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Sistema processual penal brasileiro atual.

Análise constitucional da "emendatio" e "mutatio libelli"

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Agenda 29/10/2010 às 14:01

5 EMENDATIO E MUTATIO LIBELLI

O Código de Processo Penal vigente no país teve sua elaboração realizada em período anterior ao da atual Constituição, conhecida como Constituição Cidadã, período no qual ainda não haviam sido firmadas as bases da democracia e dos direitos e garantias individuais tão estimados e discutidos em nossa contemporaneidade. Portanto, não é de se estranhar que a Lei de Ritos Penais traga em seu texto mecanismos que não se adéquam ao atual sistema acusatório consagrado na Constituição de 1988. É exemplo não somente o inquérito policial sobre o qual tratou-se em ponto supra, que sempre é mencionado pelos autores como herança de um período inquisitório, mas existem outros resquícios do sistema autoritário que permeia a ideologia e os valores presentes na lei processual penal. Dentre esses resquícios estão, para alguns, os institutos da emendatio e mutatio libelli que vinham sendo alvo de duras críticas levando à elaboração no ano de 2008 da Lei [54] que modificou a realização da mudança da acusação e procurou esclarecer pontos controvertidos nos citados institutos na tentativa de amoldá-los às determinações da Constituição Federal de 1988.

A partir de agora será tratada a forma de realização das adequações entre acusação e capitulação jurídica do tipo penal que se fazem por meio da emenda à acusação ou através da mudança, da alteração dos fatos formadores da acusação.

A emendatio libelli (do latim, emendatio, emenda, e libelli, acusação) tem amparo em especial no principio de direito processual penal jura novit curia (o juiz conhece o direito) e no brocardo narra mihi factum dabo tibi jus (narra-me o fato e te darei o direito). Estas expressões indicam uma autonomia do julgador ao proferir suas decisões. Considera-se assim que o réu defende-se dos fatos narrados na peça acusatória e não da capitulação dada ao crime.

Outro princípio que embasa não somente a emenda à acusação como também sua modificação é o denominado princípio da correlação, princípio da congruência ou ne eat judex ultra petita partium, assim definido por Tourinho Filho:

Iniciada a ação, quer no cível, quer no penal, fixam-se os contornos da res in judictio deducta, de sorte que o juiz deve pronunciar-se sobre aquilo que lhe foi pedido, que foi exposto na inicial pela parte. Daí "se segue que ao juiz não se permite pronunciar-se sobre, senão sobre o pedido e nos limites do pedido do autor e sobre as exceções e nos limites das exceções deduzidas pelo réu". Quer dizer então que do princípio do ne procedat judex officio, ou como dizem os alemães, do princípio do Wo kein Ankläger ist, Da ist auch kein Richter, (onde não há acusador não há juiz) decorre uma regra muito importante, de aplicação tanto no cível como no penal: ne eat judex ultra petita partium, isto é, o juiz não pode dar mais do que foi pedido, não pode decidir sobre o que não foi solicitado. [55]

Como explicitado, é necessário que àquilo que consta da acusação corresponda a resposta jurisdicional, ainda que denegando-a, o que garante o exercício do contraditório e da ampla defesa e da pretensão da parte acusadora. De modo sintético, mais esclarecedor, ensina Bonfim acerca do princípio da correlação:

Dessa forma, formalmente correta é a sentença prolatada em em harmonia com as provas efetuadas, dentro do processo, com respeito ao que foi suscitado ou postulado pelas partes, na medida em que confere segurança às mesmas, sem a qual o processo penal desapareceria por desintegração de seus elementos fundamentadores.

Como reflexo dessas características, a sentença deve abranger todos os aspectos da lide penal, detendo-se, por outro lado, estritamente nesses aspectos, segundo o que tiver contido nos autos. O conteúdo da decisão final do juiz, dessarte, corresponde a uma resposta completa e suficiente àquilo que expuserem e requererem as partes. Esse o princípio da correlação entre a acusação e a sentença. [56]

Em respeito ao princípio da correlação ou da congruência, o legislador previu formas de tornar os acontecimentos descritos na acusação adequados à decisão final, encontradas nos artigos 383 e 384 da Lei Formal Penal [57] que, a seguir serão discorridos.

A emenda à acusação é prevista no artigo 383, caput do Código de Processo Penal, que assim prescreve: "O juiz, sem modificar a descrição do fato contida na denúncia ou queixa, poderá atribuir-lhe definição jurídica diversa, ainda que, em conseqüência, tenha de aplicar pena mais grave." [58] Tal ocorre se o ofendido ou o órgão do ministério público descreve um fato na acusação dando-lhe classificação jurídica diversa da constante na norma de direito substancial penal. Conhecendo o juiz o ordenamento jurídico, poderá corrigir o equívoco cometido pelo acusador, desde que não altere os fatos apontados na acusação.

Como exemplo de ocorrência de cabimento da emenda à acusação pode-se citar: o acusador diz que o réu teria usado uma arma para ameaçar a vítima, subtraindo-lhe seus pertences, todavia, define o crime como sendo furto. Como o réu se defende não da rubrica dada pela lei ao fato, mas sim dos fatos imputados, considera-se que o juiz poderia, sem afronta à Constituição e ao sistema acusatório, desclassificar o crime e defini-lo como prescreve a lei: roubo. Não estaria aí o órgão judicial interferindo na acusação e, portanto, em função estranha à sua atribuição no processo.

Comentando o objeto do processo penal e, por conseguinte da defesa do réu, assim doutrina Rangel:

O objeto do processo é um consectário lógico do sistema acusatório, pois refere-se aos "fatos descritos na acusação" os quais o juiz não poderia conhecer se não houvesse provocação da parte autora, no nosso caso, o Ministério Público.

O fato que serve como suporte do objeto do processo não pode ser confundido com o artigo de lei, ou seja, com um certo tipo legal de crime, mas sim, como um acontecimento histórico da vida, como um fato ocorrido no mundo dos homens que recebe ou não do ordenamento jurídico, relevância penal. [59]

Destaque-se que o ato judicial independe da natureza da ação (pública ou privada), pois o art. 383 menciona denúncia ou queixa e pode mesmo ser aplicada pena mais elevada do que a indicada na acusação equivocada. Além disso, os parágrafos 1º e 2º do artigo 383 [60] determinam outras medidas a serem tomadas em virtude da alteração da pena no que diz respeito à possibilidade de suspensão condicional do processo, aplicando-se o disposto no art. 89 da lei dos juizados especiais [61] (1º) e declinando da competência se esta passar a ser de outro juízo (2º). O ato é realizado independentemente de oitiva da defesa. Segundo o artigo citado, é mais um fator a corroborar o argumento de que o réu se defende dos fatos e não da tipificação dada a eles.

A emendatio libelli é possível, ainda que em segunda estância, não configurando supressão, pois o réu se defendera dos fatos na instância inicial. ressalva-se a aplicação de pena mais grave quando o recurso for exclusivamente da defesa, em função da proibição da reformatio in pejus. Assim, dispõe o artigo 617 do Código de Processo Penal: "O tribunal, câmara ou turma atenderá em suas decisões ao disposto nos artigos 383, 386 e 387, no que for aplicável, não podendo, porem, ser agravada a pena, quando somente o réu houver apelado da sentença." [62]

As alterações postas pela lei 11.719/2008 não interferiram na substância do artigo 383, servindo apenas para expressar alguns pontos de modo expresso e claro.

Um pouco mais complexa é a mudança da acusação, mutatio libelli, e para melhor entendimento das dimensões da discussão faz-se uma análise partindo da prescrição anterior as alterações trazidas pela lei 11.719/2008.

Previa o artigo 384, caput, e parágrafo único do Código Penal:

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Art. 384. Se o juiz reconhecer a possibilidade de nova definição jurídica do fato, em conseqüência de prova existente nos autos de circunstância elementar, não contida, explícita ou implicitamente, na denúncia ou na queixa, baixará o processo, a fim de que a defesa, no prazo de 8 (oito) dias, fale e, se quiser, produza até três testemunhas.

Parágrafo único. Se houver possibilidade de nova definição jurídica que importe aplicação de pena mais grave, o juiz baixará o processo, a fim de que o Ministério Público possa aditar a denúncia ou queixa, se em virtude desta houver sido instaurado o processo em crime de ação pública, abrindo-se, em seguida, o prazo de 3 (três) dias à defesa, que poderá oferecer prova, arrolando até três testemunhas. [63]

Neste passo, segundo o dispositivo legal, antes da recente alteração dada pela lei nº 11.719/2008, havia duas formas de ser realizada a modificação da acusação. A primeira era a descrita no caput do art. 384 [64], que ocorria quando estava presente nos autos prova da ocorrência de "circunstância elementar" que acarretasse necessidade de nova definição jurídica do fato descrito na acusação, todavia resultando em imposição de pena menos grave ou igual à que constasse da acusação originalmente proposta. O ato de modificação da acusação era feito pelo próprio juiz de ofício, sem abrir nem mesmo prazo para manifestação da defesa. Esse primeiro tipo de modificação da acusação era conhecido como mutatio libelli sem aditamento. Seria o caso, por exemplo, de alguém ser acusado de roubo e, no decorrer da instrução, ser constatada a ausência do elemento grave ameaça, caso em que o juiz poderia condenar por furto sem proceder ao aditamento ou de alguém ser acusado de furto, mas verificar-se que detinha a coisa legitimamente, apenas se recusando a devolvê-la, configurando-se crime de apropriação indébita.

Para muitos, a mutatio libelli sem aditamento, isto é, sem remessa dos autos ao órgão acusador para que este acrescente os elementos constatados durante a instrução, teria os mesmos fundamentos e seria, portanto, hipótese semelhante à do art. 383 do Código de Processo Penal, conforme ministra Tourinho Filho:

[...] cumpri ao juiz tomar aquela providência apontada no caput do art. 384 do CPP e, depois proferir a sentença. Ainda aí não há julgamento ultra petitum, mas aplicação do jura novit cúria.

[...]

As hipóteses do art. 383 e 384, caput, não são, a rigor, de condenação in pejus , como diz Frederico Marques, mas de consagração do princípio do jura novit cúria. (grifado no original). [65]

Não parece que seja assim, dada máxima vênia. Não se podem usar os princípios que justificam a emenda à acusação para permitir a mudança de ofício pelo juiz dos fatos descritos na acusação, de modo a interferir na atividade exclusiva do órgão acusador, em regra, o Ministério Público. Isso porque são situações bem diferentes as previsões do art. 383 e a do art. 384, caput do Código de Processo Penal, pois no caso do art. 383, considerando-se que o réu se defende dos fatos narrados e não da nominação jurídica do fato, o juiz, mantendo os mesmo fatos, apenas corrige a definição jurídica do delito. Os fatos permanecem nos mesmos termos apresentados pela acusação. Não há aí alteração pelo juiz da acusação que em si consiste na imputação fática narrada na peça acusatória. No que diz respeito à modificação de ofício, o raciocínio não é o mesmo. Embora haja também uma nova definição jurídica do delito, esta se dá em decorrência da constatação de que um elemento importante constatado na instrução probatória foi prescindido por ocasião do ajuizamento da exordial da acusação, havendo necessidade não somente de se promover a adequação dos fatos à sentença em nome do princípio da correlação, mas em defesa da sociedade e da aplicação da justiça. Apesar de ser necessária a mudança na acusação, no sistema acusatório, típico de Estados democráticos de Direito, tal ato deveria ser realizado pela parte responsável pela acusação, que se diferencia das demais partes atuantes na relação processual e não pelo órgão que posteriormente julgará. Imaginar o contrário até mesmo soa estranho frente à lógica de um sistema jurídico democrático. Ressalte-se, ainda, outro erro do legislador em prejuízo do contraditório e da ampla defesa: o mandamento legal admitia a existência de uma acusação implícita, o que dificultava sobremaneira a concretização do direito de defesa do réu.

O segundo tipo modificação da acusação era descrito no parágrafo único do art. 384 da Lei de Ritos Penais [66] e consistia na mutatio libelli com aditamento, a qual tem como causa a constatação de existência nos autos de prova da ocorrência de elementos que acarretem nova definição jurídica, cominando-se pena mais gravosa ao réu. Como exemplo, pode-se citar o caso de alguém ser acusado de furto e ser provado durante a instrução que houve emprego de violência contra a pessoa, caso de roubo. Nesta situação o juiz, de acordo com o dispositivo, "baixaria" o processo para que o Ministério Público aditasse a acusação, o que, pelo que estava expresso no artigo, só ocorreria na ação penal pública e, excepcionalmente, na privada. quando promovida subsidiariamente à pública. Apesar de um pouco mais suave do que presente na modificação sem aditamento, persiste nesta modalidade também um ato incompatível com o modelo acusatório. Embora na mutatio com aditamento este seja feito pelo próprio Ministério Público, o órgão assim procede por provocação da autoridade judiciária, consubstanciando-se a mesma interferência do julgador em função processual perante a qual deveria manter-se imparcial.

Havia uma incongruência lógica entre o que previa o caput do art. 384 e seu parágrafo único. No caput, estava prevista uma situação em tese mais benéfica para o réu, se confrontada com o parágrafo único, pois deste resultaria pena mais grave. No entanto, o caput previa um prazo de oito dias para manifestação da defesa. Em contrapartida, o parágrafo único previa apenas três dias e ainda usa a expressão "baixar o processo" para se referir à remessa dos autos para o Ministério Público decretada pelo juiz, como se houvesse hierarquia entre este e o titular da ação penal.

Urge delimitar o sentido da expressão "circunstância elementar" presente no caput do art. 384 que se aplica tanto à mutatio sem aditamento quanto na com aditamento. Demonstrando a imprecisão técnica do legislador, leciona Rangel:

Em primeiro lugar o caput do art. 384 fala em circunstância elementar, termo esse que é impróprio, pois ou é circunstância e, portanto, está envolta de; ou é elementar e, nesse caso está dentro. A elementar mexe na estrutura do crime, ou seja, faz com que desapareça ou surja outro. A elementar funcionário público se for retirada do delito do art. 319 CP (prevaricação) o mesmo desaparece. Entretanto, se for retirada do delito do art. 312 CP (peculato) restará o tipo do art. 168 (apropriação indébita). [67]

Como a própria expressão já indica, elementar é componente essencial do delito, enquanto a circunstância é tudo que circunda, que está em torno do crime, como o modo como foi perpetrado, o período do dia, o instrumento utilizado.

Tal confusão terminológica acarretou dissonantes opiniões no que se refere ao objeto do aditamento. Para alguns autores, o Ministério Público não poderia fazer modificações nos fatos descritos na inicial por via da mutatio libelli; outros entendem que isso é possível. Como demonstração da dúvida, observe-se o que assevera Capez:

Assim, a mutatio libelli implica o surgimento de uma prova nova, desconhecida ao tempo do oferecimento da ação penal, levando a uma readequação dos episódios delituosos relatados na denúncia ou queixa. [...] Por certo, não se cuida de mera alteração na classificação do fato, havendo verdadeira modificação do contexto fático. A acusação mudou, não sendo caso de apenas corrigir a qualificação jurídica. [68]

De início, se poderia concluir, pelas palavras do autor, que ele é favorável à efetiva modificação dos fatos originalmente apresentados por ocasião da propositura da ação penal pelo Ministério Público. Todavia, a confusão terminológica da lei causa contradição também no ensinamento do autor que, mais adiante, expressa posicionamento contrário ao anteriormente transcrito. Em seqüência, Capez afirma que o Ministério Público não poderia acrescentar fatos no aditamento:

O art. 384 não admite que a acusação seja ampliada a novos fatos por meio do aditamento a denúncia (no caso, somente seria possível uma nova ação penal), uma vez que a mutatio accusationis se limita a "nova definição jurídica do fato" constante da imputação inicial.[?!] [69]

Para Mirabete, o Ministério Público somente poderia acrescentar novos fatos à acusação mediante nova ação penal [70]. Tanto Capez como Mirabete parecem ter optado, frente à dúvida suscitada pela exegese do texto legal do art. 384 do Código de Processo Penal, por descartar da expressão o termo "circunstância" e se apegar ao termo "elementar". Daí parte a idéia de que, com o surgimento de nova elementar que, como vimos, é parte componente principal de um delito, surgiria novo delito, que ensejaria nova pretensão jurídica para ser reconhecido pelo julgador. Essa posição continua a ser defendida por Capez, mesmo após a alteração na redação do art. 384 do Código de Processo Penal, em função da lei 11.719/2008, para quem, assim também para Mirabete, no ato do aditamento, o órgão acusador somente deveria dar nova definição jurídica ao crime.

Em sentido contrário aos posicionamentos colacionados, Bonfim propugna pela efetiva modificação dos fatos para coaduná-los aos comprovados durante a instrução processual, ao afirmar:

Demonstrando-se a partir desses elementos de prova fatos novos, não mencionados na denúncia, não apenas será caso de nova qualificação jurídica, mas sim de alteração dos próprios fatos sobre os quais versa o processo, pela inclusão de fato novo, até então não aventado no processo. Diversamente do que ocorre na emendatio libelli, portanto, a própria causa petendi será alterada. Será hipótese, então da chamada mutatio libelli. [71]

A razão parece estar na opinião de Bonfim. Ora, claro está que se fosse caso de simples desclassificação ou apenas de se dar nova definição jurídica do crime, não seria necessário o aditamento, mas simplesmente a emenda da acusação. De fato é dada nova definição jurídica do crime, mas em decorrência da prova de novos fatos, sem os quais, em caso de não ser feita modificação efetiva, não seria observado o princípio da correlação, pois a sentença divergiria da narração e do pedido da acusação. Essa visão da mutatio, embora modificada, é importante para o estudo da nova redação do dispositivo.

Com a Lei que deu nova redação aos institutos [72] foram realizadas reformas pontuais no Código de Processo Penal relativas à suspensão do processo, à citação, à emendatio e à mutatio libelli e a alguns procedimentos.

No que diz respeito à emenda da acusação, não houve, como mencionado em linhas atrás, nenhuma mudança substancial no art. 383 que a disciplina. Apenas buscou-se dar uma redação mais objetiva a seu caput, obstando, expressamente, ao juiz que altere os fatos da acusação e lhe foram também acrescentados dois parágrafos que formalizaram práticas já recorrentes referentes à declinação de competência e à proposta de suspensão condicional do processo.

Modificações relevantes foram introduzidas na disciplina da mutatio libelli, no art. 384 que teve nova redação em seu caput e lhe foram acrescidos cinco parágrafos. Veja-se a nova redação do art. 384 do Código de Processo Penal dada pela nova lei:

Art. 384. Encerrada a instrução probatória, se entender cabível nova definição jurídica do fato, em conseqüência de prova existente nos autos de elemento ou circunstância da infração penal não contida na acusação, o Ministério Público deverá aditar a denúncia ou queixa, no prazo de 5 (cinco) dias, se em virtude desta houver sido instaurado o processo em crime de ação pública, reduzindo-se a termo o aditamento, quando feito oralmente.

§ 1º Não procedendo o órgão do Ministério Público ao aditamento, aplica-se o art. 28 deste Código.

§ 2º Ouvido o defensor do acusado no prazo de 5 (cinco) dias e admitido o aditamento, o juiz, a requerimento de qualquer das partes, designará dia e hora para continuação da audiência, com inquirição de testemunhas, novo interrogatório do acusado, realização de debates e julgamento.

§ 3º Aplicam-se as disposições dos §§ 1º e 2º do art. 383 ao caputdeste artigo.

§ 4º Havendo aditamento, cada parte poderá arrolar até 3 (três) testemunhas, no prazo de 5 (cinco) dias, ficando o juiz, na sentença, adstrito aos termos do aditamento.

§ 5º Não recebido o aditamento, o processo prosseguirá. [73]

Em princípio, houve correção da expressão que designa a causa da modificação da acusação que passou a ser a comprovação durante a instrução criminal da ocorrência de "elemento ou circunstância da infração penal" em lugar de "circunstância elementar". Pela nova redação, fica claro que o motivo a ensejar a mutatio libelli é a constatação de ocorrência de fato secundário, relacionado ao fato principal do tipo, este sim, elementar do tipo penal.

Outra questão importante foi a evolução rumo à conformação com o modelo acusatório, pois, quer a nova definição jurídica resulte em pena menos grave, quer não, sempre haverá aditamento que agora passou a ser requerido pelo Ministério Público e não mais determinado pelo juiz que também não realizará aditamento de ofício. Dá-se, assim, acolhida aos requisitos básicos informadores do sistema acusatório consistente na atribuição de cada função no processo a parte distinta, cabendo tão somente ao órgão ou à parte responsável pela acusação o requerimento do aditamento, preservando-se a imparcialidade do julgador. O dispositivo não menciona mais a possibilidade de uma acusação implícita que constava da antiga redação e afrontava gritantemente o exercício do contraditório e da ampla defesa pelo acusado.

Entretanto, ao se voltarem as atenções para o § 1º do dispositivo legal sob exame [74], percebe-se que, infelizmente, não foram expurgadas completamente da modificação da acusação as más influências do sistema inquisitório. O citado parágrafo determina que, não requerendo o representante do Ministério Público o aditamento da acusação, o juiz tomará a medida prevista no artigo 28 do Código de Processo Penal, cuja redação é:

Se o órgão do Ministério Público, ao invés de apresentar a denúncia, requerer o arquivamento do inquérito policial ou de quais quer peças de informação, o juiz, no caso de considerar improcedentes as razões invocadas, fará remessa do inquérito ou peças de informação ao procurador-geral, e este oferecerá a denúncia, designará outro órgão do Ministério Público para oferecê-la ou insistirá no arquivamento, ao qual só então estará o juiz obrigado a atender. [75]

Mutatis mutandis, se o Ministério Público não requerer o aditamento, o juiz remeterá o processo ao procurador geral para que ele o faça ou designe outro membro do Ministério Público para que este proceda ao aditamento. Persiste ainda a interferência do órgão julgador na acusação em confronto com o modelo acusatório oriundo da Constituição Federal. Somente ao Ministério Público, órgão que detém a titularidade da acusação, cabe avaliar a necessidade ou não de realizar modificações nos fatos presentes na ação penal. Não deve o juiz interferir na função que a Constituição atribuiu privativamente ao Ministério Público, sob pena de afronta às duas principais características do sistema acusatório, de partes ou garantista: exercício das funções no processo por partes distintas; garantias do acusado, tais como a igualdade ou paridade de armas, com o julgamento feito por um juiz imparcial. Ao provocar o aditamento, o juiz está assumindo uma postura em desfavor do acusado, desequilibrando a relação jurídica processual.

Em artigo jurídico publicado logo após a edição da lei 11.719 de 2008, Fudoli, no qual detecta a incongruência do § 1º acrescido pela dita lei ao art. 384 do Código de Processo Penal quando confrontado com o sistema acusatório, esclarece:

No novo § 1º do art. 384, a nova lei previu que, não procedendo o Ministério Público ao aditamento, o juiz aplica o art. 28 do CPP, ou seja, remete os autos ao Procurador-Geral de Justiça (no âmbito da União, à Câmara de Coordenação e Revisão da Ordem Jurídica Criminal do Ministério Público Federal ou do Distrito Federal e Territórios – Lei Complementar n. 75/93), para que o chefe da instituição mantenha a acusação, nos termos postos pelo membro do Ministério Público com atuação na primeira instância, ou para que adite a inicial, ou ainda para que designe outro membro do Ministério Público para fazê-lo. Há, aqui, na aplicação do art. 28 do CPP, ingerência indevida por parte do Juiz – que é [ou deveria ser] órgão imparcial – na atividade da acusação, o que fere o princípio acusatório (separação nítida entre as funções de acusar e julgar), inclusive desequilibrando os pratos da balança em desfavor do réu. De fato, mesmo que atue com a melhor das intenções, com qual isenção o juiz que aplicar o art. 28 em relação ao aditamento da peça acusatória irá posteriormente sentenciar o réu? No mínimo, o juiz que atuar desta forma deve ser considerado impedido de prolatar a sentença. [76]

No mesmo diapasão, se manifesta Bonfim, ao avaliar a possibilidade do juiz provocar o aditamento. Nas palavras do autor:

Pode o juiz provocar o aditamento? Entendemos que não, uma vez que a titularidade da ação penal é privativa do Ministério Público (art. 129, I, da CF), cabendo a ele a iniciativa do aditamento, homenageando-se, assim, o sistema acusatório, que tem bem definidas e separadas as funções de acusar e julgar, atribuídas, portanto, a órgãos distintos. [77]

Portanto, ainda que o Código de Processo Penal apresente dispositivos que afrontem as características do sistema acusatório, tem-se como norma maior do ordenamento jurídico brasileiro a Constituição Federal cujos princípios e normas constitucionais nela consagrados devem ser determinantes para a aplicação do direito, sob pena de inconstitucionalidade, quer dizer, sob pena de agressão aos princípios, valores, garantias, fundamentais à manutenção da vida em sociedade.

Necessário ressaltar uma última observação relativa à modificação da acusação, mutatio libelli, no que diz respeito à possibilidade de ser procedido o aditamento da acusação em segunda instância. A Constituição ampara o monopólio do exercício da jurisdição que é exclusivo do poder judiciário, em seu art. 5º, inciso XXXV [78], ao passo que determina a competência dos órgãos do poder judiciário o que o faz do artigo 92 a 126 [79]. Dispensando a discussão acerca da natureza jurídica do duplo grau de jurisdição, constitui-se princípio constitucional ou simplesmente decorre da disposição e organização dos órgãos do judiciário. É certo que estes órgãos estão estruturados de forma que a cada um é atribuída uma parcela do poder jurisdicional que os torna competentes para julgar determinados casos, não podendo ser prescindido nenhum deles, obedecida na apreciação das lides a seqüência predeterminada no texto constitucional, exceto nos casos de competência originária preestabelecidos na própria norma fundamental. O contrário resultaria em supressão de instância.

Daí decorre que, diferentemente da emendatio libelli, que não modifica a acusação, mas apenas corrige definição jurídica dos fatos descritos, podendo assim ser feita em segunda instância, a mutatio libelli que, como visto, consiste em verdadeira modificação dos fatos descritos na acusação para acrescentar fato elementar comprovado durante a instrução processual, não pode ser realizada em segunda instância, o que pode ser evitada com isso a supressão de instância, visto que os fatos ainda não teriam sido discutidos em primeira instância. Ainda é aplicável a Súmula 453 do Supremo Tribunal Federal [80] que vedava a aplicação do parágrafo único do artigo 384 do Código de Processo Penal, mesmo após a redação ter sido alterada pela lei 11.719/2008 [81].

Sobre o autor
Levy Zend Ferreira da Silva

Advogado atuante nas áreas Trabalhista e sindical, família e sucessões em Teresina/PI

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Levy Zend Ferreira. Sistema processual penal brasileiro atual.: Análise constitucional da "emendatio" e "mutatio libelli". Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2676, 29 out. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17736. Acesso em: 23 dez. 2024.

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