1. Introdução
O êxito do planejamento estatal depende do efetivo ingresso das receitas estimadas no orçamento público. O aporte de recursos financeiros amealhados pela imposição tributária é indispensável à garantia do desenvolvimento econômico e social da Nação. O dever confiado aos cidadãos de contribuir para o progresso em comum remonta às origens das organizações sociais, justificado segundo o matiz ideológico do período histórico correspondente, assumindo, porém, coloração legítima a partir da modernidade [01].
É precisamente neste contexto ideológico do Estado moderno que se insere a modalidade nominada pelo legislador brasileiro de "lançamento por homologação", em cuja sistemática o sujeito passivo (contribuinte ou responsável) assume, por injunção legal, o dever de praticar atos relevantes ao interesse social, típicos de cidadania, na medida em que coopera com a Administração Fazendária na atividade de arrecadar tributos específicos.
O lançamento por homologação, modalidade prestigiada nos três níveis federativos para a maioria e, seguramente, os mais rentáveis tributos incidentes sobre a renda e o consumo (IR, IPI, PIS, COFINS, ICMS, ISS etc.), toma lugar de destaque na pauta política e econômica do País, o que tem acirrado dissidências jurídicas na teoria e na praxis.
O problema que atualmente tem repercutido mais de perto no Estatuto do Contribuinte refere-se à sistemática de cobrança do tributo declarado, mas não pago. A gravidade da questão é sobremodo acentuada ao se constatar, no âmbito de aplicação normativa, o tratamento discrepante a situações rigorosamente idênticas, ao sabor do intérprete, para perplexidade não apenas da comunidade jurídica, mas de toda a sociedade.
Duas correntes trafegam em sentidos opostos: uma que autoriza a Administração Fazendária expedir certidão negativa do débito para ulterior execução do crédito fiscal, tão-logo se verifique a omissão do sujeito passivo no dever de pagar o tributo declarado; e outra que, sob as mesmas circunstâncias, condiciona a persecução do crédito à prévia notificação do contribuinte.
2. Autolançamento
Juristas de elevada envergadura advogam a tese de que o "lançamento" não seria ato privativo da autoridade administrativa ou, assumindo que seja privativo [02], entendem que não seria o único capaz de constituir o crédito tributário, que também ocorreria mercê da atividade ("acertamento") praticada pelo sujeito passivo nas operações sujeitas à homologação. É a corrente que soma a maioria de adeptos na doutrina, acolhida tanto pela legislação tributária quanto pela jurisprudência pátria.
Enfadonho aos propósitos deste artigo divulgar os partidários da corrente doutrinária que vislumbra, nos deveres atribuídos ao sujeito passivo, atividade típica da autoridade administrativa, conferindo-lhes natureza e efeito similar: o de constituir "definitivamente" o crédito tributário [03]. O fato é que o Poder Público não tardou em chancelar a posição que melhor consulta os seus interesses, legislando normas fundadas no pressuposto de que, nas operações condicionadas à homologação, o sujeito passivo formalizaria, no documento fiscal, uma autêntica "confissão de dívida" [04].
O Superior Tribunal de Justiça editou recentemente (DOU de 13.05.2010) as Súmulas n.º 436 ("A entrega de declaração pelo contribuinte reconhecendo débito fiscal constitui o crédito tributário, dispensada qualquer outra providência por parte do fisco") e n.º 446 ("Declarado e não pago o débito tributário pelo contribuinte, é legítima a recusa de expedição de certidão negativa ou positiva com efeito de negativa"). A matéria foi objeto de análise em recursos [05] submetidos ao procedimento representativo de controvérsia, a fim de estabelecer eficácia vinculativa a casos repetitivos (art. 543-C, § 7º, CPC).
Em apertada síntese, o STJ veicula interpretação no sentido de que "[n]os tributos sujeitos a lançamento por homologação, ausente qualquer declaração do contribuinte, o fisco dispõe de cinco anos, a contar do primeiro dia do exercício seguinte àquele em que o lançamento poderia ter sido efetuado, para proceder ao lançamento direto substitutivo a que se refere o art. 149 do CTN, sob pena de decadência".
Mas também deixa claro que "[a] apresentação de Declaração de Débitos e Créditos Tributários Federais – DCTF, de Guia de Informação e Apuração do ICMS – GIA ou de outra declaração semelhante prevista em lei, é modo de constituição do crédito tributário, dispensando-se outra providência por parte do fisco. Nessa hipótese, não há que se falar em decadência em relação aos valores declarados, mas apenas em prescrição do direito à cobrança, cujo termo inicial do prazo quinquenal é o dia útil seguinte ao do vencimento, quando se tornam exigíveis. Pode o fisco, desde então, inscrever o débito em dívida ativa e ajuizar a ação de execução fiscal do valor informado pelo contribuinte. Além disso, a declaração prestada nesses moldes inibe a expedição de certidão negativa do débito e o reconhecimento de denúncia espontânea" [06].
Portanto, o STJ consolidou a premissa segundo a qual "a declaração do contribuinte elide a necessidade da constituição formal do crédito, podendo este ser imediatamente inscrito em dívida ativa, tornando-se exigível, independentemente de qualquer procedimento administrativo ou de notificação ao contribuinte" [07], "não havendo falar em decadência do direito do Fisco de lançar, caracterizando-se, com a inércia da autoridade fazendária, apenas a homologação tácita da apuração anteriormente realizada" [08], "pelo que, desde então, está a Fazenda autorizada a promover a sua cobrança" [09], ou seja, "conta-se da data estipulada como vencimento para o pagamento da obrigação tributária declarada (DCTF, GIA, etc.) o prazo qüinqüenal para o Fisco acioná-lo judicialmente, nos casos dos tributos sujeitos a lançamento por homologação, em que não houve o pagamento antecipado (inexistindo valor a ser homologado, portanto), nem quaisquer das causas suspensivas da exigibilidade do crédito ou interruptivas do prazo prescricional." [10]
O entendimento sufragado nestes termos, muito embora mereça credibilidade em respeito à autoridade intelectual dos que o professam e apesar de calcar raízes na legislação tributária e, inadvertidamente, no escólio jurisprudencial, carece de fundamento legítimo no Código Tributário Nacional e, a fortiori, na Constituição Federal, como adequadamente denuncia a corrente opositora.
3. Lançamento direto substitutivo
A jurisprudência, na forma como assentada, difere situações rigorosamente idênticas, em que se verifica a "falta de pagamento" do crédito derivado do lançamento por homologação.
O critério distintivo repousa na existência, ou não, de "declaração" formalizada em documento fiscal, para se aferir se teria ocorrido, ou não, a "constituição" do crédito tributário pelo sujeito passivo, de modo a autorizar, ou não, a imediata "cobrança executiva", independentemente de "prévia notificação" na esfera administrativa. Ora, o discrímen é arbitrário e despropositado!
O Código Tributário Nacional determina à autoridade administrativa o dever inescusável de diligenciar, de ofício, o lançamento direto substitutivo (art. 149), sempre que o sujeito passivo omitir-se de exercer a atividade de declarar (art. 147) ou de antecipar o pagamento do tributo declarado (art. 150).
No lançamento direto substitutivo, a exigibilidade do crédito fiscal será diligenciada no corpo de um Auto de Infração, constando o valor referente ao principal (corrigido) acrescido dos acessórios (juros e multa), a fim de dimensionar, com precisão, o limite objetivo da pretensão material que o sujeito ativo deduz contra o sujeito passivo [11].
Fácil perceber que o STJversa a cátedra dos que preconizam o emprego, pelo sistema tributário nacional, da disciplina normativa peculiar ao "autolançamento", malgrado o quê estipulado, de maneira expressa, no texto codificado (art. 142).
Prestigiadas vozes condenam o equívoco pretoriano, visto deturpar a ratio juris inerente à voluntas legis, isto é, o sentido normativo subjacente à vontade da lei, ignorando a máxima segundo a qual "interpretação deve ser objectiva, equilibrada, sem paixão, arrojada por vezes, mas não revolucionária, aguda, mas sempre respeitadora da lei." [12]
O Código Tributário Nacional, elaborado no propósito de ministrar garantias ao contribuinte [13], acentua, com vigor, o caráter "privativo" e "obrigatório" do lançamento definitivo, postura pelo qual indigita o claro desejo de fixar interpretação evolutiva sobre o instituto [14], que assumiu moldes jurídicos em meados do século XX, superando o vetusto e já inadequado conceito de "autolançamento"do direito pré-codificado [15]; conceito que o Estado, apoiado pelos Tribunais, insiste em ressuscitar, criando, grosso modo, a figura do lançamento "por confissão" [16], supostamente calcado nas declarações prestadas pelo sujeito passivo, o qual se presumiria notificado do crédito que ele mesmo teria constituído quando lavrou o documento fiscal.
A interpretação adequada do problema sugere análise do sistema principiológico constitucional. Antes, porém, é oportuno sublinhar a sistemática adotada pelo Código Tributário, no que concerne à obrigação tributária [17].
"A obrigação principal surge com a ocorrência do fato gerador" (art. 113, § 1º), assim declarado pelo lançamento (art. 142). Por essa fórmula, o Código abraçou a corrente declarativista, que aponta no ato administrativo a eficácia, não de criar direitos, mas simplesmente o de "remover dúvidas quanto às características e dimensões da obrigação tributária preexistente". [18]
Já "[o] crédito tributário decorre da obrigação principal e tem a mesma natureza desta" (art. 139), apesar de definitivamente "constituído" [19] pelo lançamento, atividade "privativa" e "obrigatória" da autoridade administrativa (art. 142).
Por outra retórica, o CTN estabelece que o crédito, que resulta da relação obrigacional, surge com a ocorrência do fato gerador, mas compete exclusivamente [20] ao agente fiscal definir os seus exatos e definitivos contornos, de molde a exigir (arts. 147 e 149) ou a confirmar (art. 150) o pagamento do tributo, sob pena de extinção do direito creditório pela decadência (art. 172, I, ou art. 150, § 4º).
É importante deixar claro que a mera atividade de "declarar" a obrigação não é ato exclusivo da autoridade administrativa, porque não se confunde com o ato de constituição definitiva do crédito tributário. Nada impede que o próprio sujeito passivo declare os elementos fáticos (art. 147) ou fáticos-jurídicos (art. 150) da obrigação tributária, antecipando, caso for, o pagamento do quanto declarou. Ocorre, porém, que o lançamento é "privativo" e "obrigatório" sempre que atividade da autoridade for a de liquidar definitivamente o crédito (arts. 147 e 149) ou para certificar a quitação da dívida (art. 150), mesmo que tacitamente (art. 150, § 4º).
Tampouco o lançamento é ato-condição para o pagamento do tributo quando a lei o exija antecipadamente, circunstância que também não se confunde com o ato de constituição definitiva do crédito tributário. O fato de o sujeito passivo ter previamente declarado os contornos fáticos-jurídicos da obrigação tributária, mas deixado de pagar o tributo, não desonera o agente fiscal de realizar, de ofício, a atividade do lançamento direto, ou seja, de subsumir, em termos definitivos, a norma jurídica à hipótese fática, cuja negligência importa grave responsabilidade funcional.
O lançamento definitivo, isto é, o ato administrativo de aplicação da norma material ao caso concreto que quantifica (requisito da liquidez) e qualifica (requisito da certeza) o crédito fiscal, tem por finalidade atribuir-lhe exigibilidade (arts. 147 e 149) ou confirmar o pagamento do tributo (art. 150).
É preciso não perder de vista que, no caso de irregularidades (omissivas ou comissivas), o valor do crédito não permanece o mesmo do quanto declarado pelo sujeito passivo, não apenas pela correção monetária da cifra, mas, particularmente, pelos acessórios que, como cediço, multiplica – e muito – a dívida original. O crédito fiscal se robustece: alcança, além da dívida tributária, agora também a pretensa dívida não-tributária.
A imposição de juros e de multas (moratórias e de ofício) inaugura uma situação completamente nova, que precisa ser devidamente delimitada em toda a sua extensão fática e jurídica, de sorte a franquear ao suposto devedor condições plenas ao exercício de defesa no plano do direito material.
Bastante oportuna a lição de Misabel Derzi, que, com louvável tirocínio, sentencia:
"A inexistência do pagamento devido ou a eventual discordância da Administração com as operações realizadas pelo sujeito passivo, nos tributos lançados por homologação, darão ensejo a lançamento de ofício, na forma disciplinada pelo art. 149 do CTN, e eventual imposição de sanção (auto de infração). O lançamento de ofício é que iniciará a formação do título executivo extrajudicial. Em caso algum, adaptar-se-á o lançamento por homologação a efeitos diversos da confirmação-extinção. A homologação declara a concordância da Administração com os dados levantados pelo contribuinte e com o pagamento por ele efetuado e, exatamente por isso, extingue o crédito – como proclama o art. 156, do CTN.
O lançamento de ofício é ato sempre necessário para dotar de exigibilidade o direito de crédito que lhe preexiste e iniciar o procedimento de formação do título, imprescindível à execução judicial, mesmo se o procedimento originariamente previsto para o lançamento for homologatório, conforme estabelece o art. 149 do CTN." [21]
Na relação obrigacional o sujeito ativo tem o dever inescusável de notificar o obrigado quanto à exata dimensão do crédito fiscal que declara devido, providência pela qual exerce legitimamente sua pretensão satisfativa [22], que, uma vez resistida, autoriza postulação no âmbito do direito processual pela via da cobrança executiva.
A notificação, enquanto garantia fundamental de defesa do contribuinte, é condição de eficácia do lançamento, elemento que aperfeiçoa e legitima a pretensão estatal nas esferas do direito material e processual.
É de rigor que o intérprete e o aplicador do Direito prestigiem a orientação normativa externada pelo Código Tributário Nacional, posto encontrar densa carga normativa constitucional, ao contrário das regras, de validade autônoma e corrompida, que se aplica no puro interesse da arrecadação [23].
4. Exigência idealizante do Estado Moderno
A hermenêutica contemporânea sugere análise do enredo principiológico que cerca o exame do problema.
A interpretação da Constituição e, mais especificamente, a dos direitos fundamentais ganharam corpo a partir da segunda metade do Século XX, sem abandonar, contudo, os métodos investigativos tradicionais calcados no silogismo do positivismo normativista, que, sobre ser muito formalista, revelou insuficiência para tratar de maneira justa situações de difícil solução, mormente quando afetadas ao ramo do Direito Público, como a relação entre contribuinte e Fisco.
Os princípios, que no apogeu do paradigma Liberal assumiram conotação meramente programática, como escudo a justificar a omissão estatal no cumprimento de projetos sociais, incorporaram-se no sistema, agora, como vetor axiológico dotado de densa carga normativa, que condiciona, numa autêntica barreira de fogo ("firewall"), a racionalidade do aplicador e intérprete do Direito, de modo a garantir a prevalência da vontade constitucional.
Dentre os renomados juristas que formataram a nova hermenêutica constitucional sobressai a figura de Ronald Dworkin [24], responsável pela elaboração da teoria da interpretação construtiva do Direito, considerado em sua integridade, pela qual tenciona legitimar a racionalidade da função jurisdicional, ao impor ao magistrado, enquanto protagonista de uma comunidade de princípios éticos-universais enredada em nível avançado do estágio de moralidade pós-convencional (Lawrence Kohlberg [25]), a hercúlea tarefa de formular a "resposta correta", ao adequar, no discurso de aplicação normativa (Klauss Günther [26]), o comando principiológico subjacente ao sistema constitucional, sensível à cada caso único e irrepetível, encarado sempre como de difícil solução (hard case) [27].
Ainda neste contexto pós-positivista, releva acentuar a teoria discursiva de Jürgen Habermas [28], para quem é de necessidade na democracia radical, enquanto regime constituído por valores plúrimos, a observância criteriosa de normas procedimentalistas que coagem à aplicação racional do Direito no curso de um processo argumentativo.
O problema de que cuida o presente artigo perpassa pelo enfrentamento dos princípios que emergem do sistema constitucional, visto orientar o intérprete na formulação dos métodos racionais de aplicação do Direito, segundo uma perspectiva de modernidade reflexiva.
5. Tratamento jurídico adequado ao problema
Padecem de inconsistência lógico-jurídica as assertivas no sentido de que, nas operações sujeitas à homologação tributária, o sujeito passivo teria operado verdadeira confissão de dívida [29], como se sucederia, por exemplo, na modalidade do "parcelamento".
Ao elaborar o documento fiscal, o obrigado apenas declara a ocorrência do fato gerador a fim de "antecipar" o pagamento do tributo, ou seja, "antes" do lançamento "definitivo" a ser praticado, em data ulterior, pela autoridade fazendária; não "confessa", em absoluto, condição fiscal irregular de "inadimplência" a ensejar execução fiscal.
Situação rigorosamente distinta é a do parcelamento, que pressupõe, neste caso específico, uma dívida "definitivamente" constituída, da qual o sujeito passivo formalmente reconhece e "confessa" o estado de "inadimplência".
Ora, é um passo largo em demasia aproximar uma situação a outras sem racionalidade fática e jurídica! Não é legítima a interpretação que ignore a especificidade dos fatos, reunindo, no mesmo enquadramento jurídico, situações que não guardam identidades entre si. O princípio da isonomia não se compadece com critérios distintivos flagrantemente desarrazoáveis.
A prestigiada "cooperação" do sujeito passivo na atividade de declarar, no lugar do sujeito ativo, os contornos fáticos-jurídicos da obrigação tributária, para facilitar o processo arrecadatório, não pode, por via reflexa, causar-lhe o menor gravame, a ponto de se ver surpreendido com a restrição do seu nome junto aos cadastros oficiais e recebendo citação para responder à execução fiscal; providências que não são autorizadas pelo Código Tributário Nacional, tampouco pela Constituição Federal.
A comodidade da Administração Fazendária não poderia gerar uma situação tão perversa. O encargo financeiro decorrente da tarefa de realizar a notificação é irrisório frente ao agravo suportado pelo sujeito passivo, a quem se suprime até o mesmo o direito de oferecer denúncia espontânea [30], medida que desatende ao postulado da proporcionalidade.
Assim, é legítimo sustentar a premissa de que a notificação (art. 145, do CTN) qualifica-se como condição de eficácia à persecução estatal, mesmo na hipótese em que o sujeito passivo não antecipe o pagamento do valor declarado nas operações sujeitas à homologação (art. 150).
Não é legítimo concluir, na ausência de limitação expressa no Código Tributário Nacional ou em lei complementar, que a notificação seja "dispensável" em casos que tais, pois a interpretação jurídica contemporânea não autoriza ao aplicador do Direito – a pretexto de colmatar lacuna da lei, de restringir o seu alcance normativo, ou, ainda, de qualquer outro expediente retórico – limitar a incidência de preceito constitucional encartado na categoria de direito fundamental, tanto mais se realça a garantia, de cariz republicano e democrático, de todo acusado exercer a ampla defesa e o contraditório nas esferas administrativa e judicial.
Não é por outra razão jurídica que o Supremo Tribunal Federal deliberou, na seção plenária do dia 02.12.2009, aprovar a Proposta de Súmula Vinculante nº 29, de seguinte teor:
"Não se tipifica crime material contra a ordem tributária, previsto no art. 1º, incisos I a IV, da Lei nº 8.137/90, antes do lançamento definitivo do tributo." [31]
O Colegiado considerou que a "postura da Corte, hoje, não admite processo-crime sem que esteja predefinido o crédito, que é elemento normativo do tipo, que todo tipo penal referido no art. 1º da Lei se refere a crédito. Se há dúvida sob a existência do crédito, evidentemente há dúvida sob a existência do elemento normativo do tipo. [...] a jurisprudência não tem dúvida sobre essa conclusão" [32].
Consagra a Suprema Corte a orientação segundo o qual a definição exata dos contornos do crédito tributário é pressuposto lógico para materialização do crime contra a ordem tributária, no que aplica adequadamente os princípios constitucionais da "segurança jurídica" [33] e da "tipicidade penal" [34].
Seguindo, pois, a mesma ratio juris da Súmula Vinculante nº 24, é possível concluir que não se tipifica, isto é, não se configura estado de ilicitude (crime ou inadimplência) a autorizar a ação (penal ou fiscal), antes de vencido o prazo para o pagamento do crédito definitivamente lançado pela Administração Tributária, cujo termo que se inicia a partir da notificação do sujeito passivo.
É realmente indispensável que a Administração Fazendária se pronuncie na forma de lançamento definitivo do crédito tributário, comunicando, por intermédio da notificação, o valor pretendido; valor que nestes casos, repisa-se, é muito superior ao quanto declarado pelo sujeito passivo, não apenas pela correção monetária da cifra, mas, sobretudo, pela incidência de juros e de multa (moratória e de ofício).
Pela notificação, o Estado oferece plena ciência ao sujeito passivo sobre os mais precisos limites da acusação (pretensão creditícia), franqueando-lhe o direito de oferecer impugnação na esfera administrativa, como ainda de quitar a dívida definitivamente lançada; defesas pelas quais o obrigado poderá, por razões plausíveis [35], suspender ou extinguir o respectivo crédito (arts. 150 e 156, do CTN), sem sofrer o estigma e as agruras do processo judicial (execução fiscal e ação penal).
É o que ocorre, por exemplo, nas relações de direito privado, onde se exige notificação prévia para legitimar a inscrição do nome do suposto devedor nos cadastros de proteção ao crédito. Não há por que ser diferente nas relações de direito público, que se sujeita aos mesmos princípios constitucionais da ampla defesa e do contraditório.
De mais a mais, a materialização do princípio da presunção da inocência apenas será efetivamente concretizada se se garantir ao obrigado – antes da persecução por via processual – o direito de opor, na esfera administrativa, resistência legítima à pretensão creditícia do Estado, fundado em argumentos que logrem procedência fática e jurídica.
Alberto Xavier, ao criticar a orientação predominante em torno do problema ora articulado, assinala, também, que "é impensável um lançamento sem notificação, ou seja, um ‘lançamento secreto’, praticado nas penumbras da repartição". Isto porque "a exigência de notificação como requisito essencial de eficácia do ato de lançamento é mero corolário do ‘princípio de publicidade’ da Administração Pública expressamente consagrado no artigo 37 da Constituição". Desta maneira, "a possibilidade de inscrição na dívida ser efetuada com base direta nas declarações do contribuinte, suprimindo o momento intermediário de um lançamento notificado, suprime automaticamente o direito de audiência exercido por via recursal, por eliminação ou ocultação do objeto do processo, em flagrante violação da garantia constitucional". E indaga, para logo responder a seguinte questão:
"Mas não se poderá dizer que o direito de audiência foi exercido efetiva, embora antecipadamente, através das próprias declarações do contribuinte sobre os elementos de fatos relevantes para a tributação? Redondamente não. Desde logo porque a idéia de defesa antecipada é uma ‘contradictio in terminis’, pois a defesa pressupõe logicamente uma prévia manifestação da autoridade administrativa, em relação à qual o particular manifesta as razões de fato e de direito em defesa dos seus interesses. Em segundo lugar, porque é inadmissível confundir com o direito de defesa o cumprimento de um dever dos particulares de colaboração instrutória para a descoberta da verdade material. Ao prestar declaração o particular não está a defender-se, nem a confessar: está, isso sim, a informar elementos instrutórios relevantes para o procedimento de lançamento. Uma coisa é o exercício de um dever de colaboração, outra, totalmente distinta, o exercício do direito de defesa.
[...] Obrigar, nestes casos, o contribuinte a defender-se, como réu, em processo de execução, por meio de embargos que só serão admitidos se garantida a execução, é submetê-lo a um constrangimento que o princípio da ampla defesa visa precisamente a evitar, pela singela técnica de oferecer ao particular a possibilidade de uma prévia defesa na esfera administrativa em face de um ato administrativo notificado e fundamentado, através de um recurso com efeito suspensivo da exigibilidade do crédito tributário (Código Tributário Nacional, artigo 151, III)." [36]
Incongruente, pois, o tratamento diferenciado a situações em que se verifica o "inadimplemento", ou seja, o não pagamento do tributo devido nas operações sujeitas à homologação. É juridicamente inválido o critério que toma por parâmetro a mera declaração, ou não, dos elementos que compõe o fato gerador, para autorizar, ou não, a cobrança executiva.
De fato, "[a] tese em que se baseia a jurisprudência dominante é, finalmente, conduzida a imprimir um tratamento discriminatório – e, portanto inconstitucional, por ofensivo ao princípio da igualdade – entre o contribuinte que declarou e não pagou em relação ao contribuinte que não pagou nem sequer declarou, pois quanto a este último deverá haver lançamento de ofício anterior à inscrição de dívida, plenamente ensejador de recurso administrativo." Deste modo, a orientação pretoriana afigura-se "violadora a um tempo dos princípios constitucionais da ampla defesa e da igualdade, dos artigos 142, 145 e 201 do Código Tributário Nacional e do 3º do artigo 1º da Lei nº 6.830/80." [37]
Sorvido do mesmo sentimento constitucional, Ruy Barbosa Nogueira, em trabalho monográfico pioneiro no Brasil, já manifestava, há muito, inconformismo contra o abuso estatal:
"O Govêrno brasileiro que está empreendendo a reformulação da legislação tributária precisa atentar não só para os interesses da arrecadação, mas dentro da problemática do lançamento que foi objeto dêste trabalho, para os aspectos fundamentais apontados que mostram a condenável burocratização das atividades privadas; a destruição do Estado de direito e a subversão do verdadeiro conceito de lei. Esta deve ser uma regra de direito, que em igualdade de condições, trate igualmente os seres humanos." [38]
A interpretação que confere tratamento jurídico adequado ao problema sinaliza no sentido de se conceder – sempre – ao sujeito passivo o direito de tomar ciência, pela "notificação", do lançamento "definitivo" do crédito tributário, providência que assegura informação "exata" do limite pretendido pela Administração Tributária, até mesmo nas situações em que o tributo declarado no documento fiscal não foi "antecipadamente" pago nas operações sujeitas à homologação.