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O conceito de família ao longo da história e a obrigação alimentar

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Agenda 17/10/2010 às 13:39

3. ALIMENTOS NA UNIÃO ESTÁVEL

A família continua sendo a base da sociedade, constituída ou não pelo casamento. Este entendimento parece ser o único plausível dentro de qualquer interpretação que se faça do preceito constitucional insculpido no artigo 226 e parágrafos. O encampamento constitucional decorre do observar das sensíveis transformações de aspectos sociais ligados à moral, aos costumes, à solidariedade e inter-relacionamento humanos.

Com o advento da Constituição de 1988, um neologismo surgiu no mundo jurídico. É sabido que as palavras união e estável há muito integram o idioma português, mas a primazia de significar entidade familiar, constituída por um homem e uma mulher, é devida ao legislador constituinte brasileiro. A postura do legislador de 1988, na verdade, foi uma conduta de reconhecimento de uma relação que, de fato, foi sempre corriqueira. Certamente, ainda continua sendo uma união de fato, mas uma união tutelada pelo direito, eis que, como anteriormente dito, o bem jurídico a ser tutelado deixou de ser o instituto do casamento para ser o instituto da família. O casamento deixa de ser a única forma de constituição desta.

Passados seis anos desde a promulgação da Constituição brasileira, em 29 de dezembro de 1994, foi sancionada a Lei n. 8.971, por muitos chamada de o "Estatuto dos Concubinos" [89], vindo esta a regular o direito dos companheiros a alimentos e à sucessão. Tratou restritamente dos alimentos e da sucessão entre os companheiros.

Em razão da regulamentação específica apontada pela lei de 1994, a necessidade da elaboração de outra, mais ampla, se tornou tão contumaz que, já em 1996, emergiu no ordenamento jurídico brasileiro a Lei da União Estável, regulamentando o § 3º do art. 226 da Constituição Federal.

Em 2003, quando ainda não haviam se assentado na doutrina e na jurisprudência os apontamentos a respeito das mencionadas leis, entrou em vigor o atual Código Civil, trazendo consigo novas disposições a respeito da união estável, inclusive na seara dos alimentos. Parece-nos, numa análise primeira, que este não teria revogado as tais leis, uma vez que aquelas tratam de matérias específicas e em grau de especialidade. Contudo, parece também razoável que, no que se mostrarem incompatíveis com a nova ordem civil, deverão ser interpretadas com vistas à nova sistemática legal.

A união de fato, agora nominada união estável, assim como qualquer união, também pode ser desfeita. Neste contexto, cabe fazer apontamentos quanto ao modo de extinção desta, eis que a Lei da União Estável se vale do vocábulo rescisão, enquanto o NCC chama a extinção, simplesmente, de dissolução. O legislador do CC valeu-se do vocábulo genérico, ao passo que o legislador de 1996 valeu-se do termo rescisão, termo específico para designar a quebra de um contrato na esfera civil por culpa de um dos contratantes. Tecnicamente, o uso deste vocábulo induz ao pensamento de que a união estável seria um negócio jurídico, condição que não nos parece assumir, uma vez que nesta, assim como no casamento, existem determinadas questões que são chamadas de ordem pública, portanto inafastáveis pela vontade das partes. Assim, tendo caráter de ato jurídico, nos parece que a melhor nomenclatura para designar o fim da união estável seria dissolução, embora seja sabido que este termo é genérico. Quanto à morte de um dos companheiros, é evidente que esta também será determinante para o fim da relação.

Desta dissolução certamente alguns direitos poderão nascer, dentre estes o direito à percepção de alimentos, tema que interessa diretamente ao presente estudo.

3.1. OCORRÊNCIA, PRESSUPOSTOS E CARACTERÍSTICAS

A associação de pessoas de sexos distintos constitui união estável desde que estes convivam de forma duradoura, pública, contínua, com o objetivo de constituir família [90] e como se casados fossem. Tem-se ainda que desta relação devem emanar, iguais e mutuamente, direitos e deveres de respeito, consideração, assistência moral e material, guarda, sustento e educação dos filhos comuns [91]. O elemento fundamental para a configuração da união estável é o volitivo.

Mesmo antes das Leis 8.971/94 e 9.278/96 o Judiciário já se via abarrotado de demandas fundadas em concubinato. Pleiteava-se não a prestação de alimentos, ou o partilhamento dos bens comuns, pois tais situações acarretariam a chamada carência de ação, conhecida no processo civil quando não estão aglutinados na mesma demanda a possibilidade jurídica do pedido, a legitimidade ad causam e o interesse de agir, este devendo ser visto sob o prisma da necessidade e da adequação. Assim, o que se pleiteava comumente era a "indenização por serviços domésticos", como se percebe no acordão do STJ. Cabe aqui salientar que, mesmo já estando em vigor as leis supracitadas, tratando do tema em caráter especial, aplicou-se a este caso as regras dos negócios jurídicos, eis que a premissa do tempus regit actum foi observada, como se percebe da ementa abaixo:

"Familia. Concubinato. Serviços Domésticos. Indenização. Tem a concubina direito a pretensão postulada de receber indenização pelos serviços prestados ao companheiro durante o periodo de vida em comum. Recurso conhecido e provido."

STJ, Recurso Especial 1994/0027645-1, Data da Decisão 25/11/1997, QUARTA TURMA" [92]. (destacou-se)

A jurisprudência admitia indenizáveis os serviços prestados pela concubina ao amásio durante o período de vida em comum, mas isso em casos especiais, quando comprovadamente excepcionais os préstimos, com decisivos reflexos comerciais e sociais, perfeitamente destacáveis dos decorrentes do mero concubinato em si. "Tudo para não se consagrar o locupletamento indevido de um dos companheiros com o lavor do outro." [93]

Este posicionamento, todavia, no sentido de se indenizar os conviventes, começou a ser questionado, tendo o professor Washington de Barros Monteiro [94] chegado a afirmar que este tratamento colocaria o concubinato em posição jurídica mais vantajosa que a do próprio matrimônio.

O novo Código Civil [95] instituiu que, na separação judicial litigiosa, sendo um dos cônjuges inocente e desprovido de recursos, prestar-lhe-á o outro a pensão alimentícia que o juiz fixar, obedecidos aos critérios estabelecidos no art. 1.694, no que concerne à díade necessidade/possibilidade.

Observou ainda, no caput do artigo 1.704 [96], que, se um dos cônjuges separados judicialmente vier a necessitar de alimentos, será o outro obrigado a prestá-los mediante pensão a ser fixada pelo juiz, caso não tenha sido declarado culpado na ação de separação judicial. O parágrafo único ainda ressalvou que, "se o cônjuge declarado culpado vier a necessitar de alimentos, e não tiver parentes em condições de prestá-los, nem aptidão para o trabalho, o outro cônjuge será obrigado a assegurá-los, fixando o juiz o valor indispensável à sobrevivência."

Quanto aos companheiros, estes podem pôr fim à união estável sem que se discuta culpa, podendo, em sede de acordo, tratar dos alimentos, situação onde não. Ademais a culpa só pode ser discutida em juízo quando da instrução do processo.

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No que concerne aos alimentos fixados judicialmente, em sede de união estável, não bastaria, segundo o professor Villaça, o conjugar da díade necessidade/possibilidade para o impor da obrigação via jurisdição. Dentro desta seara cabe trazer neste momento os apontamentos deste professor, onde lemos que:

"Desse modo, durante a união, os concubinos devem-se, mutuamente, alimentos. Após a ruptura da sociedade concubinária, serão eles devidos, se houver culpa, devendo o culpado pagar ao inocente alimentos, se destes necessitar. É expresso o art. 7º ao assentar que cuida de dissolução da União Estável, por rescisão, que não existe sem culpa." [97] (destacou-se)

Esta posição, embora seja defensável, dentro da sistemática introduzida pelo novo código civil, nos parece que, não mais podemos sustentar que a culpa é pressuposto para o surgimento da obrigação alimentar, como se conclui da leitura do artigo 1694, § 2º.

Por outro lado, temos de frisar que a culpa encontrada no artigo 1704 não pode ser estendida aos companheiros. Assim sendo, o companheiro culpado pela dissolução da sociedade, não pode vir a pleitear alimentos, uma vez que o artigo 1704 trata especificamente da questão dos cônjuges. Portanto, sendo aferida a culpa na dissolução judicial, o companheiro inocente poderia se valer da decisão como meio de defesa, no sentido de se eximir de pagar alimentos ao companheiro culpado, uma vez demandado.

Luiz Augusto Gomes Varjão sintetiza que:

"A obrigação entre os companheiros decorre do dever de assistência, que é obrigação de fazer. Esse dever, após a dissolução da união estável, transforma-se, em razão dos vínculos de socorro que é obrigação de dar. Não pode exigir assistência material quem não foi solidário, isto é, não teve responsabilidade mútua ou interesse recíproco. Dessa forma, somente o companheiro não culpado pela dissolução da União Estável pode, em princípio, reclamar do outro pensão alimentícia." [98] (destacou-se)

Pode-se dizer desta forma que, se houve culpa pela dissolução, certamente houve violação de um dever legal atinente aos deveres de convivência. Assim, o companheiro inocente não poderia vir a ser responsabilizado a pagar alimentos, como veremos no tópico 3.4.

3.2. A CONSTITUIÇÃO DE 1988 E A UNIÃO ESTÁVEL

A Constituição Federal de 1988, em seu art. 226, § 3º, reconheceu, para efeito de proteção do Estado, a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, e nesse efeito, instituiu, inclusive, norma programática no sentido de a lei facilitar sua conversão em casamento.

No texto constitucional, a família continua sendo a base da sociedade, mas independente de casamento. Através dela, o indivíduo se insere na sociedade, adquirindo as condições necessárias ao convívio harmonioso em seu grupo.

O preceituado em sede constitucional, na verdade, legitimou uma prática social aceitável: a da existência de uniões livres, com duração considerável e estabilidade afetiva. Tem-se que entender que este preceito não veio dar proteção jurídica às relações adulterinas. A atual Constituição, sensível à dinâmica da vida humana e atenta à necessidade de adaptação das normas jurídicas à nova realidade social, elevou a união estável existente entre o homem e a mulher ao status de família, passando a ter, este tipo de relacionamento, uma consideração maior pelo legislador, evidenciada pela proteção constitucional que lhe foi dispensada. Entretanto, convém ressaltar que a Constituição Federal não promoveu uma equiparação entre casamento e união estável.

O legislador ordinário atendeu ao preceituado na Constituição e regulou tal dispositivo, criando leis infra-constitucionais a fim de tutelar assunto polêmico, estabelecendo precisamente a noção de união estável, a forma de reconhecimento, além de fixar os efeitos dela decorrentes no âmbito do Direito de Família. Assim, foram editadas as Lei n. 8.971/94, que dispõe a respeito do direito dos companheiros à alimentos e à sucessão; e a Lei n. 9.278/96, regulando o § 3º, do art. 226, da Constituição Federal. O instituto constitucional consolidou-se ainda mais com as decisões judiciais, que, embora tenham relutado em reconhecer o caráter sócio-afetivo da relação a princípio, aos poucos foram sedimentando tal entendimento como conditio sine qua non para esta relação.

3.3. OS ALIMENTOS NO PERÍODO POSTERIOR À LEI N. 8.971/94

O artigo 1º da Lei n. 8.971 [99] aponta como pressuposto jurídico à pretensão alimentícia a existência da união estável e a necessidade do credor, chamado alimentado. Cabe frisar, todavia, que esta leitura estrita não abrange a totalidade e as peculiaridades que assume o instituto dos alimentos em matéria de união estável. Além disso, pugna pela situação de pureza [100] da união.

Na hipótese da matéria em tela, irrelevante se mostrará, de um lado, a atual necessidade do pretenso alimentado e, do outro, a possibilidade do alimentante, se aquele foi quem, por culpa sua, deu causa ao fim da relação. Nesta hipótese, o companheiro culpado não teria direito à percepção dos alimentos, tratamento claramente diferente do dispensado aos cônjuges, eis que, na relação conjugal, o cônjuge que deu causa ao fim da sociedade pode, por força do art. 1704, § único, pleitear os alimentos necessários. A culpa, na hipótese conjugal, traria uma restrição ao alimentado, mas não um impedimento.

A lei não parece querer que o alimentando pereça, e por outro lado, também não deseja que o obrigado ao pagamento desfalque sua própria subsistência. Exige-se um equilíbrio entre as condições de um e as possibilidades do outro. Impõe-se o binômio, embora a referida lei tenha mencionado apenas necessidade. Todavia, por interpretação teleológica, nenhuma lei pode impor a alguém prestação de alimentos que sacrifique seu próprio sustento.

Por imperativo legal, se um ex-companheiro alimentando vir a se casar, ou mesmo constituir nova união, perderá direito aos alimentos. Cessada a nova situação, de direito ou de fato, que deu causa ao perdimento do direito alimentício decorrente da extinção da primeira união, não se restaura tal direito [101]. Além disso, aventar a hipótese de restabelecimento de direito feriria o princípio da razoabilidade. Seria o mesmo que admitir que a lei revogada voltasse a vigorar se declarada inconstitucional a que lhe revogou, criando o fenômeno da repristinação. Por força do que dispõe o art. 1º da lei em tela, o direito do alimentado e a obrigação do alimentante perdurarão enquanto não se constituir nova união.

Cumpre observar que a lei em questão fala apenas em nova união. Contudo, uma visão hermenêutica nos informa que ambas as uniões, a estável e a matrimonial, podem ensejar a perda ao direito aos alimentos. O direito alimentar neste caso é temporário, pois cessa quando o beneficiário constituir nova união, seja ou não matrimonial. Não se mostra razoável pugnar pela pretensão do legislador em se referir apenas à nova união estável. Parece-nos que este teria pretendido referir-se às novas uniões, matrimoniais ou não, conclusão também firmada por Caio Mário da Silva Pereira, onde se lê: "A possibilidade de pleiteá-los não é eterna. Os mesmos deverão ser requeridos tão logo consubstanciado o rompimento da vida em comum (...) Quanto ao futuro, a continuidade dos alimentos cessa se o alimentado vier a constituir nova união, ou se provar a desnecessidade por qualquer meio." [102]

Logo, o direito à percepção dos alimentos perdurará enquanto deles necessitar, e puder honrá-los o devedor, e até que não seja constituída nova união, seja matrimonial ou não, quando então cessará automática e definitivamente o direito à prestação alimentícia.

Extinguir-se-á o dever alimentar, enfim, pela morte do alimentante ou do alimentário. A pessoalidade da obrigação alimentícia decorre de sua intransmissibilidade. Do mesmo modo, o caráter personalíssimo do direito impõe seja extinta a obrigação com a verificação do evento morte do alimentando.

Francisco José Cahali pondera: "Nestas condições, o nascimento de filho funciona exclusivamente como um evento suficiente em si mesmo para dispensar o decurso de prazo de convivência fixado na norma, tempo este que seria indispensável à produção dos seus efeitos, mas que não supre a necessidade de comprovação da União Estável." [103]

De todo modo, não-obstante a inexistência de equiparação do casamento à união estável para fim de direito alimentar, tal direito aos companheiros parece inegável, ainda que guarde peculiaridades. A Lei n. 8.971 introduziu o direito aos alimentos entre os companheiros, direito que não se funda no jus sanguinis, nem decorre de parentesco. Resulta do dever de assistência material recíproca.

Acentue-se que:

"É entendimento pacífico na doutrina que o nascimento de filho comum torna dispensável o prazo mínimo de duração da união, mas não a prova de sua estabilidade e seus demais requisitos, isto é, inexistência de impedimentos matrimoniais, coabitação, singularidade, publicidade e affectio maritalis. Não fosse assim, chegar-se-ia ao absurdo de se conceder pensão alimentícia à mulher que tivesse mantido relações sexuais com um homem uma única vez." [104]

E, não-obstante o contido no artigo 1º da Lei n. 8.971/94, se restar comprovado que o companheiro casado estava separado de fato quando da vigência da união estável, e preenchidos os demais requisitos a amparar a concessão de alimentos, pode-se concedê-los em favor do outro companheiro. [105]

3.4. OS ALIMENTOS NO PERÍODO POSTERIOR À LEI N. 9276/96

Em 1996, sobreveio a Lei da União Estável, tratando igualmente da matéria no artigo 7º. Outra confusão se instaurou, porque esta trouxe requisitos mais brandos para o surgimento do direito a alimentos. Não houve mais referência ao estado civil dos companheiros, à existência de prole comum ou à duração mínima dessa união, como também não explicitou se a convivência de fato à margem do casamento em vigor seria protegida.

Washington de Barros Monteiro, entretanto, entende que:

"A Lei n. 9.278/96 não faz menção ao estado civil dos concubinos. Nesse ponto, porém, tem aplicação a Lei n. 8.971/94, que, ao reconhecer direitos sucessórios e alimentos entre os companheiros, determina que sejam solteiros, separados judicialmente, divorciados ou viúvos. Não se compadece com os objetivos da lei que pessoas casadas mantenham duas situações familiares semelhantes e concomitantes, uma sob a proteção do casamento, outra ao amparo da entidade familiar" [106]

E continua o professor: "A luz da Lei n. 9.278/96, não subsiste a exigência de filhos comuns, pois, comprovada a União Estável, em caso de rompimento, exsurge o direito a alimentos, de acordo com as necessidades de quem os pleiteia." [107]

Tendo-se em vista tais ponderações, entendemos que a lei de 1996 não revogou a primeira, no que concerne aos alimentos, entendimento também esposado pelo Superior Tribunal de Justiça, onde lemos que: "A instituição da Lei 9.278/96, que regula o parágrafo 3º do artigo 226 da Constituição Federal (que reconhece a união estável entre homem e mulher como entidade familiar), não revogou o artigo 2º da Lei 8.971/94, que regula o direito de companheiros à herança e alimentos." [108]

No que concerne ao novo Código Civil cabe trazer alguns apontamentos, cuidando para que regras basilares de hermenêutica sejam respeitadas. Neste sentido cabe trazer para a discussão o magistério de Marco Aurélio Sá Vianna:

"Não devemos ter como absoluto o princípio de que uma lei geral nunca derroga uma lei especial, ou vice-versa, porque é possível a incompatibilidade entre a lei geral e a especial, trazendo aquela dispositivo que se choca com esta, na mesma medida em que uma lei especial pode se revelar em contradição com uma lei geral. Devemos entender a questão em termos corretos: a generalidade de princípios numa lei geral não cria incompatibilidade com regra de caráter especial. A disposição especial disciplina o caso especial, sem afrontar a norma genérica da lei geral, que, em harmonia, vigorarão simultaneamente." [109]

Com o novo Código Civil, na questão dos alimentos, um problema de ordem sistêmica parece emergir, eis que o legislador previu a possibilidade de o alimentando ter dado causa à sua necessidade quando determinou que os alimentos serão apenas os indispensáveis à subsistência quando resultar de culpa de quem os pleiteia. Senão vejamos:

"Art. 1.694. Podem os parentes, os cônjuges ou companheiros pedir uns aos outros os alimentos de que necessitem para viver de modo compatível com a sua condição social, inclusive para atender às necessidades de sua educação.

§ 1º Os alimentos devem ser fixados na proporção das necessidades do reclamante e dos recursos da pessoa obrigada.

§ 2º Os alimentos serão apenas os indispensáveis à subsistência, quando a situação de necessidade resultar de culpa de quem os pleiteia." (destacou-se)

Mas de que culpa trata esse parágrafo segundo?

O professor Norberto Ungaretti, desembargador do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, responde esta indagação com bastante precisão, quando consigna que:

"Note-se que a culpa há de estar ligada à situação de necessidade, numa relação de causa e efeito, clara e expressamente estabelecida pelo Código. Seria o caso, por exemplo, da pessoa que abandonou injustificadamente o emprego de que retirava o seu sustento, ou foi demitida por justa causa, ou até mesmo, simplesmente, não quer trabalhar. Ela está necessitada de alimentos, mas esta necessidade decorre de sua culpa. (...) o legislador está premiando a culpa, o que é um contra-senso." [110]

A culpa prevista no artigo 1694, § 2º, não se confunde com a declaração de culpa insculpida no artigo 1704, parágrafo único, uma vez que neste está expresso que: "se o cônjuge declarado culpado vier a necessitar de alimentos, e não tiver parentes em condições de prestá-los, nem aptidão para o trabalho, o outro cônjuge será obrigado a assegurá-lo, fixando o juiz o valor indispensável à sobrevivência". Neste artigo a referência de culpa é no sentido de ter havido descumprimento de um dever conjugal como determinante do fim desta sociedade, o que, frise-se, não se confunde com o rompimento do vínculo conjugal, nem mesmo com a culpa lato senso encontrada no artigo 1694 onde, inclusive o companheiro, pode vir a ser alimentando, mesmo tendo sido causador do estado de necessidade.

Por este raciocínio o companheiro que pediu demissão pode vir a pleitear alimentos, embora o estado de necessidade decorra de sua deliberação. Contudo, se este for responsável por rescindir o companheirismo ao descumprir uma das regras de convivência, e, isto implique em necessidade, não poderia se valer do preceituado no mesmo parágrafo segundo.

O apontamento do parágrafo anterior se baseia na leitura sistemática do artigo 1704 conjugado com o artigo 1694. Naquele, o legislador tratando especificamente do rompimento da sociedade conjugal por culpa de um dos cônjuges, previu a possibilidade de que este possa figurar numa ação de alimentos como alimentando, o que entendemos não poder ser estendido à união estável.

Considerando que a culpa prevista no artigo 1704 não está contida no artigo 1694, sob pena de não se justificar a existência daquele, entendemos que o companheiro culpado pela rescisão da sociedade de fato, não pode se valer de uma ação de alimentos, mesmo que esta rescisão implique em necessidade. O dever de assistência familiar não pode ser estendido na hipótese de rompimento de todos os laços. Ademais, a referência a cônjuge do artigo 1704 "faz supor que se trate de situação passível de ocorrer quando ainda há casamento, porque se não há mais casamento não há falar em cônjuge" [111], mas sim ex-cônjuge. Como o dispositivo fala em "cônjuge declarado culpado", se entende que a hipótese somente pode verificar-se estando os cônjuges separados judicialmente, em virtude de sentença proferida em ação de separação litigiosa, mas antes do divórcio.

Este artigo afronta a máxima nemo auditur propriam turpitidinem allegans, que em português é entendida como a premissa de que ninguém pode alegar a própria torpeza em seu benefício, brocardo que é verdadeiro princípio geral de direito desde o império romano, mas que parece ter sido esquecido pelo legislador ao tratar da problemática dos alimentos, no artigo 1694, § 2º, mas principalmente no artigo 1704, parágrafo único, sendo certo que este último não se estende à problemática do companheirismo.

Assim, para a seara da união estável, o novo Código Civil inova ao prever que o companheiro culpado pela causa de sua necessidade venha se tornar alimentando, o que entendemos não se estender à culpa pela rescisão do companheirismo por inobservância dos deveres de respeito e consideração mútuos, eis que o código é omisso ao tratar desta, embora reserve um artigo para tratar de culpa pelo fim da sociedade conjugal.

Sobre o autor
Alessandro Marques de Siqueira

Mestrando em Direito Constitucional pela UNESA. Professor da Escola de Administração Judiciária do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Professor convidado da Pós-Graduação na Universidade Cândido Mendes em parceria com a Escola Superior de Advocacia da OAB/RJ na cidade de Petrópolis. Associado ao CONPEDI - Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito. Bacharel em Direito pela Universidade Católica de Petrópolis.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SIQUEIRA, Alessandro Marques. O conceito de família ao longo da história e a obrigação alimentar. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2664, 17 out. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17628. Acesso em: 24 nov. 2024.

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