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Prisão processual e presunção de inocência.

Um estudo à luz da ponderação de valores constitucionais

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4. Questões afins – O "Direito Penal do Inimigo"

Nos tempos modernos, o tema afeto à possibilidade de mitigação das garantias constitucionais do réu, em sede de processo penal, ganha novos contornos. A possibilidade de mitigar os direitos constitucionais do réu não se exaure na simples atenuação do princípio do estado de inocência. Para alguns, ao contrário, embriona um novo Direito Penal.

Há tempos discutida, mas somente assim rotulada em 1985 pelo jurista alemão Gunther Jakobs, a teoria do "Direito Penal do Inimigo" começa a ser alvo de críticas e discussões pelos mais renomados juristas pátrios e estrangeiros. No contexto da implantação de políticas públicas e combate à criminalidade, o também denominado "Direito Penal de Terceira Velocidade" vem sacudindo a doutrina, ganhando adeptos, mas também fervorosos rebatedores de tal idéia.

Em termos singelos, esta novel rotulação doutrinária propõe a coexistência de dois direitos penais, quais sejam, um direito penal do cidadão, recheado de garantias e sustentado por princípios constitucionais; e um direito penal do inimigo, destinado àqueles que não se aderem ao sistema estatal, ficando à margem da sociedade. Estes são considerados verdadeiros inimigos do Estado, não merecedores de proteção por parte deste, uma vez que transgrediram o contrato social existente entre a sociedade e o Leviatã.

Nesse diapasão, entram em cena os tão árduos defensores dos direitos humanos, repugnando tal teoria e pugnando pela observância das garantias processuais penais, com um discurso amoldado à redução das penas e humanização de sua execução. Por outro lado, diante das rotineiras imagens de violência pelo mundo afora e da banalização do crime como fenômeno social, vozes soam, ao encontro do direito penal do inimigo, pela radicalização do sistema penal.

Entrementes, os direitos e princípios constitucionais começam a ganhar novas interpretações e destinatários. Rompe-se com a pseudo-idéia de que o constitucionalismo é voltado estritamente aos delinqüentes e infratores. Passa-se a se falar num direito penal da sociedade.

A própria evolução histórica dos direitos fundamentais nos mostra quebras de paradigmas. Veja-se que na denominada primeira geração de direitos, preconizava-se por um comportamento de abstenção do Estado, a fim de que este não interferisse nas relações sociais. Com o passar do tempo, adveio a segunda geração de direitos humanos, pugnando, outrora, por uma atividade prestacional do Poder Público, a fim de que se efetivasse, mediante um comportamento positivo, os direitos e garantias substanciais.

Como se sabe, a História é cíclica, recheada de exemplos em que se privilegiou demasiadamente determinados interesses e valores em detrimento de outros não menos importantes, fator decisivo e marcante nas revoluções e mudanças drásticas ocorridas ao longo da era humana.

É neste supedâneo que entra em cerne os conflitos entre direitos constitucionais do réu e direitos não menos constitucionais da sociedade, e, por que não, da vítima. De um lado o autor do delito recheado de inviolabilidades. De outro, a dignidade da pessoa humana da vítima e a segurança pública postas em choque, em escassez de proteção.

Vivencia-se, hoje, um veemente descompasso entre o ser e o dever ser, entre a realidade e a normatividade. Não mais se coaduna com a sociedade de risco o garantismo penal extremo, que ora foi tido como intocável, ante à nefasta violação dos direitos humanos pelo próprio Poder Público. O que se anseia hoje, e isto é pressuposto de legitimidade e eficácia da Constituição, é a priorização pela paz e segurança social, em detrimento de determinadas garantias e direitos do chamado "inimigo do Estado".

Nessa linha de idéias, oportuno transcrever brilhante passagem do genial Hesse (1991, p. 24), ex-ministro da Suprema Corte Alemã:

A Constituição jurídica está condicionada pela realidade histórica. Ela não pode ser separada da realidade concreta de seu tempo. A pretensão de eficácia da Constituição somente pode ser realizada se se levar em conta essa realidade. A Constituição jurídica não configura apenas a expressão de uma dada realidade. Graças ao elemento normativo, ela ordena e conforma a realidade política e social. As possibilidades, mas também os limites da força normativa da Constituição resultam da correlação entre ser (Sein) e dever ser (Sollen).

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Contextualiza-se.

A aplicação, ainda que minimizada, do direito penal do inimigo deve ser compreendida, portanto, como uma intervenção axiológica. Quer-se dizer, em outras palavras, que o cerceamento de determinadas garantias constitucionais do réu, em prol do postulado fundamental da segurança pública, trata-se, hoje, de medida valorativa imperiosa, decorrente, inclusive, de uma interpretação sistêmica da Constituição Federal.

Aliás, referindo-se, com maestria, à questão da mitigação de garantias constitucionais do réu no processo penal, assevera Sánchez (2002, p. 151):

Tratando-se de reações ajustadas ao estritamente necessário para fazer frente a fenômenos excepcionalmente graves, que possam justificar-se em termos de proporcionalidade e que não ofereçam perigo de contaminação do Direito penal "da normalidade", seria certamente o caso de admitir que, mesmo considerando o Direito Penal da terceira velocidade um "mal", este se configura como o "mal menor".

Conforme nos lembra Luís Roberto Barroso (in BARCELLOS, 2003, p. 43), afora os princípios tradicionais incorporados a um Estado Democrático de Direito, "a quadra atual vive a consolidação do princípio da razoabilidade e o desenvolvimento do princípio da dignidade da pessoa humana".

Não se deve confundir a segurança pública posta em risco por um delito com o clamor público instado pela prática de um crime bárbaro e sensacionalizado pela mídia. O primeiro é fator determinante para que se pondere (neste caso, mitigue) o direito à liberdade do réu, mediante a prisão cautelar. Já o segundo não é fundamento válido à criação de normas penais emotivas, de efeitos momentâneos, geradores do "processo penal de emergência", assim sabiamente denominado por Choukr.

Em suma, sabe-se que "a tarefa que compete ao processo penal é tortuosa, eis que deve atender tanto ao interesse social quanto ao interesse individual [...]" (Gerber, 2003, p. 39). Assim, é na ponderação de valores que teremos o equilíbrio razoável e socialmente desejável, sopesando, no caso concreto, as nuanças axiológicas em jogo.


5. CONCLUSÃO

Não será tão cedo que se pacificará a controvérsia existente acerca da constitucionalidade das prisões cautelares em face do princípio do estado de inocência. A despeito das legislações e súmulas visando cristalizar certo entendimento, controvérsias e debates subsistem a respeito do tema, seja em sede doutrinária, seja em sede jurisprudencial.

A problemática aqui tratada abarca, inclusive, a divergência tangente à própria finalidade do processo penal, ao passo que pode ser considerado tanto um freio aos tentáculos arbitrários do Estado, como um meio para se exercer o jus puniendi. Pela primeira concepção, a presunção de inocência seria o epicentro do processo penal, enquanto que para a segunda visão, sua relatividade é inerente ao sistema.

Efetivamente, o não-conhecimento de recurso de apelação do réu foragido afronta o postulado do duplo grau de jurisdição e, logo, o devido processo legal. Assim, a súmula 347 do STJ não nega a possibilidade de custódia cautelar, mas apenas faz uma "interpretação conforme" dos arts. 594. e 595, do CPP.

Sob outro enfoque, a admissibilidade de prisão provisória decorre de singelas regras de hermenêutica constitucional, notadamente a ponderação de valores. Isso porque, por vezes, a segurança pública e a paz social devem nortear a relativização do direito do réu em ser considerado inocente até o trânsito em julgado da sentença condenatória.

A existência de hipóteses permissivas de mitigação de direitos e garantias constitucionais do réu, tal como preconiza o direito penal do inimigo, não nega a busca por um processo penal constitucional. Ao contrário, tais hipóteses acabam por legitimar a atuação estatal, na medida em que sopesam valores intrínsecos à sociedade, também constitucionalmente assegurados.

Como se sabe, ultrapassada a solução subsuntiva7 dos conflitos entre princípios e regras constitucionais, em que o resultado do duelo era tido por uma simples regra de silogismo (premissa maior – premissa menor – conclusão subsuntiva), passa-se, agora, a se pensar num novo modelo de hermenêutica constitucional, baseado no sistema da ponderação de valores constitucionais, tendo em vista a constante dialética existente em nossa Carta Política.

Muito embora o princípio, ou, como queira alguns, a regra da ponderação de valores não tenha ainda encontrado um padrão razoável em objetividade, trata-se de idéia vanguardista, que poderá, e muito, nos ajudar na solução dos conflitos entre princípios e normas constitucionais, tal como acontece entre a presunção de inocência e a decretação de prisões provisórias.

De uma forma ou de outra, não podemos negar que a possibilidade de prisão processual permite uma mitigação do estado de inocência do réu. Ocorre, pois, uma simples ponderação de valores.

O processo penal de emergência não é o meio hábil para sanar as mazelas sociais. A sociedade reclama por mudanças no paradigma garantista penal. Escoa-se, pois, a necessidade de uma melhor análise do tema, precipuamente à luz da ponderação de valores constitucionais, para que não voltemos às barbáries da Idade Medieval, e nem cheguemos ao ápice da insegurança pública.


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Notas

  1. Art. 5º, inc. LVII, CF/88: "ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória".

  2. Art. 345, CP: "Fazer justiça pelas próprias mãos, para satisfazer pretensão, embora legítima, salvo quando a lei o permite: Pena – detenção, de 15 (quinze) dias a 1 (um) mês, ou multa, além da pena correspondente à violência".

  3. Vide também STF, HC nº 72.366-SP, Rel. Min. Néri da Silveira, sessão de 13-9-1995.

  4. Sobre a constitucionalidade do art. 594, CPP: RT 777/583; RT 775/520; RT 771/513; RT 756/489; RT 755/552; JSTF 232/257; JSTF 209/278-9; JSTF 171/356; RT 728/476; RT 753/611; RT 652/319; RT 686/391; RSTJ 115/504, dente outros.

  5. Contra: vide RJTACRIM 45/348; RJDTACRIM 4/156; RT 645/296; RJDTACRIM 38/358; RT 737/697; JTAERGS 75/110, dentre outros.

  6. Por mais, o preceito do duplo grau de jurisdição, a despeito de não conter menção expressa a seu respeito na Carta Maior, está, indubitavelmente, incorporado ao ordenamento pátrio, por meio do art. 8º, II, h, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica), por sua vez ratificada pelo Brasil.

  7. Igualmente, os seguintes julgados: HC 90279/DF, STF; HC 90657/MS, STJ; HC 66300/SP, STJ, dentre outros. Aliás, no julgamento, pelo STJ, do HC 78490, a ministra Laurita Vaz transcreveu em seu voto as palavras de Eugênio Pacelli, quem afirma que "não se pode admitir que o prévio recolhimento ao cárcere constitua um dos requisitos de admissibilidade do recurso (art. 594), à guisa de preparo, nem que a fuga posterior à apelação implique a deserção do citado recurso (art. 595). Aí a violação, para além do princípio da inocência, atingiria também o princípio da ampla defesa, sobretudo no que respeita à exigência do duplo grau".

  8. Sábias as palavras de Amilton Bueno de Carvalho (1996, p. 39) ao dizer que "a aplicação silogística da lei, como é ensinada nas faculdades, nada mais é do que uma forma de aprisionar o Juiz, tirando-lhe a força criadora".

Sobre o autor
Daniel Gustavo de Oliveira Colnago Rodrigues

Professor Assistente de Direito Processual Civil da Faculdade de Direito de Presidente Prudente (Toledo). Professor convidado no Curso de Pós-Graduação em Direito da Faculdade de Direito Damásio de Jesus. Pós-Graduando em Direito Civil e Processo Civil pela Faculdade de Direito de Presidente Prudente. Advogado. Coordenador da Área Cível do Escritório de Aplicação de Assuntos Jurídicos da Instituição Toledo de Ensino. Membro do Grupo de Estudos "Processo Civil Moderno e Acesso à Justiça", coordenado pelo prof. Dr. Gelson Amaro de Souza. Parecerista e Colaborador da American University College Of Law (EUA)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RODRIGUES, Daniel Gustavo Oliveira Colnago. Prisão processual e presunção de inocência.: Um estudo à luz da ponderação de valores constitucionais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2652, 5 out. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17553. Acesso em: 22 nov. 2024.

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