6. Conclusão
Desnecessário advertir que a conclusão é despretensiosa. O tema, de relevante interesse econômico e social, sugere amplo debate crítico, tanto na senda política quanto jurídica, o que se justifica para se precaver quanto ao risco de permitir o livre curso de interpretação hegemônica de notório viés antidemocrático.
As premissas que orientaram o presente artigo autorizam concluir que as Súmulas nº 436 e 446 editadas do Superior Tribunal de Justiça não se compatibiliza com a ratio juris subjacente à Súmula Vinculante nº 24 expedida pelo Supremo Tribunal Federal, cuja eficácia, sob perspectiva construtiva, assegura ao sujeito passivo o direito de tomar ciência, pela notificação, acerca dos contornos definitivos do crédito tributário, antes de configurar a ilicitude (crime e inaimplência), que enseja persecução (criminal e creditícia) na via processual (ação penal e execução fiscal) pelo Estado (Ministério Público e Administração Tributária).
A declaração formalizada no regime de lançamento por homologação não se identifica, tampouco se assemelha, a uma autêntica confissão de dívida não paga; de tal sorte que corrompe o sistema constitucional qualquer normatização neste sentido.
Portanto, é ilegítima a interpretação que autoriza à Administração Fazendária inscrever em dívida ativa e promover atos de execução com apoio apenas na declaração prestada pelo próprio obrigado nas operações sujeitas ao lançamento por homologação.
É ilegítima porque refratária aos postulados diretores e reitores que definem o sentimento constitucional de pertença a uma comunidade de princípios democráticos, capaz de prefigurar um sistema normativo justo e garantista, franqueador de oportunidades de defesa e recurso, racionalmente exercidos no âmbito de um processo argumentativo que se instaura esfera administrativa do Estado.
Garantir a vontade constitucional é preservar, em última análise, a vontade mais elementar do povo, que legitima a atuação estatal. A exigência idealizante do Estado Moderno reclama do Poder Público que se capacite em ordem a conferir ao administrado os direitos inerentes à república democrática [39].
Compete à Administração Tributária instruir os agentes fazendários para sempre notificar o sujeito passivo da obrigação tributária, diligência pela qual se preservará contra responsabilidade funcional em virtude da decadência consumada pela omissão de constituir definitivamente o crédito pretendido.
É preciso com todas as forças exercer prática social compatível com o paradigma constitucional contemporâneo. O despertar da consciência democrática tarda na comunidade brasileira.
Notas
- As estruturas organizacionais do período histórico antecedente orbitavam em torno de suposições metafísicas da fundamentação do poder. Neste cenário despótico, os súditos, componentes da quase totalidade da população, permaneciam enquadrados em estratos sociais delimitados desde o nascimento, sem a perspectiva de ascensão social, desprovidos de qualquer faculdade de interferência na esfera pública da organização política, sujeitos, além do mais, à elevada e insuportável carga tributária.O professor Menelick de Carvalho Netto, com habitual clareza de ideias, relata o panorama da época: "O direito e a organização política pré-modernos encontravam tradução, em última análise, em um amálgama normativo indiferenciado de religião, direito, moral, tradição e costumes transcendentalmente justificados e que essencialmente não se discerniam. O direito é visto como a coisa devida a alguém, em razão de seu local de nascimento na hierarquia social, tida como absoluta e divinizada nas sociedades de castas, e a justiça realiza-se sobretudo pela sabedoria e pela sensibilidade do aplicador em ‘bem observar’ o princípio da eqüidade tomado como a harmonia requerida pelo tratamento desigual que deveria reconhecer e reproduzir as diferenças, as desigualdades, absolutizadas da tessitura social (a phronesis aristotélica, a servir de modelo para a postura do hermeneuta). O direito, portanto, apresentava-se como ordenamento sucessivo, consagrador dos privilégios de cada casta e facção de casta, reciprocamente excludentes, de normas oriundas da barafunda legislativa imemorial, das tradições, dos usos e dos costumes locais, aplicadas casuisticamente como normas concretas e individuais, e não como um único ordenamento jurídico integrado por normas gerais e abstratas para todos." (A hermenêutica constitucional sob o paradigma do Estado Democrático de Direito. In: Notícia do Direito Brasileiro. Nova Série/organizado por Ronaldo Rebello de Britto Poletti. n. 6 – jul.dez. de 1998 – Brasília: UNB, Faculdade de Direito, 2000, p. 237-238).
- Arauto desta vertente doutrinária, o professor Aurélio Pitanga Seixas Filho, da Universidade Federal Fluminense, sustenta que "[em] direito tributário, a cobrança executiva será alicerçada no documento (acertamento) produzido pelo contribuinte, ou no lançamento tributário, que por definição, como ato administrativo, é produzido unilateralmente (inquisitorialmente) pela autoridade fiscal, razão pela qual a sua eficácia executiva dependerá, preliminarmente, de ser proporcionado direito de defesa ao contribuinte, o que não deve ser confundido com contraditório" (Princípios de direito administrativo tributário. In Revista da EMERJ, v. 10, nº 37, 2007, p. 233).
- Para uma breve consulta, pesquisar em: Paulo de Barros Carvalho (Direito tributário: fundamentos jurídicos da incidência. 2ª ed. rev. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 226); Leandro Paulsen (Crédito tributário: Da noção de lançamento à de formalização. In: Biblioteca Digital Revista Fórum de Direito Tributário - RFDT, ano 5, n. 29, set, 2007); Alexandre Rossato Ávila(Curso de direito tributário. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2009, p. 298); Sergio André Rocha (Constituição do crédito tributário pelo contribuinte. In Revista Dialética de Direito Tributário, nº 151, abr./2008); Francisco Prehn Zavascki (Constituição do crédito tributário pelo sujeito passivo. In: Revista Jurídica Tributária, vol. 1, nº 1, abr./jun. 2008); Aldemário Araújo Castro (Declaração e confissão de dívida tributária realizada pelo sujeito passivo nos tributos submetidos à sistemática de lançamento por homologação. Disponível em: < http://www.aldemario.adv.br/artigo3.htm> Acesso em: 25 abr. 2010); Gilberto Etchaluz Villela (Reflexões em torno dos chamados lançamentos por homologação. Revista da AJURIS, ano XXVII, n. 77, mar., 2000); Brivaldo Pereira dos Santos Júnior (Natureza substancial ou procedimental do lançamento tributário. Revista da AGU, ano VII, n. 18, out./dez., 2008), dentre outros.
- No âmbito da legislação federal, conferir o art. 5º, § 1º, do Decreto-lei 2.124/84 ("O documento que formalizar o cumprimento de obrigação acessória, comunicando a existência de crédito tributário, constituirá confissão de dívida e instrumento hábil e suficiente para a exigência do referido crédito"). Conferir também o art. 1º da Instrução Normativa nº 77/98("Os saldos a pagar, relativos a tributos e contribuições, constantes das declarações de rendimentos das pessoas físicas e jurídicas e da declaração do ITR, quando não quitados nos prazos estabelecidos na legislação, e da DCTF, serão comunicados à Procuradoria da Fazenda Nacional para fins de inscrição como Dívida Ativa da União").
- REsp nº 1.143.094, Rel. Min. Luiz Fux. DJe 01.02.2010; e REsp nº 973.733/SC, Rel. Min. Luiz Fux, DJe 18.09.2009.
- REsp nº 957.682/PE, Rel. Min. Eliana Calmon, DJe 02.04.2009.
- REsp nº 850.423/SP. Rel. Min. Castro Meira. Primeira Seção, DJ 07.02.2008; REsp nº 1.098020/SP. Rel. Min. Eliana Calmon, DJe 29.06.2009.
- EREsp nº 686.479/RJ, Rel. Min. Denise Arruda, DJe 22.09.2008.
- REsp nº 1.101.032/SP, Rel. Min. Benedito Gonçalves, DJe 18.05.2009; REsp nº 789.443/SC, Rel. Min. Castro Meira, DJ de 11.12.2006; REsp nº 898.459/AL, Rel. Min. Eliana Calmon, DJ de 6.11.2008.
- AgRg no REsp nº 981.130/PR, Min. Luiz Fux, DJe 16.09.2009, RET vol. 71, p. 65; Resp. 850.423/SP, Rel. Min. Castro Meira, julgado em 28.11.2007, DJ. 07.02.2008.
- A omissão de pagamento do tributo, declarado ou não, enseja o lançamento de ofício, conforme preconiza Luciano Amaro: "Pois foi exatamente para os casos de não-pagamento do tributo a ser ‘antecipado’ (única situação em que, em rigor, o lançamento do tributo seria necessário, já que, se efetuado corretamente o pagamento, seria indiferente a autoridade praticar ou não o ato expresso de homologação), foi exatamente nesses casos, repetimos, que a jurisprudência, adiante analisada, veio a dizer que o lançamento (obrigatório na letra do Código), é desnecessário. Ou seja, ficou letra morta a previsão expressa no citado art. 149, V, no sentido de que o Fisco deve lançarde ofício, quando verificar omissão do obrigado no que respeita ao cumprimento do dever de pagar. [...] Se o Código não dispensa o lançamento nem à vista do acurado pagamento do tributo, não se poderá supor que vá dispensá-lo em face do mero registro de um fato gerador em documento produzido pelo contribuinte" (Lançamento, essa formalidade! In: Teoria Geral da Obrigação Tributária: estudos em homenagem ao professor José Souto Maior Borges. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 381).
José Souto Maior Borges, de sua parte, preceitua: "Não é por outro motivo que, nesse sentido, poder-se-á entender o lançamento de ofício como um sub-rogado do lançamento por homologação. A hipótese está disciplinada não só pelos referidos par. 2.º e 3.º do art. 150, mas também pelo seu art. 149, V, por decorrência do qual será efetivado o lançamento de ofício quando se comprove ‘omissão’ ou ‘inexatidão’ por parte da pessoa legalmente obrigada, no exercício da atividade sujeita ao ato de lançamento por homologação, ou seja, no âmbito do procedimento do lançamento que antecede ao ato de homologação." (Tratado de direito tributário brasileiro. Forense: Rio de Janeiro, 1981, p. 461).
Não há dúvida que o Código pode ser aperfeiçoado. A disciplina do lançamento pode ser modificada. A sistemática da decadência e da prescrição deve ser simplificada. Porém, não podemos ignorar a lei, nem usar o pretexto de não gostar das soluções dadas pela lei, para fazer o direito que julgamos mais conveniente – sob pena de perdermos o referencial (a lei) que deve pautar o trabalho do aplicador do Direito." (Lançamento..., op. cit., p. 390).
Que as declarações do contribuinte não podem servir de base direta para a extração do título executivo, pressupondo necessariamente a prévia prática do ato administrativo de lançamento, resulta desde logo do artigo 147 do Código Tributário Nacional, segundo o qual ‘o lançamento é efetuado com base na declaração do sujeito passivo ou de terceiro’ [...]. Donde resulta que entre a declaração do contribuinte e a formação do título executivo, pela inscrição da dívida ativa, se interpõe necessariamente, como momento intermédio, um ato administrativo, que é o lançamento. [...] Donde silogisticamente se conclui que, se não há inscrição na dívida tributária sem crédito tributário, e se não há crédito tributário sem lançamento, não pode haver inscrição na dívida sem lançamento prévio, baseado diretamente nas declarações do contribuinte." (A execução fiscal..., op. cit., p. 10-11).