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A inoponibilidade das exceções pessoais e os títulos de crédito

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Pensar na inoponibilidade das exceções é pensar, a um só tempo, na circulação dos títulos de crédito. Seu poder circulante restaria mitigado se não gozasse de presunção de liquidez, certeza e exigibilidade.

RESUMO

Eu devia, eu pagava; tu devias, tu pagavas; todos confiavam e todos davam azo à confiança; iam todos e todos viam; todos se conheciam...

Em um mundo onde todos se conhecem e se respeitam, não há porque se falar em títulos de crédito. A fidúcia se opera na base da pessoalidade e na prática do escambo. Tais títulos, então, são desnecessários.

O processo de adensamento populacional, todavia, impõe novas práticas de circulação de bens. O horizonte do mundo não é mais a própria visão. Enxerga-se para além do lugar conhecido. Negocia-se de modo impessoal.

Impessoalidade (e a falta de tempo para a construção da confiança) é o ponto de partida que se associa à necessidade de troca de bens para a justificação dos títulos de crédito. Papéis que representam – de modo impessoal, logo inoponível – obrigações e podem ser reclamados sem que se discuta a relação de direito material de fundo. Papéis que gozam de literalidade (valem o escrito), abstração (têm vida para além da relação material de base) e carturalidade, porque demandam a posse do "papel" para se exigir o que neles se consubstancia.


INTRODUÇÃO

Título de crédito, parafraseando Vivante, é documento necessário para que se exerça o direito literal e autônomo que a cártula menciona. A definição de Vivante se mantém atual por definir os títulos de crédito no que eles têm de singular. Nesta linha, é o conceito encampado pelo Código Civil Brasileiro de 2002 no tratamento que dispensa ao assunto no Livro I da Parte Especial, dedicada aos "Direito das Obrigações".

Títulos de crédito, então, são documentos representativos de obrigações cambiárias que apresentam dois atributos básicos: a) negociabilidade, uma vez que podem circular por meio de endosso; e, b) executividade, já que não se sujeitam ao processo civil de cognição. Pelo contrário, não reconhecer que os títulos de crédito são títulos executivos extrajudiciais, seria incorrer em perda da condição da ação por falta de interesse de agir, na modalidade adequação, ignorando-se as disposições do Código de Processo Civil em seu artigo 585, I.

No que concerne aos princípios gerais aplicáveis aos títulos de crédito, deve-se trazer à colação a literalidade, a cartularidade e a autonomia, normalmente vista na doutrina de forma fracionada, isto é, desdobrando-se nos princípios da abstração e inoponibilidade das exceções aos terceiros de boa-fé.

Entender os princípios que regem os títulos de crédito é fundamental para que se conceda a tais papéis a importância que eles têm no processo de circulação de bens e riquezas. Uma necessidade que decorre do processo de incrementação de novas dinâmicas à vida social.

Sabendo-se da importância dos princípios na disciplina dos títulos de crédito, é de se entender a própria noção de princípio, termo primariamente ligado à linguagem geométrica por designar verdades primeiras. Verdades ou mandamentos que fornecem ao sistema jurídico elementos de coesão e solidificação. Consoante lição de Alexy [01], normas que expressam valores fundamentais.

Princípios, especificamente em matéria de título de crédito, são os valores fundamentais sem os quais não se pode pensar a dinâmica creditícia. Uma dinâmica essencial para o processo de evolução humana e que só foi negada na fisiocracia francesa, onde se acredita ser a agricultura a única atividade relevante.

A noção da fisiocracia francesa não foi a que mais marcou a contemporaneidade. Pelo contrário. Foi o modelo de mercantilismo inglês e seu despudor na representação de riquezas que permitiu o enriquecimento britânico. Um enriquecimento que redundou no processo da Revolução Industrial e garantiu à Inglaterra a condição de maior potência mundial por mais de dois séculos.


1 TÍTULO DE CRÉDITO. SEGURANÇA PARA A CIRCULAÇÃO DE RIQUEZAS

Título de crédito, na lição de Vivante [02], é o documento necessário para o exercício de direito, literal e autônomo, nele mencionado. Trata-se de um papel (cártula) com o qual se representam prerrogativas, possivelmente efeitos de uma relação de direito material.

Embora pareça sustentável se dizer que os títulos de crédito são, como regra, representativos de relações-base de direito material, não se pode perder de vista que a autonomia é marca indelével destes títulos. Por esta razão, soa absolutamente producente se dizer que tais títulos têm vida própria. São autônomos e esta autonomia deve subsistir, sobretudo para que se preserve a confiança perante terceiros de boa-fé.

Etimologicamente crédito advém de creditum, tendo evoluído para credere, que no latim aduz à confiança [03]. Os títulos de crédito, desta forma, são documentos com os quais se representa confiança. Uma confiança que se faz necessária para a continuidade e evolução do processo de circulação de riquezas. Uma relação de fidúcia que garante aos títulos de crédito características muito singulares.

A relação de fidúcia, como regra, é construída no trato pessoal. Todavia, em razão da grande complexidade que a vida social tem imposto, não mais subsistem espaços de pessoalidade que aproveitem a todas as pessoas. Dizer que a palavra vale um escrito não mais tem o alcance de outrora, porque poucas serão as pessoas a conhecer a pessoa que profere a fala.

Ainda que a palavra valha um escrito entre as pessoas que se conhecem, nossa contemporaneidade é marcada pela impessoalidade e pela massificação. As relações se dão no atacado. Desta forma, embora haja muitas pessoas de boa-fé, o tempo que rege a vida em sociedade não permite que a confiança se instale. Não há tempo hábil para que as pessoas se conheçam de modo adequado. Vizinhos de apartamentos, em tempos outros vistos como parentes, não são mais que um número com o qual se partilha despesas condominiais.

Relações apressadas, mas necessárias, demandam um novo modo de encarar o mundo. Como não há lugar para a pessoalidade, ganham lugar os mecanismos que permitem a contratação entre estranhos de modo mais seguro. Nesta linha ganham força os títulos de créditos, mecanismos rigorosamente hábeis para instrumentalizar negócios jurídicos. Uma instrumentalização que se faz efetiva enquanto os contratantes não vão de encontro às regras de boa-fé, alinhadas com a necessidade da preservação da fidúcia.

Os elementos fundamentais para se configurar o crédito decorrem da noção de confiança e tempo. A confiança é necessária, pois o crédito se assegura numa promessa de pagamento. A temporalidade é fundamental, visto que se subentende que o sentido do crédito é, justamente, o pagamento futuro combinado.

Como visto, o crédito tem seu fundamento na fidúcia. Fundamenta-se na noção de confiança aplicada aos negócios. Nesta linha, nasce da qualidade da pessoa que promete e a ele se obriga. Esta pessoa se obriga ao cumprimento da obrigação. Por esta razão, ainda que o portador se valha da possibilidade da negocialidade, não assiste qualquer razão para que a pessoa primariamente obrigada se exima do cumprimento do que pactuou. O escrito deve valer [04], pouco importando a pessoa que porta o título.

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Conquanto a lição de Vivante sobre título de crédito seja bastante elucidativa, permitindo uma análise inclusive teleológica sobre o instituto, parece-nos producente se trazer à colação outras lições, como a de Novarrine [05].

O autor sob exame, em citação de Newton Lucca, aponta ser o título de crédito o documento que certifica uma operação de crédito. Assim, como tem o condão de certificar uma operação havida, a posse deste é necessária para que se exerça o direito mencionado.

Embora Novarrine não se utilize das expressões "cartularidade e literalidade" [06][07] por ocasião de sua conceituação, resta-nos claro a existência de convergência entre os institutos. A cartularidade representada pela posse do título e a literalidade como representativa do conteúdo do título, ou seja, o direito que no papel se menciona.

Na doutrina brasileira encontramos na lição de José Maria Whitaker um posicionamento que se destaca pelo enfoque econômico concedido ao assunto. Nesta linha aponta ser o título de crédito "todo documento capaz de realizar imediatamente o valor que representa" [08].

Na lição de Whitaker é de se destacar a ênfase à fungibilidade do título, consistente na mobilização imediata de seu valor. Com isto se permite ao portador receber a importância contida no documento, antes da data do vencimento, por meio de uma operação denominada desconto bancário [09].

Também no Brasil, ganha corpo a idéia esposada por Fran Martins [10] sobre formalismo, que para ele é um elemento necessário à configuração do título de crédito. Uma lição que vai ao encontro do estatuído no artigo 104 do Código Civil, onde se estatui que o negócio jurídico deve observar agente capaz, objeto lícito e forma prescrita ou não defesa em lei. Formalidade, então, é garantia de validade do negócio jurídico, como também o é para que o título de crédito seja exigível, como título executivo extrajudicial, e negociável. Do contrário tais características, que são essenciais, restariam perdidas. Neste caso, restaria apenas o procedimento monitório ao portador.

Avançando a noção esposada por Fran Martins, é de se dizer que, para o papel se caracterizar como título de crédito, é indispensável que o documento se revista das exigências legais, impostas de modo singular para cada espécie de título, seja ele letra de câmbio, nota promissória etc. Diz-se, então, que a ausência de qualquer destes requisitos retiraria do documento a natureza de título de crédito.

1.1 ESPÉCIES DE TÍTULOS DE CRÉDITO

Títulos de crédito, originariamente, seriam a letra de câmbio e a nota promissória. Pontes de Miranda, aliás, aponta que estas são as verdadeiras espécies de títulos de crédito. Todos os outros documentos que costumamos nominar título de crédito são, em sua lição, assemelhados. Títulos com similitudes, daí serem chamados de cambiariformes [11].

Em uma leitura essencialista a lição de Miranda se mantém. Em uma análise restritiva, de fato, é possível se aventar serem títulos de crédito apenas a letra de câmbio e a nota promissória. Todavia, a se fazer uma leitura integrativa, percebe-se que o direito, especificamente o brasileiro, é profícuo em criar espécies documentais que podem, sim, ser chamadas de título de crédito, já que passaram a ostentar o caráter de exigíveis pelo procedimento executivo (já que títulos executivos extrajudiciais) e são negociáveis.

Na linha ampliativa, que nos parece mais producente, cabe se trazer à colação a lição de Paulo Restiffe Neto [12]. Este autor, valendo-se dos estudos de Félix Ruiz Alonso, aponta que no direito brasileiro chegariam a quase trinta o número de títulos de crédito existentes, como se pode depreender das referências legais sobre o assunto a seguir aduzidas.

Os títulos de crédito conhecidos em nosso direito, isto é, encampados pela experiência legislativa, são os seguintes:

i) Letra de Câmbio (Decreto 2.044, de 31.12.1908, alterado pelo decreto 57.663, de 24.1.1966, Lei Uniforme de Genebra);

ii) Nota Promissória(idem);

iii) Cheque(Decreto 2.591, 7.8.1912, alterado pelo Decreto 57.595, de 7.1.1966, Lei Uniforme de Genebra);

iv) Duplicata Comercial(Lei 5.474, de 18.7.1968, alterada pelo Decreto-lei 436, de 27.1.1969);

v) Duplicata de Serviço(idem);

vi) Debênture (Decreto 177-A, de 15.9.1893, e Seção VII, da Lei 4.728, de 14.7.1965);

vii) Conhecimento de Depósito(Decreto 1.102, de 21.11.1903);

viii) Warrant(idem);

ix) Conhecimento de Transporte(Decreto 19.473, de 10.11.1930);

x) Letra Hipotecária(Decreto 169-A, de 19.1.1890);

xi) Cédula Rural Pignoratícia(Decreto-lei 167, de 14.2.1967);

xii) Cédula Rural Hipotecária(idem);

xiii) Cédula Rural Pignoratícia e Hipotecária(idem);

xiv) Nota de Crédito Rural (idem);

xv) Nota promissória Rural(idem);

xvi) Duplicata rural(idem);

xvii) Letra Imobiliária(Lei 4.380, de 21.8.1964);

xviii) Certificado de Depósito Bancário(Lei 4.728, de 14.7.1965);

xix) Cédula de Crédito Industrial(Decreto-lei 413, de 9.1.1969);

xx) Nota de Crédito Industrial(idem);

xxi) Ação de sociedade por Ações(Decreto-lei 2.627, de 26.9.1940);

xxii) Partes Beneficiárias(Decreto-lei 2.627, de 26.9. 1940, art. 31);

xxiii) Bilhete de Mercadoria (Lei 165-A, de 1890);

xxiv) Cédula Hipotecária(Decreto-lei 70, de 21.11.1966 e Resolução 228, de 4.7.1972, do Banco Central do Brasil);

xxv) Certificados de Depósitos em Garantia(Lei 4.728, de 14.7.1965, art. 31); e,

xxvi) Certificado de Investimento(Resolução 145, de 14.4.1970, do Banco Central do Brasil).

Vistas as espécies de títulos de crédito que nosso direito reconhece no plano legal, passa-se neste momento à análise das características destes títulos.

1.2 PRINCÍPIOS QUE REGEM OS TÍTULOS DE CRÉDITO

Os títulos de crédito são documentos representativos de obrigações cambiárias. Esta definição se faz pacífica e traz consigo alguns desdobramentos, especialmente que os títulos de crédito podem ser negociáveis e se revestem da possibilidade da execução direta, isto é, a execução que dispensa o processo de conhecimento como fase de reconhecimento de um direito líquido, certo e exigível.

No que concerne aos princípios gerais aplicáveis aos títulos de crédito, merecem destaque literalidade, cartularidade e autonomia. Autonomia, aliás, é marca essencial aos títulos de crédito, por isto deve ser destacado o que dela decorre: abstração [13][14] e inoponibilidade das exceções aos terceiros de boa-fé.

A literalidade consiste na proposição a afirmar que o título vale apenas, e tão-somente, o que nele se expressa de forma objetiva. Vale o escrito. Por isto, só se pode reclamar o que dele consta.

Embora uma leitura literal de literalidade aponte para se cobrar apenas o escrito, os títulos de crédito devem ser vistos dentro do contexto em que se inserem. Por isto mesmo, não se pode perder a grande máxima da economia pela qual se diz que "dinheiro tem valor no tempo".

Títulos de crédito representem obrigações pecuniárias, como regra. Por isto o preceito acerca da correção monetária deve ser estendido a eles. Desta forma, ao se propor uma execução fundada em título de crédito, não restará mitigada a literalidade se o portador reclamar correção monetária, já que esta visa, apenas, garantir o poder de compra do dinheiro.

Correção monetária não significa ganho algum. Ao contrário, significa tão-somente que o portador do título não deve ser punido pela inércia do devedor. Entendimento contrário, então, seria a premiação da nescidade. Dizer que o devedor pode alegar excesso quando o conteúdo do título é atualizado seria a premiação da própria torpeza caracteriza na mora. Uma premiação feita à margem do brocardo latino nemo audatur propriam turpitudinem allegans, pelo não se deve premiar culpa se acolhendo alegações sobre a própria torpeza.

Outro princípio vital para os títulos de crédito e a cartularidade, já que é na cártula que se materializa a relação jurídica de direito material. A existência da cártula (enquanto papel representativo de uma obrigação cambiária) é condição sem a qual não se pode exercitar qualquer direito creditício. É até possível que se reclame direitos sem um papel que o represente. Neste caso, todavia, o procedimento será outro. A possível execução decorrerá de um processo de conhecimento, não sendo possível ser acionada a priori. Em regra, haverá um procedimento de conhecimento (mesmo que monitório, nos casos em que há uma relação de direito consubstanciada em algo material diferente de um título de crédito) no qual as pretensões serão deduzidas e reconhecidas, ou não, pelo juízo.

Cartularidade [15], então, é princípio assaz importante para a matéria que envolve título de crédito por ser condição de procedibilidade. Caracteriza-se como condição da ação para que se proponha a execução. Do contrário, outros mecanismos processuais poderão ser chamados à colação, mas não o executivo, já que certeza, liquidez e exigibilidade não mais se presumirão.

Avançando a discussão acerca dos princípios que orientam a temática dos títulos de crédito, deparamo-nos com a autonomia. Este preceito é fundamental por apontar que as obrigações representadas por um título de crédito têm vida própria e são independentes entre si. Desta forma, caso uma das obrigações se apresente eivada de algum vício, este não compromete a validade e eficácia dos outros compromissos que porventura constem do documento. É de se dizer, inclusive, que questionamentos sobre a relação de direito material de fundo não têm o condão de retirar [16] validade ou exigibilidade do que o título de crédito representa.

A autonomia é um preceito elementar em se tratando de título de crédito. É preceito fundamental e se torna evidente quando se aponta, por exemplo, que a devolução de um bem, cuja transferência ensejou a confecção de um título de crédito, não retira a validade deste título. Nesta hipótese, caso o portador tenha se valido da negocialidade, o novo portador poderá apresentar o título de crédito como se nada tivesse acontecido.

A fala do parágrafo anterior deve ser bem compreendida para que não se defenda o absolutismo do título de crédito, ou, como aponta a doutrina, sua independência.

quando nossa lei fala em autonomia e independência, não incidiu em redundância: a palavra autonomia foi empregada para traduzir a distinção entre a obrigação resultante da declaração cambial (a obrigação cartular) e a decorrente da relação fundamental, da causa determinante daquela declaração (compra e venda, mútuo, desconto etc.). Mesmo inexistente ou insubsistente esta obrigação fundamental – que deu origem ao título ou a sua transmissão – pode ser eficaz a obrigação cartular que, embora conexa, é autônoma em relação àquela. E a palavra independência, no art. 43, refere-se à posição dos diversos obrigados, uns em relação aos outros. Vinculam-se todos solidariamente, obrigam-se todos individualmente pelo aceite e pelo pagamento, não se contaminando nem se invalidando cada obrigação pelos vícios (incapacidade, nulidade, falsidade, falsificação etc.) que possam tornar ineficaz qualquer das outras [17].

A autonomia, sem qualquer dúvida, foi criada em benefício da livre circulação dos títulos. Por isto se diz que, todos que subscrevem um título de crédito, assumem obrigações independentes, distintas das contraídas por outros que, no mesmo título, apuseram as suas assinaturas. Desta forma a obrigação que é assumida em uma letra de câmbio pelo sacador, não se confunde com a do aceitante; a do avalista não depende da dos demais obrigados. Todavia, todos os que a assinam são garantes do pagamento. O consectário lógico, então, é de que, quanto mais o título venha a circular, maior certeza terá o seu dono de receber a quantia nele mencionada no vencimento estipulado, "já que poderá acionar tanto o obrigado principal como qualquer dos demais coobrigados" [18][19].

Do que se expôs, não subsistem dúvidas de que o título de crédito é autônomo. Todavia, caso ocorra a devolução do bem, por exemplo, o valor corresponde a este bem deve ser ressarcido ao emitente do título. O valor deve ser ressarcido, mas este ressarcimento pode se dar por qualquer meio idôneo para restituir as partes ao status quo ante.

Suponha-se que uma pessoa tenha emitido um cheque no valor de R$ 1.000,00 (hum mil reais) em razão da contratação de serviços editoriais. O cheque foi emitido e entregue à gráfica. O serviço, todavia, seria executado após dois meses. Seria executado, mas as partes resolveram distratar o acordado. Um distrato já antevisto no contrato e para o qual não havia qualquer cláusula penal.

No caso proposto, a gráfica recebeu através de um título de crédito a quantia de R$ 1.000,00 (mil reais). Como portadora deste título resolveu fazer uma operação de desconto bancário, transferindo para a instituição financeira o título. Assim, como ocorreu o distrato, a gráfica deverá restituir ao emitente o valor representado pelo título de crédito. Não quer dizer que deva devolver o mesmo cheque. Quer dizer, isto sim, que quantia de igual monta deve ser restituída.

O exemplo trazido à colação deixa claro que o título de crédito tem vida própria, daí ser autônomo. Uma autonomia que se faz clara e redunda em alguns desdobramentos, especialmente a abstração e a inoponibilidade das exceções aos terceiros de boa-fé.

A inoponibilidade das exceções aos terceiros de boa-fé significa que a pessoa obrigada por um título de crédito não pode se recusar em pagar ao portador do título, alegando qualquer relação pessoal. Não poderá alegar porque o terceiro de boa-fé nada tem a ver com a relação de base que ensejou a emissão do título.

Retomando o exemplo, suponhamos que as partes contratantes tenham resolvido pelo distrato e a gráfica não restitua ao emitente o cheque (porque foi negociado) ou o valor por este representado. Do ponto de vista pessoal, melhor dizendo, do ponto de vista do direito civil-obrigacional, a gráfica estará se valendo de um expediente escuso, enriquecendo-se ilicitamente por receber por um serviço que não mais prestará, já que distratato conforme a previsão do termo do negócio jurídico que se realizaria.

Embora a gráfica esteja se valendo de um expediente escuso, é de se dizer que a instituição financeira em que se realizou a operação de desconto nada tem a ver com isto. Desta forma, não poderá o emitente alegar que o serviço foi distratado. Poderá, isto sim, reclamar perdas e danos à gráfica, uma vez que esta recebeu por um serviço que não foi prestado.

O princípio da autonomia [20] – e o desdobramento natural a que este aduz, o preceito da inoponibilidade das exceções aos terceiros de boa-fé – é fundamental para que não se negue ao título de crédito característica que lhe é essencial, notadamente a negocialidade. Os títulos de crédito – como vem sendo dito – são fundamentais por facilitarem a circulação de riquezas. Uma circulação que restaria mitigada se se facultasse ao emitente alegar a inoponibilidade das exceções aos terceiros de boa-fé.

A inoponibilidade das exceções aos terceiros de boa-fé, é de se dizer, visa a garantir que terceiros não sejam prejudicados por relações de direito material encaminhadas de modo inadequado. Isto não quer dizer, contudo, que a gráfica possa depositar em sua própria conta o cheque recebido e, uma vez sem fundos, proceda ao protesto de título ou, ainda, à execução do mesmo. Formalmente ela até pode fazer isto, mas não nos parece restar dúvida de que tal prática iria de encontro ao dever de boa-fé objetiva. Uma deslealdade que o emitente poderia alegar sem maiores questionamentos.

É interessante notar, então, que, caso o título não tenha circulado, o devedor poderá se opor a seu pagamento por exceções pessoais, já que, por mais abstrato que o título seja, ele guarda consonância com o mundo real. Por uma opção sistêmica esta consonância com o mundo real não pode ser reclamada em relação a terceiros de boa-fé, mas, em relação às partes originárias, não resta dúvida de que a pessoalidade possa ser alegada.

A inoponibilidade das exceções aos terceiros de boa-fé se coaduna com a chamada abstração, também apontada pela doutrina como decorrência do princípio da autonomia. Abstração, bem entendida, aponta que os direitos decorrentes do título independem do negócio que deu origem ao seu nascimento. Uma independência que não é absoluta e só se justifica quando o mesmo se encontre circulando, em mãos de possuidor de boa-fé.

1.3 TÍTULO DE CRÉDITO: CARACTERÍSTICAS FUNDAMENTAIS

De modo predominante tem sido dito por nossos doutrinadores [21] [22] que três são as características que distinguem os títulos de crédito dos demais documentos que representam direitos e obrigações. Primeiramente o fato de estes se referirem unicamente a relações creditícias. Nesta linha são títulos eminentemente formais. Em segundo lugar se destaca a facilidade na cobrança do crédito em juízo, visto que são títulos executivos extrajudiciais. Em terceiro plano se aponta a facilidade de circulação, fator que propicia a possibilidade de negociação do direito que estes títulos representam.

A noção de possibilidade de circulação é essencial para se compreender os títulos de crédito. É na circulação, aliás, que se percebe o grande diferencial destes títulos. Assim, conquanto tenha sido colocada como a terceira característica, é nela que se detecta o ponto de diferenciação, uma vez que um contrato assinado por duas testemunhas, a título de exemplo, pode vir a constituir um título executivo extrajudicial e por isto ser executado, mas este contrato não pode circular feito o título de crédito. Este contrato, por outro lado, não fica adstrito a relações de natureza creditícia, podendo contemplar qualquer relação jurídica de fundo, como um negócio jurídico envolvendo alugueres.

Visto que é na circulação que se detecta o ponto nevrálgico dos títulos de crédito, é de se dizer acerca da classificação mais importante a contemplar a matéria: a classificação elaborada a partir de sua circulação.

Quanto à circulação os títulos de crédito são: a) ao portador [23]; b) nominativos; e, c) à ordem. Os títulos ao portador são os que não expressam o nome da pessoa beneficiada. Como não trazem no seu bojo o nome do beneficiário, apresentam uma destacada facilidade na circulação, já que a titularidade se transfere por simples tradição. Assim, a pessoa a portar o título será presumida a beneficiária do mesmo.

Vistos os títulos ao portador, chega-se aos nominativos, marcados por trazerem em si o nome do beneficiário. Como possuem o nome do beneficiário, só podem ser transferidos mediante endosso [24], neste caso, endosso em preto [25]. São diferentes dos títulos à ordem exatamente por isto. Ambos são transferíveis por endosso, mas os títulos à ordem não impõem a necessidade do endosso em preto.

Vista a circulação, os títulos de crédito podem ser classificados quanto à origem do negócio subjacente. Nesta linha são abstratos ou causais.

Nos títulos causais, como o nome aduz, há conexão com a relação de direito material, mas, sobretudo, determinação legal no sentido de que sejam assim nominados. Desta forma, conquanto haja quem entenda os títulos causais como decorrentes de uma causa determinada, que vincularia o negócio subjacente que lhe deu vida, caso da duplicata mercantil, é de se dizer, e fazemos isto com Newton de Lucca [26], que o título de crédito somente será causal se a lei assim o determinar. Não basta, dessa forma, que a causa esteja mencionada no título: faz-se necessário que haja previsão em lei da sua vinculação ao negócio jurídico subjacente. Por outro lado, falando-se em títulos abstratos, cuja relação fundamental não emerge, resta mais claro se visualizar o título de crédito, já que a abstração é a regra para os títulos cambiários e cambiariformes.

Avançando sobre as possíveis classificações dos títulos de crédito, pode se dizer que quanto ao conteúdo da declaração cartular estes são "propriamente ditos", "impropriamente ditos" e "impróprios" [27].

Os títulos de crédito propriamente dito atestam uma operação de crédito, caso [28] das letras de câmbio, notas promissórias, duplicatas mercantis e letras hipotecárias. Os impropriamente ditos permitem a livre disposição de certas mercadorias (caso do conhecimento de depósito e de carga) e a retirada pelo emissor, em nome próprio ou de terceiro, da totalidade ou parcialidade de fundos disponíveis do comerciante. São considerados títulos de crédito impropriamente ditos, ainda, o complexo de direitos conexos à qualidade de sócio, representado por frações ideal do capital social, de que decorre o direito de o credor exigir dividendos à época devida.

Há, ainda, outra classificações, como a que aduz a existência de títulos principais [29] e acessórios [30], individuais [31] e em massa [32], simples [33] e complexos [34], completos [35] e incompletos [36], públicos [37] e privados [38], e, finalmente, absolutos [39] e relativos [40]. Tais classificações, contudo, não agregam maiores elementos ao que se quer discutir de modo detido: a inoponibilidade das exceções pessoais. Por esta razão, não se pretende esgotar o conteúdo destas disposições, motivo de as considerações – breves, é de se dizer – terem sido apostas em notas.

Sobre os autores
Alessandro Marques de Siqueira

Mestrando em Direito Constitucional pela UNESA. Professor da Escola de Administração Judiciária do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Professor convidado da Pós-Graduação na Universidade Cândido Mendes em parceria com a Escola Superior de Advocacia da OAB/RJ na cidade de Petrópolis. Associado ao CONPEDI - Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito. Bacharel em Direito pela Universidade Católica de Petrópolis.

Joana Sarmento de Matos

Juíza de Direito em Roraima. Doutoranda em Ciências Jurídicas e Sociais pela UMSA. Professora licenciada de Direito Penal da FACSUM. Pós-Graduada em Direito Público pela UNIGRANRIO. Associada ao CONPEDI - Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito. Bacharel em Direito pelo Instituto Vianna Júnior.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SIQUEIRA, Alessandro Marques; MATOS, Joana Sarmento. A inoponibilidade das exceções pessoais e os títulos de crédito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2665, 18 out. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17621. Acesso em: 22 dez. 2024.

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