pressupostos presentes no eventual conflito, mas, por outro lado, fazem todos permanecer no mesmo plano, inobstante seja lícito restringir a incidência máxima de um em detrimento de outro cuja substância acabe por melhor condizer com a dignidade de tratamento (treatment dignity) da situação. Isso quer dizer, portanto, que diante de um conflito aparente de normas (regras), antes delas, verifica-se um conflito de princípios que não é aparente, contudo, é fundamental e cardinal para se entender exatamente o que deve ou não ser eficaz no mundo dos fatos. Todos os fatores que acompanham a tese de que, diante deste conflito, um princípio prevalece sobre o outro, devem, obrigatoriamente, estar presentes no momento da correta interpretação, sob pena de se negligenciar fatores de suma importância como: aspectos filosóficos quanto à ética e função social do Direito e fatores biopsicossociais e conjunturais do sistema social vigente. Assim, junto à ordem de princípios que se aloca ao caso, é necessário compreender quais fundamentos éticos ajudam a compreender a não revogação do artigo 9ª da lei de crimes hediondos que, por sua vez, leva a argumentação a um plano metajurídico, quer dizer, pós-positivo, todavia não quanto ao aspecto transcendental com que se busca a hermenêutica apropriada, mas quanto à multiplicidade de circunstâncias que, por sua natureza, envolvem-se com o Direito na medida em que se logra edificar um campo transdisciplinar do saber científico e, acima de tudo, uma concepção complexa da realidade cuja primazia, em sede cautelar, é a análise profunda dos ramos, por assim dizer, que lhe são competentes por inquestionável lógica.
Falando sobre a justiça e seu conceito formal, trouxemos à baila o fator biopsicossocial que, pelo núcleo, não faz incidir um argumento plausível de igualdade material, tampouco de igualdade formal, visto que existe a possibilidade, dentro de um conceito formal de justiça, de aplicação de normas diferentes com base nos grupos culturais diferentes aos quais se destina essas mesmas normas e regras, no entanto, não é a regra geral do conceito, que é, estaticamente, incidência de mesmas regras e normas aos grupos sociais mesmo culturalmente diferentes para que pertençam à territorialidade de um dado poder Estatal.
Lembremos que falamos de conceito formal de justiça e não em justiça formal o que, por si só, utilizando a igualdade formal, também não seria aplicada à situação. Entretanto, ao exaurir uma problemática quanto à incidência de um conceito formal de justiça que, por sua vez, faria jus à aplicação, de imediato, do princípio da legalidade – mas não porque segue um pressuposto de tratamento formal na essência, e sim porque segue um arquétipo de ordem positivista (ex. LICC explicaria uma tese pela revogação simplesmente por sua exegese tecnológica) – fica vazio o fundamento filosófico principal da não revogação do artigo que encontra sua base numa verdadeira ética social. Claro que a verificação de tal argumento só poderia se dar numa prática onde a maioria das pessoas envolvidas na sociedade submissa a tais normas pudesse se expressar claramente, no entanto, nos é pertinente perquirir, em vias teóricas, o motivo substancial de uma não revogação. Logo, adentrar num caminho excessivamente empírico não é uma oportunidade vantajosa para aqueles que almejam decantar os conceitos típicos e desdobrá-los em justificativas cujo teor possa ser, posteriormente, aposto à prática. Isto porque a causa primeira de uma ética que substancia uma não revogação encontra o seu motivo mesmo de exultação no fato de que, como provado, não se pode aplicar o conceito formal de justiça, pois lhe faltaria pressuposto lógico, portanto, ao ponto em que um dado conceito não se aplica é preciso utilizar de outro para o sucesso da argumentação, logo, emerge na mente o conceito de justiça dinâmica o qual encontrará, no térreo de seu largo edifício, o aspecto discursivo que fundamentará a causa precípua pela não revogação e, como veremos, trata-se de um detalhe que a nível teorético não pode ser desprezado, por conseguinte, sendo aspecto prejudicial para o sucesso do argumento que vise, ou não, reprimir o artigo 9º em apreço do ordenamento. [20]
Desta maneira, toda e qualquer argumentação que se utilize de elementos técnico-jurídicos para fundamentar a revogação do artigo 9º, não é válida. A partir do momento em que estabelecemos como pressuposto discursivo, no campo epistemológico, uma regra aceita como pré-existente para, logo em seguida, ajudar no enfrentamento de um novel dispositivo legal que seja considerado como errado não poderemos lograr pleno êxito neste objetivo porque apenas uma norma moral poderia ser suficiente para afastar uma regra que se mostra errada do ponto de vista positivo, mas que, transcendentalmente, é imoral, por conseguinte, injusta.
Quando, pois, colocamos uma regra pré-existente, como fizeram aqueles que utilizaram da LICC para fundamentar, tecnicamente, uma revogação de um dispositivo, havendo que se ressaltar que a tal revogação sequer havia sido expressa na lei 12.015/09, é, por completo, insubsistente a tese. Apenas uma norma de ordem moral pode impedir que uma lei seja considerada como injusta e, assim sendo, apenas um argumento moral pode consubstanciar uma tese pela revogação de uma regra positiva, visto que a problemática principiológica entra em nítido destaque quando resolve trazer para a discussão um caso de conflitos de regras positivas. Com isso, somente se a lei nova trouxesse um dispositivo que determinasse a revogação do artigo 9º da lei de crimes hediondos é que poderíamos falar numa regra pré-existente (principio da legalidade em sentido amplo) que, de per si, já resolveria a desídia. Todavia, não foi o que aconteceu e, sobremaneira, apenas um argumento em cuja essência residisse um argumento moral poderia fazer com que houvesse uma racionalidade teleológica na lei 12.015/09 capaz de subsidiar a então revogação tácita do artigo 9º da lei de crimes hediondos. Similarmente, aqueles que sustentam a não revogação do artigo 9º, como é o nosso caso, encontram, nessa falha argumentativa, o primeiro motivo pela não revogação do artigo alhures que, pela inteligência mesma do conceito de justiça dinâmica que responde na fórmula "possibilidade de questionar normas e regras como injustas ou erradas", já torna viável, em nível teórico, técnico, epistemológico e filosófico, a não revogação. Mas, precisamos ir além.
Dissemos que uma regra pré-existente a uma regra nova colocada no plano da positividade somente pode ser considerada como errada, se aquela (pré-existente) preceituar o conflito e, por sua natureza, coibir a nova regra à invalidade. Este é um procedimento lógico da sistemática jurídico-positiva. Assim, caso uma regra pré-existente não seja suficiente para tal desiderato, não é lícito utilizá-la, se expressamente no ordenamento não tiver havido motivação para sua incidência, ou seja, a LICC para incidir, precisaria da menção expressa no texto legal novo (lei 12.015/09) para revogar o artigo 9º da lei de crime hediondos ou que fosse inequívoca a revogação por ter, tacitamente, também revogado o artigo supra, o que, igualmente, não ocorreu.
Todavia, a ocorrência desta não revogação tácita, além do princípio óbvio da continuidade normativo-típica, que é um dado da epistemologia penal, filosoficamente, não se coaduna com o conceito de justiça dinâmica como ventilamos acima. Quer dizer, se imaginássemos que o princípio da continuidade normativo-típica não incidisse no caso, faltaria o pressuposto de um argumento moral capaz de fazer com que o artigo 9º da lei de crimes hediondos fosse tido como injusto, pois apenas uma noção moral pode corresponder à invalidação de uma regra posta sob a perspectiva da justiça. De tal sorte, nessa hipótese, a regra do artigo 9º seria certa (correta), mas, se houvesse argumento moral suficiente, seria injusta, portanto, dando causa à sua revogação tácita.
Justamente, esse respaldo moral não existe pelo fato de que a dificuldade em se encontrar um argumento plausível, nesse nível, para sustentar a revogação, é o indicativo de que realmente não existe esse argumento e que, conseqüentemente, não é lícito, em direito penal, optar pela ficção racional para se criarem fundamentos uma vez que no cerne ético desta não revogação há o interesse legítimo do Estado em ser mais rígido no tratamento dos deliquentes que se encaixam nas circunstâncias descritas no artigo 217-A do codex repressivo, perante os crimes previstos no artigo 9º da lei de crimes hediondos.
Tais pontos só são plenamente válidos porque provamos acima que a justiça estática não se aplica, restando o afloramento da justiça dinâmica, onde apenas argumentos morais são capazes de indicar a injustiça de uma regra, e desde que, tais argumentos sejam reconhecidamente verdadeiros e, por outro lado, apenas uma regra poderia ajudar na revogação de outra regra posterior e naturalmente menos densa do que aquela tida como paradigma, indicando-a como errada, contudo, não imoral, tampouco injusta. O dualismo entre regra correta e incorreta e regra moralmente justa ou injusta é o xeque-mate, posto que permita uma compreensão acertada, em nível teorético, acerca do tema abordado, malgrado seu aproveitamento deve vir precedido de todo um arcabouço que prove pelo afastamento de um conceito, positivamente, hodierno e possivelmente mais emergente, que é o da justiça estática para um de justiça dinâmica, sob a égide de um senso social de justiça. "O senso de justiça é o senso moral em sua capacidade de discriminar entre ‘certo’ e ‘errado’, se pelo menos um aspecto da última distinção inclui a discriminação entre bem e mal." [21]
Portanto, tudo corrobora para, segundo os critérios da justiça dinâmica, num não-dever de revogação que se diferencia de uma simples abstenção, pois é um conceito construído racionalmente e que encontra correspondência com o substrato que lho deu origem, além do que, em discussões relativas à liberdade humana, não se cogita de abstenções visto que, mormente, poderia gerar insegurança e incerteza no futuro apenado, logo, devem (essas discussões) ser encaradas com cautela e consciência, haja vista que tais elementos, em regra, não costumam ser notados pelo legislador.
A não invalidação do artigo 9º da lei de crimes hediondos obedeceu a uma máxima pragmática que é o princípio da continuidade normativo-típica. Assim de plano exclui-se a possibilidade dessa pretensa revogação por existir um sustentáculo hábil para tanto. No mais, aquilo que colocamos como um empreendimento discursivo equivocado trata-se de um dado que não pode ser olvidado, de tal sorte que todo o debate envolve dois valores universais, intimamente presentes no Direito: a vida e a liberdade. Debatemos sobre o que deve ser feito quando se está diante de um conflito entre princípios, mas, quando se trata de um conflito entre valores universais, modelos que têm esse status devido à larga abrangência e reconhecimento que gozam, não é, precisamente, sobre o mesmo procedimento que iremos nos debruçar, ainda que, em relação ao procedimento acerca dos princípios, subsista a ideia de que não haverá um completo afastamento de um ou outro valor como veremos, mas a justa composição de ambos com base no instrumento pelo qual é possível nivelar suas incidências diante da hipótese teórica que nos afigura, qual seja o elemento moral.
"[...] se alguém invalida normas e regras como injustas, através do uso de princípios particulares, valores morais ou máximas (imperativos), ou máximas pragmáticas, a rejeição de cada sistema de normas e regras é, em último caso, enraizada num valor substantivo. Na modernidade, existem dois valores universais onde todos os princípios ou máximas são enraizados: liberdade e vida." [22]
Daí que o leitor deste trabalho pode ser perguntar qual seria a relação de nós termos abandonado o conceito de justiça estática, indo para um de justiça dinâmica. Na verdade, a resposta é clara. Se admitimos que dois valores substantivos estão no cerne do pensamento e da prática contemporânea do Direito, a vida e a liberdade, concordamos, também, que para que estes valores logrem perpetuidade carecem de algumas condições que lhes são indispensáveis, portanto, para chegarem à perfeição empírica. A liberdade, pois, carece do pressuposto da igualdade para que possa ser discutida em patamar de igualdade teórica para, só enfim, ser aposta à concretude. Vimos que o conceito de justiça estática tem em seu núcleo a dimensão de um princípio de igualdade que, em toda verdade, não merece ser discernido entre material ou formal, e, pelo motivo racional de que aqueles a quem se dirige o tratamento protetor do artigo 217-A e consequentemente infligem pena mais dura para aqueles que os molestam, de acordo com o artigo 9º da lei de crimes hediondos, não se trata, especificamente, de uma situação de igualdade ou desigualdade, logo porque, o critério que poderia distribuí-los nos grupamentos sociais de iguais ou desiguais, mesmo se considerarmos que existe tal possibilidade, não é dado de igualdade, mas de desenvolvimento biopsicossocial do indivíduo que, por assim ser, obsta a incidência de uma justiça estática e permite o aparecimento da justiça dinâmica que os resguardam por não serem essencialmente desiguais para merecerem, por isso, tratamento específico, mas por estarem potencialmente em desvantagem e que, esta peculiar condição, comporta uma reprimenda mais elevada, pelo Estado, em caso de violação da dignidade destes. Desta maneira, torna-se ausente a condição da igualdade para tratar da liberdade enquanto um conceito de justiça estática, todavia, isso não permite que, por esse motivo, fundamentemos uma pena mais dura àqueles que cometem crimes contra tais indivíduos exemplificados no artigo 217-A do código penal, mas, certamente, nos fazem refletir sobre a questão moral, utilizada como instrumento dessa verificação, por sua vez, legitimando a preservação da dignidade desses indivíduos, sobretudo através do caráter repressor completo que assume a causa de aumento de pena do artigo 9º da lei de crimes hediondos e, mormente, sobre a insuficiência de um discurso que vise invalidar o dispositivo. E, porque na medida em que a priori se restringe com maior força a liberdade de alguma pessoa, consistindo num poder-dever negativo do ius puniendi, já que coage o indivíduo à abstenção involuntária de sua liberdade, tem-se, em consideração, o valor da vida como acima de qualquer discussão e que, segundo um critério moral objetivo, licencia-se este tratamento, enraizado no mais íntimo querer de justiça e de senso objetivo de justiça.
"O procedimento de justiça dinâmica – invalidação ou revalidação de normas e regras aceitas – pode ser realizado a qualquer tempo, quando as pessoas têm recurso a qualquer valor, norma, virtude, regra, princípio ou máxima, que já tenha sido aceita (validada), pelo menos em algum lugar e de algum modo e, sob o ponto de vantagem onde a declaração "norma ou regra X é injusta", [...], podendo racionalmente ser apoiada em uma declaração verdadeira. Os valores não podem ser ‘inventados’ por qualquer objeto, mas objetos podem formular princípios para esclarecê-los." [23]
Se, pois, puder ser encontrado um argumento que invalide o artigo 9º da lei de crimes hediondos, com recurso a algum valor, norma, virtude, regra, princípio ou máxima, genuinamente verdadeiros e validados, então acharemos um bom motivo para desacreditar um tratamento mais rígido (não através de lex gravior posterior, pois o respaldo já existia no ordenamento) àqueles marginais interessados na prática de delitos direcionados aos hipossuficientes, sob a perspectiva do desenvolvimento biopsicossocial, mas também deverão, estes corajosos, encontrar um argumento com recurso a algum valor, norma, virtude, regra, princípio ou máxima, genuinamente verdadeiros e validados, que conforte as famílias das vítimas, ou pior, que ajude a confortar as próprias vítimas, que além de vitimizadas pelo crime, serão vitimizadas, mais uma vez, pelo uso ignóbil e equivocado dos recursos epistemológicos, técnicos e positivos presentes no ordenamento pátrio que conferem brechas àqueles insensíveis à realidade social vigente.
No mais, permanece, por detrás de qualquer justificativa, a sétima premissa wittgenstariana: "o que não se pode falar, deve-se calar". [24] Falando, que seja suficiente, caso contrário, o silêncio ainda será um direito, e um refúgio, inteiramente assegurado aos que se absterem.