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Exegese sobre a relativização da coisa julgada.

O que há por trás desta tendência?

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Até que ponto instituto tão imperioso, como o é a coisa julgada, pode ser mitigado em prol do anseio por um pronunciamento não-ofensivo aos ditames da justiça e da constitucionalidade?

Resumo: À luz dos métodos lógico e dedutivo, o ensaio em tela se debruça sobre latente tema da processualística cível contemporânea, qual seja, a relativização da coisa julgada e seus desdobramentos na esfera constitucional da segurança jurídica. Isto porque, mostra-se como medida plausível e consciente saber até que ponto instituto tão imperioso, como o é a coisa julgada, pode ser mitigado em prol do anseio por um pronunciamento não-ofensivo aos ditames da justiça e da constitucionalidade. Neste diapasão, serão sopesados apontamentos pró e contra à possibilidade de "demolir" o que é concreto, sob bandeira de impedir que um pronunciamento judicial possa perpetuar uma suposta injustiça ou inconstitucionalidade.

Abstract: Through methods logical and deductive, this essay discusses the relativization of judged thing and their consequences to legal security. In this sense, will compared reviews favorable and contrary about the application this institute.

Palavras-chave: Coisa julgada. Relativização. Segurança jurídica. Inconstitucionalidade. Injustiça.

Key-words: Judged thing. Relativization. Legal security. Unconstitutionality. Injustice.

Sumário: 1. Linhas preambulares – 2. Da coisa julgada material e a questão envolvendo a segurança jurídica – 3. Da relativização da coisa julgada: inadmissibilidade ou pertinência? – 4. Linhas derradeiras – 5. Referências bibliográficas.

Summary: 1. First lines – 2. The judged thing and the legal security – 3. The relativization of judged thing: inadmissibility or pertinence? – 4. Last lines – 5. Bibliography references.


1 Linhas Preambulares

O homem é fruto da sua contradição. Ao passo que perfilha-se a proposições benéficas que lhe são judicialmente reconhecidas, inclusive invocando-as e valendo-se de tais como "escudo protetor" ante a possibilidade de sua ofensa (como deve ser, na verdade); busca incansavelmente desconstituir o que lhe é desfavorável, mesmo que isso importe em negar o que outrora já foi absolutamente revestido de imutabilidade a bem de outrem.

Sem circunlóquios, é assim que funciona com a coisa julgada e sua relativização: após um dilatado período de batalhas nos tribunais, através das querelas judiciais e da "guerra de nervos" que apelações, agravos, embargos, etc., proporcionam; o "combatente" se vê diante de um pronunciamento judicial que encerra a lide e proclama a "paz entre as partes". Todavia, mesmo após o "fechar das cortinas", mas antes ainda do "apagar das luzes", há a possibilidade de "atos extras" que desconstituam a res judicata, quais sejam, a Ação Rescisória, nos termos dos arts. 485 e seguintes do Código de Processo Civil; a impugnação (ou embargos) sobre título judicial fundado em lei ou ato normativo declarado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, ou fundado em aplicação ou interpretação da lei ou ato normativo tidas pelo STF como incompatíveis com a Constituição Federal, com base no art. 475-L, §1º e art. 741, § único da Lei Adjetiva; e a possibilidade de revisão da coisa julgada por denúncia de violação à Convenção Americana de Direitos Humanos formulado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos [01]; para que o vencedor possa enfim tranquilizar-se acerca da decisão proferida.

Então, suplantados todos os entreveros, quando menos se espera, acena-se pela possibilidade de injustiça ou inconstitucionalidade em um julgamento e surge a proposta de "relativizar" a coisa julgada por meios não convencionais, porém lícitos.

Quando se fala em decisão "inconstitucional", parece clarividente que faz alusão àquela que fere os ditames da Lei Max Brasileira. Mas quando se fala em decisão injusta, o que seria ela afinal? Sintetizando e "Relativizando" uma definição – assim como se quer relativizar a coisa julgada -, uma decisão injusta seria aquela que não atende aos "meus" anseios, embora ela seja justa para "você", leitor, que propôs uma ação contra mim e obteve êxito.

Ademais, falar em "relativização da coisa julgada" remonta à nominação questionável, afinal, ou "é", ou "não é" coisa julgada; e não "pode ser" coisa julgada [02]. Até mesmo porque, "relativizar" a coisa julgada é inviabilizar, de plano, a segurança jurídica que uma decisão imutável proporciona. Ao que parece, este "sopro processual nos ouvidos ansiosos por novidades" segue a moda de relativizar tudo, seguindo a ideia einsteniana de que tudo no mundo é relativo. Nem tudo é relativo, contudo.

É com base na questão envolvendo a segurança jurídica ao ordenamento material-processual, bem como atentando a uma suposta "mitigação" deste instituto, que este ensaio quer se debruçar.


2 Da Coisa Julgada Material e a Questão Envolvendo a Segurança Jurídica

Preceitua o art. 467 do Código de Processo Civil acerca da coisa julgada substancial, espécie de coisa julgada que nos interessa a bem da formulação deste Ensaio: "Denomina-se coisa julgada material a eficácia, que torna imutável e indiscutível a sentença, não mais sujeita a recurso ordinário ou extraordinário".

Como bem se vê, trata-se da hipótese em que foi proferida nos autos decisão definitiva, nos termos do art. 269 do Diploma Processual, e contra este pronunciamento não mais cabe qualquer tipo de recurso que permita a manifestação da parte irresignada.

Melhor explicando-a assevera Câmara (2004, p. 469):

Por tal motivo, as sentenças definitivas, as quais contêm resolução do objeto do processo [...], devem alcançar também a coisa julgada material (ou substancial). Este consiste na imutabilidade e indiscutibilidade do conteúdo (declaratório, constitutivo, condenatório) da sentença de mérito, e produz efeitos para fora do processo. Formada esta, não poderá a mesma matéria ser novamente discutida, em nenhum outro processo.

"Imutabilidade" e "indiscutibilidade". São estas as duas palavras-chave pelas quais tanto se almeja quando se ingressa numa peleja judicial, as quais estão contidas no universo constitucional da chamada "segurança jurídica", nobre axioma alçado à esfera de cláusula pétrea no trigésimo sexto inciso do artigo 5° da Constituição Federal pátria, e que expressamente trata em seu terceiro item, da "coisa julgada". [03]

Neste prumo, convêm a Didier Jr., Braga e Oliveira (2008, p. 552) conciliar o instituto da Coisa Julgada com a questão envolvendo a segurança jurídica:

A coisa julgada é instituto jurídico que integra o conteúdo do direito fundamental à segurança jurídica, assegurado em todo Estado Democrático de Direito, encontrando consagração expressa, em nosso ordenamento, no art. 5°, XXXVI, CF. Garante ao jurisdicionado que a decisão final dada à sua demanda será definitiva, não podendo ser rediscutida, alterada ou desrespeitada – seja pelas partes, seja pelo próprio Poder Judiciário. [04] (grifo nosso).

Entretanto, em que pese o status de "porto seguro" adquirido pela res judicata ao longo dos tempos, o que permitiu sua acoplagem ao Princípio da Segurança Jurídica num "casamento" perfeito;parece haver uma temerária tendência em desconsiderá-la como tal, em razão de possíveis decisões injustas ou inconstitucionais cristalizadas, o que teria colocado em xeque a soberania da coisa julgada.

Acerca deste processo de "desconsideração", bem observou Baptista da Silva (2008, p. 307):

Vivemos um tempo singular, que alguém qualificou de a "era da incerteza". [...] As coisas que pareciam perenes, mesmo as coisas sagradas, ou aquelas tidas como naturais, como a família, acabam desfazendo-se ante a voracidade das transformações culturais. [...] Neste quadro natural, não deve surpreender que a instituição da coisa julgada, tida como sagrada na "primeira modernidade", entre em declínio. [05]

Em verdade, tal posicionamento tem se tornado crescente em razão de um "processo de esquecimento" acerca da real função da coisa julgada, qual seja, a de fornecedora de "garantia de segurança" e não de "justiça", como idealizam os "relativizadores". Neste diapasão, cabe a Didier Jr., Braga e Oliveira (2008, p. 552)fazer tal distinção:

A coisa julgada não é instrumento de justiça, frise-se. Não assegura a justiça das decisões. É, isso sim, garantia da segurança, ao impor a definitividade da solução judicial acerca da situação jurídica que lhe foi submetida. (grifo nosso).

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Sublinha-se na citação supra as assertivas de que "[...] a coisa julgada não assegura a justiça [...]", mas sim "[...] a garantia da segurança das decisões". Neste prumo, convém dissecar a frase para melhor entendê-la: com relação à primeira afirmativa, há que se considerar que o conceito de "Justiça" é demasiadamente complexo para uma definição final e objetiva. Há um pluralismo de fatores que a norteiam, mas de certa forma, todos eles estão ligados à questão da vulnerabilidade humana a possíveis falhas que possam transformar o justo em injusto num "piscar de olhos" [06]. Assim, às vezes, diante de um deslize do litigante em sua empreitada na busca pela verdade, como a ausência de um documento ou a perda de um prazo, o Estado-Juiz profere decisão que não reflete o real direito daquele, mas mesmo assim esta decisão terá sido justa, vez que um pronunciamento final deve estar isento de benevolências ou malevolências quanto à falha que ensejou-o; caso contrário, estar-se-ia manchando a imparcialidade do órgão julgador.

Da mesma maneira, a injustiça pode advir do outro lado. A título ilustrativo, a falibilidade pode se dar na figura de um médico que não consegue salvar seu paciente mesmo na mais corriqueira das cirurgias. Às vezes, pode se dar na pessoa de um alpinista que falha em sua empreitada ao cume de uma montanha. E como não podia deixar de ser, ela também pode se dar na figura de um magistrado que peca em sua decisão, proferindo-a contra a forma ou contra matéria dispositiva.

Em ambos os casos, em não sendo percebido o vício, o pronunciamento proferido pelo Juiz pode convalidar caso esgote-se a via recursal ou a via de ação (leia-se Ação Rescisória). Verifica-se assim, que mesmo uma sentença eivada de vícios pode fazer coisa julgada. Por isso diz-se que a coisa julgada não assegura a justiça.

Já com relação à segunda afirmativa, começa-se a explicá-la com um questionamento: afinal, o que a coisa julgada objetiva garantir então? Com efeito, a coisa julgada vem oferecer respaldo à segurança jurídica das partes, de maneira que visa evitar o desrespeito a um pronunciamento judicial. Assim, se o pronunciamento é injusto e já está cristalizado, que valham-se as partes dos típicos meios processuais desconstituidores da coisa julgada já enumerados no primeiro capítulo deste Ensaio.

Por fim, para reforçar a necessidade de manutenção da soberania da res judicata, insta acrescentar que a coisa julgada não é somente questão de segurança jurídica às partes; é também instrumento de manutenção da supremacia do Judiciário como poder solucionador de conflitos, como bem observa Barbosa Moreira (2008, p. 233):

A estabilidade das decisões é condição essencial para que possam os jurisdicionados confiar na seriedade e na eficiência da máquina judicial. Todos precisam saber que, se um dia houverem de recorrer a ela, seu pronunciamento terá algo mais que o fugidio perfil nas nuvens. Sem essa confiança, crescerá fatalmente nos que se julguem lesados a tentação de reagir por seus próprios meios, à margem dos canais oficiais. Escusado sublinhar o dano que isso causará à tranqüilidade social.

Sob este ângulo, pode-se dizer que a coisa julgada é o "carimbo" que confere o rótulo de "obrigatório" ao pronunciamento concluso, caso contrário, a peleja terá sido em vão.

Desta forma, as três modalidades revisoras da coisa julgada que foram singelamente citadas no capítulo anterior, na qualidade de medidas excepcionais que são, não visam comprovar a fragilidade da res judicata, mas sim o compromisso que o Judiciário assume de tentar ser o mais perfeito possível quando de sua resposta jurisdicional.

Logo, se pudéssemos sintetizar todos os parágrafos acima em um só, poder-se-ia dizer que a coisa julgada não guarda qualquer relação com a justiça, embora seja esse seu objetivo. Quanto à segurança jurídica, contudo, ambas são absolutamente interdependentes. Assim, quando se fala na abstratização da coisa julgada, isto se dá pelo lapso memorial de que o compromisso da coisa julgada é com a segurança jurídica e não com a justiça.


3 Da Relativização da Coisa Julgada: inadmissibilidade ou pertinência ?

Como bem dito anteriormente, ao longo dos tempos a coisa julgada edificou-se sobre as pilastras da segurança jurídica às partes e ao processo. Trata-se de ícone absoluto, imperioso, de maneira que, ao contrário do que se pensa, os três institutos revisores vistos no primeiro capítulo não são a possibilidade de mitigá-lo, mas sim de preservá-lo soberano.

Doutrinariamente, contudo, há quem transpasse a tríade reformuladora da res judicata abrindo uma "cláusula geral de revisão", a qual proporciona que a decisão judicial jamais se solidifique quando injusta ou inconstitucional. Esta proposta apregoa a possibilidade atemporal de reaver uma decisão, portanto, por meios que não os processualmente reconhecidos. Trata-se da "relativização da coisa julgada atípica".

Adepto da possibilidade de desconstituição em havendo dissonância com a Lei Max pátria, Nascimento (2003, p. 13) propõe o "banimento" da sentença cristalizada com essa qualidade, através da decretação de sua nulidade, conforme se pode observar:

A coisa julgada é intocável, tanto quanto os atos executivos e legislativos, se, na sua essência, não desbordar do vínculo que deve se estabelecer entre ela e o texto constitucional, numa relação de compatibilidade para que possa revestir-se de eficácia e, assim, existir sem que contra a mesma se oponha qualquer mácula de nulidade. Essa conformação de constitucionalidade tem pertinência, na medida em que não se pode descartar o controle do ato jurisdicional, sob pena de perpetuação de injustiças. Por esse motivo, nula é a sentença que não se adequa ao princípio da constitucionalidade, porquanto impregnada de carga lesiva à ordem jurídica. Impõe, desse modo, sua eliminação do universo processual com vistas a restabelecer o primado da legalidade. Assim, não havendo a possibilidade de sua substituição no mundo dos fatos e das idéias, deve ser decretada sua irremediável nulidade. (grifo nosso).

Por sua vez,Delgado (2003, p. 46) é fenomenológico ao defender a possibilidade de abstratização, senão vejamos:

O avanço das relações econômicas, a intensa litigiosidade do cidadão com o Estado e com o seu semelhante, o crescimento da corrupção, a instabilidade das instituições e a necessidade de se fazer cumprir o império de um Estado de Direito centrado no cumprimento da Constituição que o rege e das leis com ela compatível, a necessidade de um atuar ético por todas as instituições políticas, jurídicas, financeiras e sociais, tudo isso submetido ao controle do Poder Judiciário, quando convocado para solucionar conflitos daí decorrentes, são fatores que têm feito surgir uma grande preocupação, na atualidade, com o fenômeno produzido por sentenças injustas, por decisões que violam o círculo da moralidade e os limites da legalidade, que afrontam princípios da Magna Carta e que teimam em desconhecer o estado natural das coisas e das relações entre os homens. A sublimação dada pela doutrina à coisa julgada, em face dos fenômenos instáveis supra citados, não pode espelhar a força absoluta que lhe tem sido dada, sob o único argumento que há de se fazer valer o império da segurança jurídica.

Valendo-se dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade para justificar a mitigação da segurança jurídica e, consequentemente, da res judicata, asseveram Theodoro Júnior e Cordeiro de Faria (2003, p. 112):

Não há de se objetar que a dispensa dos prazos decadenciais e prescricionais na espécie poderia comprometer o princípio da segurança das relações jurídicas. Para contornar o inconveniente em questão, nos casos em que se manifeste relevante interesse na preservação da segurança, bastará recorrer-se ao salutar princípio constitucional da razoabilidade e proporcionalidade. Ou seja, o Tribunal, ao declarar a inconstitucionalidade do ato judicial, poderá fazê-lo com eficácia ex nunc, preservando os efeitos já produzidos como, aliás, é comum no direito europeu em relação às declarações de inconstitucionalidade.

Em posição intermediária, Freitas Câmara (2008, p. 32)perfilha-se à possibilidade de abstratização, sobretudo quando a questão relacionar-se à inconstitucionalidade (e não à injustiça) da decisão, formulando uma espécie de "relativização condicional da coisa julgada":

É, pois, possível relativizar a coisa julgada, afastando-a, sempre que o conteúdo da sentença firme contrariar norma constitucional. Deste modo, não havendo qualquer fundamento constitucional para impugnação da sentença transitada em julgado, será impossível relativizar-se a coisa julgada material, podendo esta ser afastada apenas nos casos previstos em lei como geradores de rescindibilidade (art. 485 do Código de Processo Civil), no prazo e pela forma legais. (grifo nosso).

No extremo oposto, há aqueles que pendem pela inaceitabilidade da abstratização da res judicata. Assim, contrariamente à hipótese de relativização da coisa julgada pela utilização de instrumentos metajurídicos, podem-se utilizar os argumentos de Marinoni (2008, p. 282-283):

A "tese da relativização" contrapõe a coisa julgada material ao valor justiça, mas surpreendentemente não diz o que entende por "justiça" e sequer busca amparo em das modernas contribuições da filosofia do direito sobre o tema. Aparentemente parte de uma noção de justiça como senso comum, capaz de ser descoberto por qualquer cidadão médio (l’uomo della strada), o que torna imprestável ao seu propósito, por sofrer de evidente inconsistência [...]. O problema da falta de justiça não aflige apenas o sistema jurídico. Outros sistemas sociais apresentam injustiças gritantes, mas é equivocado, em qualquer lugar, destruir alicerces quando não se pode propor uma base melhor ou mais sólida.

Por sua vez, Nery Júnior (2006, p. 598)implode a ideia de desconstituição da coisa julgada por uma suposta causa maior, qual seja, a inquebrantabilidade da Constituição Federal, ao alegar que:

A supremacia da Constituição é a própria coisa julgada, enquanto manifestação do Estado Democrático de Direito, fundamento da República (CF 1.° caput), não sendo princípio que possa opor-se à coisa julgada como se esta estivesse abaixo de qualquer outro instituto constitucional. Quando se fala na intangibilidade da coisa julgada, não se deve dar ao instituto tratamento jurídico inferior, de mera figura do processo civil, regulada por lei ordinária, mas, ao contrário, impõe-se o reconhecimento da coisa julgada com a magnitude constitucional que lhe é própria, ou seja, de elemento formador do Estado Democrático de Direito, que não pode ser apequenado por conta de algumas situações, velhas conhecidas da doutrina e da jurisprudência [...].

Sem extremismos, mas não menos legalista, Santos Lucon (2008, p. 345) parte para um interessante posicionamento, qual seja:

[...] é o caso de se ampliar casos para a ação rescisória. No caso de descoberta científica apta a demonstrar o erro na solução dada ao caso concreto quando era impossível valer-se de determinada prova seria o caso de admitir a ação rescisória a partir do momento em que o interessado obtém o laudo, em vez do trânsito em julgado da sentença rescindenda. (grifo nosso). [07]

Ademais, jurisprudencialmente, a questão está longe de ser pacificada. O Superior Tribunal de Justiça tem decidido tanto pela possibilidade como pela vedação à abstratização da coisa julgada, senão veja-se:

PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. DÚVIDAS SOBRE A TITULARIDADE DE BEM IMÓVEL INDENIZADO EM AÇÃO DE DESAPROPRIAÇÃO INDIRETA COM SENTENÇA TRANSITADA EM JULGADO. PRINCÍPIO DA JUSTA INDENIZAÇÃO.

RELATIVIZAÇÃO DA COISA JULGADA.

1. Hipótese em que foi determinada a suspensão do levantamento da última parcela do precatório (art. 33 do ADCT), para a realização de uma nova perícia na execução de sentença proferida em ação de desapropriação indireta já transitada em julgado, com vistas à apuração de divergências quanto à localização da área indiretamente expropriada, à possível existência de nove superposições de áreas de terceiros naquela, algumas delas objeto de outras ações de desapropriação, e à existência de terras devolutas dentro da área em questão.

2. Segundo a teoria da relativização da coisa julgada, haverá situações em que a própria sentença, por conter vícios insanáveis, será considerada inexistente juridicamente. Se a sentença sequer existe no mundo jurídico, não poderá ser reconhecida como tal, e, por esse motivo, nunca transitará em julgado.

3. "A coisa julgada, enquanto fenômeno decorrente de princípio ligado ao Estado Democrático de Direito, convive com outros princípios fundamentais igualmente pertinentes. Ademais, como todos os atos oriundos do Estado, também a coisa julgada se formará se presentes pressupostos legalmente estabelecidos. Ausentes estes, de duas, uma: (a) ou a decisão não ficará acobertada pela coisa julgada, ou (b) embora suscetível de ser atingida pela coisa julgada, a decisão poderá, ainda assim, ser revista pelo próprio Estado, desde que presentes motivos preestabelecidos na norma jurídica, adequadamente interpretada." (WAMBIER, Tereza Arruda Alvim e MEDINA, José Miguel Garcia. 'O Dogma da Coisa Julgada: Hipóteses de Relativização', São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, pág. 25)

4. "A escolha dos caminhos adequados à infringência da coisa julgada em cada caso concreto é um problema bem menor e de solução não muito difícil, a partir de quando se aceite a tese da relativização dessa autoridade - esse, sim, o problema central, polêmico e de extraordinária magnitude sistemática, como procurei demonstrar. Tomo a liberdade de tomar à lição de Pontes de Miranda e do leque de possibilidades que sugere, como: a) a propositura de nova demanda igual à primeira, desconsiderada a coisa julgada; b) a resistência à execução, por meio de embargos a ela ou mediante alegações incidentes ao próprio processo executivo; e c) a alegação incidenter tantum em algum outro processo, inclusive em peças defensivas." (DINAMARCO, Cândido Rangel. 'Coisa Julgada Inconstitucional' — Coordenador Carlos Valder do Nascimento - 2ª edição, Rio de Janeiro: América Jurídica, 2002, págs. 63-65) 5. Verifica-se, portanto, que a desconstituição da coisa julgada pode ser perseguida até mesmo por intermédio de alegações incidentes ao próprio processo executivo, tal como ocorreu na hipótese dos autos.

6. Não se está afirmando aqui que não tenha havido coisa julgada em relação à titularidade do imóvel e ao valor da indenização fixada no processo de conhecimento, mas que determinadas decisões judiciais, por conter vícios insanáveis, nunca transitam em julgado. Caberá à perícia técnica, cuja realização foi determinada pelas instâncias ordinárias, demonstrar se tais vícios estão ou não presentes no caso dos autos.

7. Recurso especial desprovido.

(REsp 622.405/SP, Rel. Ministra DENISE ARRUDA, PRIMEIRA TURMA, julgado em 14/08/2007, DJ 20/09/2007 p. 221) – cabimento

AGRAVO REGIMENTAL. RECURSO ESPECIAL. PRECATÓRIO COMPLEMENTAR. JUROS MORATÓRIOS. INCIDÊNCIA ATÉ O DEPÓSITO DA INTEGRALIDADE DA DÍVIDA.

COISA JULGADA. RELATIVIZAÇÃO DA COISA JULGADA. NÃO APLICAÇÃO.

I - Havendo expressa determinação na sentença exeqüenda, já transitada em julgado, da inclusão dos juros moratórios no precatório complementar, não há mais espaço para discussão sobre os referidos juros, em virtude do princípio da coisa julgada.

II - Esta c. Corte entende que estão fora do alcance do parágrafo único do art. 741 do CPC as sentenças transitadas em julgado anteriormente a sua vigência, ainda que eivadas de inconstitucionalidade. Precedente: (EREsp 806.407/RS, DJU de 14/4/2008) Agravo regimental desprovido.

(AgRg nos EDcl no REsp 1012068/RS, Rel. Ministro FELIX FISCHER, QUINTA TURMA, julgado em 17/06/2008, DJe 04/08/2008)

Postos todos os posicionamentos, em que pese o tecnicismo em exteriorizá-los aos olhos do leitor, aquele que veda incondicionalmente o fenômeno da abstratização é o que deve prosperar.

Com efeito, desconsiderar a coisa julgada "inconstitucional" ou "injusta" parece uma fidalga tentativa a princípio, mas cuja boa vontade dos que a defendem não sopesa uma consequência temerária em segundo instante. Isto porque, se há uma decisão inconstitucional, como "último suspiro" do litigante inconformado há a possibilidade de recurso extraordinário perante o Supremo Tribunal Federal, de modo que, se por algum motivo não houver tal possibilidade, é porque a decisão não é de fato inconstitucional ou a parte não foi capaz de utilizar em seu "leque de cartas" o recurso extraordinário por desídia própria. Desta forma, desconsiderar atipicamente a res judicata inconstitucional não seria a "atividade saneadora ao julgado aviltante", como se subintitula a relativização, mas sim um prêmio à incompetência daquele que esteve diante de uma suposta decisão inconstitucional e, quando realmente pôde, nada fez. É mais fácil jogar a culpa no Judiciário. Ou ainda alegar-se-ia que mesmo o STF, guardião da Constituição pátria, pode equivocar-se em seu posicionamento? Porque se afirmativa a resposta, pode-se dizer que o povo estará diante de uma grave situação: nem mais na mais alta cúpula judicial do país poder-se-á confiar nas palavras de um pronunciamento final.

Por outro lado, o ato de abstratizar uma decisão injusta se daria meramente por motivos metajurídicos, principiológicos, fenomenológicos, ou simplesmente não-legislados; ao passo que, caso se modificasse a decisão antes cristalizada, a injustiça ficaria "trocando de lado" infindavelmente; ou alguém discorda que, se for possível relativizar a coisa julgada uma vez, este mesmo pronunciamento relativizado não poderá sê-lo novamente, e novamente, enquanto houver argumentos das partes? Com maestria, sobre a questão opinou Barbosa Moreira (2008, p. 245-246):

Suponhamos que um juiz, convencido da incompatibilidade entre certa sentença e a Constituição, ou da existência, naquela, de injustiça intolerável, se considere autorizado a decidir em sentido contrário. Fatalmente sua própria sentença ficará sujeita à crítica da parte agora vencida, a qual não deixará de considerá-la, por sua vez, inconstitucional ou intoleravelmente injusta. Pergunta-se: que impedirá esse litigante de impugnar em juízo a segunda sentença, e outro juiz de achar possível submetê-la ao crivo de seu próprio entendimento? O óbice concebível seria o da coisa julgada; mas, se ele pôde ser afastado com relação à primeira sentença, porque não poderá sê-lo quanto à segunda? É claro que a indagação não se porá uma única vez: a questão poderá repetir-se, em princípio, ad infinitum, enquanto a imaginação dos advogados for capaz de descobrir inconstitucionalidades ou injustiças intoleráveis nas sucessivas sentenças. (grifo nosso).

Ademais, "abrir" o art. 485 do Código de Processo Civil a novos incisos, contrariando sua condição de numerus clausus, pode tornar a Ação Rescisória mais um "recurso" da parte derrotada contra o que lhe é desfavorável, e não é esse seu objetivo. Pode-se observar que o art. 485 é situacional, e apenas para situações esporádicas que eventualmente possam ocorrer. Assim, a única modificação que este Autor entende plausível, e reiterando as palavras do brilhante doutrinador José Carlos Barbosa Moreira, é admitir, no caso da precisão técnica que somente se torna possível após já existir decisão consolidada, que o prazo da rescisória seja contado a partir da obtenção desse laudo "saneador". A modificação, portanto, seria no art. 495 e não no art. 485 do Diploma Adjetivo.

Em epítome, admitir a Ação Rescisória contra decisões "injustas" ou "inconstitucionais" a transformaria em mais um "recurso" (se é que assim se pode dizer) relutante e/ou meramente protelatório, ou seja, a título ilustrativo, admite-se a modificação da coisa julgada injusta ou inconstitucional no art. 485 do CPC, e quando acabarem as armas da parte perdedora, ainda lhe sobrará a Ação Rescisória como chance derradeira.

Isto é, senão arriscado demais à supremacia do Judiciário como Poder, mais um duro golpe na luta da Justiça pelo Processo Civil Teleológico e contra a morosidade processual.

Sobre os autores
Rafael José Nadim de Lazari

Advogado. Mestrando-bolsista (CAPES/PROSUP Modalidade 1) pelo Centro Universitário "Eurípedes" de Marília/SP - UNIVEM. Pesquisador do Grupo de Iniciação Científica "Novos Rumos do Processo de Conhecimento", sob orientação do Prof. Dr. Gelson Amaro de Souza

Gelson Amaro de Souza

Procurador do Estado de São Paulo aposentado. Mestre em Direito pela ITE de BAURU/SP e Doutor em Direito das Relações Sociais - com área de concentração em Direito Processual Civil - pela PUC/SP. Integrado ao Corpo Docente do Mestrado em Direito e na Graduação em Direito da Faculdade do Norte do Paraná (UENP). Ex-diretor e atual Professor dos cursos de graduação e pós-graduação em Direito da Toledo de Presidente Prudente/SP. Leciona também na graduação da FAI de Adamantina/SP, é Professor convidado da ESA/SP e da pós-graduação da FIO de Ourinhos/SP, ESUD de Cuiabá/MT e AEMS de Três Lagoas/MT. Advogado militante em Presidente Prudente/SP.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LAZARI, Rafael José Nadim; SOUZA, Gelson Amaro. Exegese sobre a relativização da coisa julgada.: O que há por trás desta tendência?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2660, 13 out. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17556. Acesso em: 23 nov. 2024.

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