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Instituições e "accountability" na teoria democrática contemporânea

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Agenda 03/10/2010 às 19:54

3. A representação e seus desvios: clientelismo e corrupção em Kitschelt

De acordo com Kitschelt (2000), grande parte das pesquisas sobre competição política em regimes democráticos assumem que os mecanismos de accountability que ligam os eleitores às elites políticas funcionam via o programa do partido e os resultados obtidos pelos representantes na implementação de políticas (voto retrospectivo). Esse pressuposto não leva em consideração outras formas de ligação entre eleitores e eleitos, por exemplo, carisma político individual e clientelismo. Kitschelt (2000) considera que o modelo de accountability que conecta os eleitores aos representantes, via conteúdo programático das plataformas partidárias, tem sido dominante na pesquisa comparada. Isso, segundo ele, influenciou negativamente a quantidade e a qualidade dos estudos que utilizam os outros elos (carismático e clientelista). Para isso, Kitschelt (2000), retoma os dois problemas centrais que os partidos precisam solucionar em sistemas democráticos, assim como sugeriu Aldrich (1995). São eles: a) problemas de ação coletiva; b) problemas de escolha social (agregação de preferências individuais em decisões coletivas).

Idealmente, se um partido não concentra esforços na resolução desses problemas, Kitschelt argumenta que é autoridade carismática de um ou poucos líderes que mantém o grupo coeso. Por outro lado, se os políticos se concentrarem apenas em administrative technical infrastructure sem conceder atenção ao problema de agregação de preferências o elo gerado entre representantes e representados será do tipo clientelista. Para o autor, clientelismo se caracteriza por reciprocidade, voluntarismo, exploração e dominação. Ainda, ele distingue dois tipos de clientelismo: a) tradicional (mais personalizado); b) moderno (mais impessoal).

Kitschelt (2000) diferencia os elos clientelistas dos programáticos. Nesse último, os partidos oferecem pacotes de políticas que beneficiarão os eleitores indiretamente, sem incentivos seletivos. Isso não quer dizer, todavia, que partidos programáticos necessariamente proverão bens coletivos enquanto partidos clientelistas produzirão automaticamente bens particulares. Nesse sentido, o autor defende que é muito mais fácil identificar os aspectos procedimentais de troca entre eleitores e políticos do que a natureza teleológica entre os programas partidários. Dessa forma, o elemento constitutivo básico dos modelos programáticos é que os partidos solucionam seus problemas de agregação de preferências (social choice problems) através do desenvolvimento de policy packages que tornam possível mapear temas em uma dimensão partidariamente competitiva. Na medida em que essas dimensões servem como atalhos informacionais, elas produzem clivagens entre os eleitores e os diferentes partidos.

O referido autor argumenta que em democracias clientelistas a corrupção é um elemento constitutivo, enquanto que em modelos programáticos pode ser acidental. Ao considerar a questão de se os modelos programáticos e clientelistas são excludentes ou se retroalimentam mutualmente, o autor acredita que é possível combinar corrupção e clientelismo com ideological politics, desde que em níveis residuais. Isso porque se um modelo é fortemente programático ela também não pode ser fortemente clientelista.

Kitschelt (2000) discute as teorias comumente utilizadas pela literatura para explicar o nível de desenvolvimento partidário. A primeira delas é a da modernização econômica. O argumento é de que em sistemas economicamente subdesenvolvidos os partidos tenderão a patronagem, clientelismo e corrupção. A medida em que o sistema se desenvolve, os partidos se institucionalizam, tornando-se mais programáticos. A segunda é o nível de educação. Isso porque quanto maior for a escolaridade média da população maior é a probabilidade dela perceber os custos do clientelismo. Um outro elemento utilizado para explicar a emergência de um ou outro modelo de ligação entre eleitores e representantes é seguinte binômio: regras eleitorais + relação Executivo-Legislativo. Quanto mais as regras incentivarem o personalismo, maior é a probabilidade de clientelismo.

No que diz respeito à relação Executivo-Legislativo, Kitschelt (2000) argumenta que sistemas presidencialistas são mais propensos ao clientelismo do que regimes parlamentaristas, elencando quatro mecanismos explicativos: 1) personalização da competição política; 2) essa personalização incentiva a difusão de catchall appeals; 3) o processo de construção de maioria parlamentar também incentiva o clientelismo; 4) os congressistas, por não serem responsáveis pela permanência do chefe do Executivo podem deliberadamente negar apoio em troca de benefícios particulares para suas clientelas. Mais uma vez ganha força o argumento de que o desenho institucional é um fator chave para explicar uma série de importantes dimensões das democracias contemporâneas.

3.1.O papel dos partidos na agregação de interesses

Uma importante contribuição a respeito da função dos partidos políticos foi feita por Jonh Aldrich (1995). Diferente de Downs (1957) que desenvolveu um modelo espacial de competição eleitoral em que as plataformas dos partidos são formuladas a partir das preferências dos eleitores para vencer as eleições, Aldrich (1995) enfatiza a importância das instituições e do contexto histórico para compreender o surgimento e funcionamento dos legendas partidárias. Para ele, os partidos políticos foram criados para resolver três tipos de problemas: 1) regular a competição; 2) viabilizar decisões no interior do governo; e 3) convencer o eleitorado a se mobilizar e votar. Em termos mais técnicos, isso quer dizer que os partidos servem não só para solucionar dilemas de ação coletiva como também problemas de agregação de interesses individuais em decisões coletivas (social choice).

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De acordo com Kitschelt (2000), é o investimento na infra-estrutura organizacional administrativa do partido que facilita a solução de dilemas de ação coletiva. Para lidar com o problema da escolha social, o referido autor sugere que os partidos devem investir na construção de uma plataforma programática. Esse programa reduzirá os custos de coleta de informação já que representa um atalho informacional em que o eleitor pode antecipar a posição de um político individual/partido sobre um determinado tema.

Já foi dito que o desenho institucional influencia fortemente o desenvolvimento do sistema partidário. Dessa forma, grande parte da literatura especializada tem concentrado esforços analíticos em estimar em que medida as regras eleitorais influenciam uma série de variáveis dependentes, entre elas, o comportamento individual dos congressistas. Em especial, desde Durverger (1954) que os cientistas políticos sabem que o tipo de regra eleitoral é um fator chave para entender a institucionalização das legendas partidárias. Isso porque enquanto que a plurality rule tende a produzir sistemas bipartidários, desenhos proporcionais influenciam positivamente o número efetivo de partidos. Esse argumento ganha mais força em distritos de grande magnitude. Teoricamente, quanto mais candidate-centered forem as regras eleitorais, menor é a eficiência dos partidos como mecanismo de agregação de interesses. Da mesma forma, a baixa institucionalização dos partidos implica menos regularidade nos padrões e regras de competição, raízes mais frágeis na sociedade e personalização (Mainwaring, 2001). Em síntese, as regras eleitorais influenciam o tipo de relação que vai ser estabelecida entre representantes e representados (+ partidária ou + personalista).

Shugart (2001) identifica três variáveis que influenciam o nível de personalização do processo eleitoral. São elas: 1) O processo pelo qual os partidos selecionam os candidatos; 2) a possibilidade oferecida aos representados para votarem em seus representantes; 3) a magnitude do distrito eleitoral. Similarmente, para Samuels (2001), existem determinados sistemas eleitorais que incentivam, ou mesmo exigem, estratégias de voto pessoal. Nesses sistemas, o partido não representa eficientemente um atalho informacional para eleitores desinformados, dificultando assim a identificabilidade das ações e a clareza de responsabilidade.

Dentre as teorias positivas sobre o funcionamento do Legislativo – distributiva, informacional e partidária - é justamente essa última que rompe com a visão canônica de que os partidos são fracos na arena legislativa. Os partidos, para utilizar a expressão de Gary Cox e Matthew McCubbins, ajudam a evitar "ineficiências eleitorais". Em uma palavra, seja para desempenhar a função de coordenação (Cox e McCubbins, 1993), seja para minorar os problemas incorridos durante a delegação (Kiewiet e McCubbins, 1991), não resta dúvida de que os partidos passam a assumir um papel diferente do que era anteriormente definido pela sabedoria convencional. De acordo com Pereira e Mueller (2003),

"Pode-se atribuir aos trabalhos de Gary Cox (1987) e Cox e McCubbins (1993) as tentativas mais elaboradas de "bring the party back in" para explicar o comportamento legislativo não como motivado pelos benefícios decorrentes da "conexão eleitoral", mas sim orientado pelas restrições das regras e procedimentos centralizadores presentes na arena legislativa, que colocam os partidos políticos em vantagem sobre os deputados individualmente" (Pereira e Mueller, 2003, pp.737).

Seja como for, parece inegável a importância dos partidos políticos ora como fatores independentes ora como variável dependente nos modelos de explicação do funcionamento dos sistemas democráticos elaborados pela ciência política contemporânea. Com efeito, estimar acuradamente os efeitos da arena eleitoral sobre a parlamentar ou o inverso ainda é um dos maiores campos de incerteza da ciência política contemporânea, em especial, no Brasil. Inegavelmente, os estudos seminais nessas temáticas foram produzidos pela literatura norte-americana e muitos deles influenciaram de forma decisiva a formação da agenda de pesquisa que investiga o comportamento legislativo em nosso país (Limongi, 1994). A tarefa de estimar em que medida as variáveis eleitorais e partidárias são fatores decisivos neste âmbito ocupa aqui muitas das melhores cabeças do ramo. Concordando com Limongi (2002), acredito que isto é fruto do processo de institucionalização sofrido pelo Brasil no período pós 1988. Entretanto, se as divergências parecem alcançar alto nível de efervescência, a produção científica sobre o tema ainda tem muita estrada para percorrer (Santos, 2002).


4. Conclusão

Esse trabalho concentrou esforços analíticos em discutir a influência de dois elementos seminais presentes na discussão contemporânea sobre a democracia, quais sejam, instituições e accountability. Claro está que não se pretendeu aqui explorar todos os pontos relevantes apontados pela literatura especializada, nem tampouco exaurir a totalidade das relações entre um e outro elemento. Isso seria demasiadamente inadequado e dificilmente exeqüível.

A idéia central foi estabelecer, sempre que possível, uma perspectiva analítica comparada entre alguns autores igualmente importantes. Com efeito, foi possível notar claramente que não só a dimensão institucional como também a accountability democrática são variáveis amplamente utilizados pelos modelos de explicação elaborados pela ciência política contemporânea mais positiva.

Dessa forma, o principal objetivo desse artigo foi argumentar a favor do papel central que instituições e a responsabilização passam gradativamente a assumir nos modelos de explicação. Isso porque durante algum tempo houve uma tendência a relegar as variáveis institucionais ao segundo plano, para dizer o mínimo. Acredito fortemente que é possível identificar ao longo do desenvolvimento da ciência política contemporânea determinadas questões que apesar de terem sido analisadas sob perspectivas diferentes e até mesmo antagônicas conservam, em maior ou menor grau, uma essência comum: instituições importam.

Esse é o fator central que possibilita a continuidade das discussões e a cumulatividade do conhecimento. Mais do que isso, é justamente a contribuição do neo-institucionalismo que permite que ciência política contemporânea seja capaz de tentar oferecer explicações mais robustas aos "novos" problemas enfrentados pela disciplina. Em uma frase: negar a importância e a relevância das instituições para compreender os problemas contemporâneos é negar a própria essência da ciência política.


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Nota

Cabe lembrar que Melo (2007) adverte que avaliações de possíveis ineficiências políticas e institucionais são muitas vezes baseadas em conceitos e instrumentos reconhecidamente de cunho normativo que geralmente não são consistentes com o desenho constitucional dos países analisados. Ainda, essas avaliações podem incentivar demandas por reformas que são inteiramente inconsistentes. Por exemplo, em determinados contextos pode haver uma grande clareza de responsabilidades, todavia, os eleitores simplesmente não concedem atenção sistemática à coleta de informação, devido ao seu alto custo, tornando-se racionalmente desinformados (Downs, 1957). Logo, eles poderão encontrar dificuldades para utilizar as eleições como mecanismo de accountability. Em um outro cenário, por mais que um determinado cidadão procure se informar a respeito das atividades governamentais, incumbents e challengers podem se engajar em uma política deliberada de credit claim e blame-shifting e acabar confundindo o eleitor. Poucos analistas discordariam de que tal procedimento pode diminuir a eficiência do processo eleitoral como mecanismo de accountability. Ao apresentar essa ressalva teórica não se pretende aqui desconsiderar a validade dos estudos anteriormente mencionados. Isso seria demasiadamente inadequado. Pelo contrário, sugere-se apenas que os resultados dessas pesquisas não devem ser tomados como modelos definitivos já que suas conclusões se baseiam na análise da visão majoritária de desenho institucional.
Sobre o autor
Dalson Britto Figueiredo Filho

Atualmente é professor Adjunto I do Departamento de Ciência Política e vice-coordenador do Programa de Pós-graduação em Ciência Política (PPGCP - UFPE). Doutor em Ciência Política pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE, 2012). Foi pesquisador visitante na Universidade de Indiana (Bloomington, 2014), na William Mitchell College of Law (Saint Paul, 2011) e na Universidade de Wisconsin (Madison, 2009). Mestre em Ciência Política (UFPE, 2009) e bacharel em Ciências Sociais (UFPE, 2005) com graduação sanduíche na Universidade do Texas (Austin, 2003).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FIGUEIREDO FILHO, Dalson Britto. Instituições e "accountability" na teoria democrática contemporânea. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2650, 3 out. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17543. Acesso em: 23 dez. 2024.

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