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O princípio da inocência no Direito Administrativo

Agenda 13/11/2010 às 09:55

RESUMO: O ideal de justiça preconizado na Constituição da República de 1988 possui como um dos pilares o princípio da presunção de inocência, segundo o qual o acusado somente poderia ser considerado culpado após o esgotamento dos recursos cabíveis. Uma interpretação literal de dispositivo contido na Constituição não deve prevalecer, notadamente por acarretar restrição de direitos fundamentais, considerando que o referido princípio não se encontra ali exaurido. Nesse sentido, verifica-se que o acusado em processo administrativo igualmente possui assegurada essa garantia constitucional, conforme entendimento que prestigia a força normativa dos princípios. O presente trabalho, portanto, se propõe, sem possuir pretensão de exaurir o debate, a examinar a questão, á luz da doutrina incidente.

PALAVRAS-CHAVE: Princípios. Presunção de inocência. Processo administrativo.

ABSTRACT: The ideal of justice envisaged in the Constitution of 1988 has as one of the pillars of the presumption of innocence, according to which the accused could be guilty only after the exhaustion of reasonable efforts. A literal interpretation of the device contained in the Constitution should not prevail, especially to cause restriction of fundamental rights, considering that the principle is exhausted there. Accordingly, it appears that the accused in an administrative process has also ensured that constitutional guarantee, as understanding that honors the normative force of principles. This paper therefore proposes, without having claim to exhaust the debate, examining the issue, in light of the doctrine incident

KEYWORDS: Principles. Presumption of innocence. Administrative process.

SUMÁRIO: 1. INTRODUÇÃO. 2. O PRINCÍPIO DA INOCÊNCIA NO DIREITO ADMINSITRATIVO. 3. CONCLUSÕES. 4 REFERÊNCIAS.


1. INTRODUÇÃO

O ideal de justiça que envolve o constitucionalismo atual direciona o entendimento no sentido de que nenhuma sanção poderia ser aplicada sem a apresentação prévia de defesa pelo interessado.

Nesse passo, a Constituição da República de 1988 previu no seu art. 5º, inciso LVII, que "ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória". Com base nesse dispositivo, a doutrina majoritária tem sustentado que se encontra positivado o princípio da presunção de inocência no ordenamento jurídico brasileiro.

Com amparo nessa circunstância, procura-se no presente trabalho examinar a possibilidade de extensão do princípio da inocência (aqui considerado como sinônimo de princípio da não culpabilidade), tal qual encartado na Constituição da República, aos acusados em processos administrativos.

Para tanto, procurou-se verificar o posicionamento doutrinário, a fim de permitir uma conclusão que melhor se ajuste aos princípios, fundamentos e objetivos esculpidos na Constituição da República do Brasil de 1988.


2. O PRINCÍPIO DA INOCÊNCIA NO DIREITO ADMINSITRATIVO

O princípio da inocência, segundo MIRANDA e MEDEIROS (2005, p. 355) deita suas raízes na Proclamação na França da Declaração dos Direitos Humanos e do Cidadão, de 1789, tendo irradiado sua noção para diversos outros ordenamentos jurídicos.

De outra margem, faz-se necessário enfatizar que os princípios passaram a possuir destaque no ordenamento jurídico, assumindo posição central e não mais periférica. Dentro desse cenário, merece destaque a lição, tantas vezes reproduzida, de MELLO (2010, 52), para quem

"Princípio é, por definição, mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas, compondo-lhes o espírito e servindo de critério para a sua exata compreensão e inteligência, exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico. É o conhecimento dos princípios que preside a intelecção das diferentes partes componentes do todo unitário que há por nome sistema jurídico positivo"

Por outro lado, num panorama pós positivista, entende-se que os princípios passam a se revestir de plena importância jurídica, diante da supremacia da Constituição, diferentemente do aspecto meramente integrativo previsto, por exemplo, no art. 4º do Decreto-Lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942 (Lei de Introdução ao Código Civil).

Nesse sentido, colhe-se percuciente o ensinamento de STRECK (2002, p. 101):

"A soberania do parlamento cedeu o passo à supremacia da Constituição. O respeito pela separação dos Podere e pela submissão dos juízes à lei foi suplantada pela prevalência dos direitos dos cidadãos face ao estado. A idéia base é a de que a vontade política da maioria governante de cada momento não pode prevalecer contra a vontade da maioria constituinte incorporada na Lei Fundamental. O poder constituído, por natureza derivado, deve respeitar o poder constituinte, por definição originário." (itálicos originais)

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A partir dessa nova ótica constitucional, os princípios passaram a ostentar força normativa, carregada de valores aptos a direcionarem as decisões políticas e legislativas. Nesse passo, extrai-se lição de BARROSO (2006, p. 340):

"Quanto ao conteúdo, destacam-se os princípios como normas que identificam valores a serem preservados ou fins a serem alcançados. Trazem em si, normalmente, um conteúdo axiológico ou uma decisão política. Isonomia, moralidade, eficiência são valores. Justiça social, desenvolvimento nacional, redução das desigualdades regionais são fins públicos." (itálicos originais)

Além do mais, o sempre lembrado princípio da legalidade sofre uma mutação no Direito Administrativo para abranger não apenas a lei, mas também os princípios jurídicos. Confira-se, nesse sentido, a conclusão atingida por BINENBOJM (2008, p. 132):

"Em uma palavra: a atuação administrativa só será válida, legítima e justificável quando condizente, muito além da simples legalidade, com o sistema de princípios e regras delineado na Constituição, de maneira geral, e com os direitos fundamentais em particular."

No mesmo tom, tem-se posicionamento de BAPTISTA (2003, p. 108), quando esclarece que "hoje, portanto, caminha-se para a construção de um princípio da legalidade não no sentido da vinculação positiva à lei, mas de vinculação da Administração ao Direito". Esse entendimento é compartilhado também por CARVALHO (2009, p. 55) que esclarece que essa vinculação se refere a princípios expressos e implícitos.

Desse modo, o princípio da inocência passa a ter uma posição de destaque no ordenamento jurídico, notadamente nos processos de índole sancionatória. Nessa perspectiva, o art. 5º, inciso LVII, da Constituição, antes transcrito, assume extrema importância, mais evidentemente no campo penal, uma vez que o texto constitucional fez expressa menção à "sentença penal condenatória".

Esse entendimento, contudo, restringe sua aplicação apenas à seara criminal, na medida em que encontra-se vinculado ao trânsito em julgado de sentença penal. Todavia, não há obstáculos à aplicação do princípio da inocência também no campo do direito administrativo, notadamente, em relação ao direito administrativo sancionador, decorrente da aplicação do poder disciplinar.

É que o princípio da inocência não esgota sua aplicação no campo penal, sendo possível vislumbrarmos sua incidência em todo processo de cunho sancionador, como na hipótese de processo administrativo em geral, inclusive, o de natureza disciplinar.

Essa nova concepção do princípio da inocência prestigia, portanto, o texto constitucional, na medida em que evita o arbítrio administrativo, algumas vezes comum em atuações estatais, atendendo-se ao objetivo primordial contido na própria Constituição, relativamente à construção de uma sociedade justa (art. 3º, III, da CF/88).

No que toca à proximidade entre a sanção administrativa e a penal, colhe-se percuciente entendimento de PUIG (2003, p. 264):

"Ya que prácticamente se acepta que no hay límites de extensión a la potestad sancionadora de la Adminsitración, como uma especie de compensación, se la ha sometido a estrictos límites relativos a su forma y condiciones de ejercicio y a su pleno control judicial. Esto se ha hecho construyendo um Decrecho Administrativo sancionador que guarda un cierto paralelismo y toma su inspiración del Derecho Penal e, en cuanto a las garantías formales, del Derecho Procesal Penal."

Assim sendo, não se vislumbra mais possível haver penalização antes de esgotados todos os recursos cabíveis no âmbito administrativo, aplicando-se por analogia os mesmos direitos incidentes no campo penal, dada a similitude de circunstâncias, já que em ambos os casos há aplicação de uma penalidade.

A partir desse novo ponto de vista, pode-se verificar as repercussões na seara administrativa sob a perspectiva da defesa sob o aspecto penal. Como bem anotam CANOTILHO e MOREIRA (2007, p. 518), os efeitos, no campo penal, da aplicação do princípio da inocência podem ser assim sintetizadas:

"a) Proibição de inversão do ônus da prova em detrimento do arguido; b) preferência pela sentença de absolvição contra o arquivamento do processo; c) exclusão da fixação de culpa em despachos de arquivamento; d) não incidência de custas sobre arguido não condenado; e) proibição da antecipação de verdadeiras penas a título de medidas cautelares; f) proibição de efeitos automáticos da instauração do procedimento criminal; g) natureza excepcional e de última instância das medidas de coação, sobretudo, as limitativas ou proibitivas de liberdade; h) princípio in dubio pro reo, implicando a absolvição em caso de dúvida do julgador sobre a culpabilidade do acusado."

Todos esses efeitos, destarte, mostram-se aplicáveis também no âmbito do Direito Administrativo, objetivando-se o atingimento do ideal de justiça, tal como se determina, expressamente, no art. 3º, inciso I, da Constituição da República de 1988.

Agregue-se, ainda, as garantias preconizadas no Pacto de São José da Costa Rica (internalizado por meio do Decreto nº 678, de 6 de novembro de 1992), descritas no seu art. 8º.2:

"Artigo 8º - Garantias judiciais

(...)

2. Toda pessoa acusada de um delito tem direito a que se presuma sua inocência, enquanto não for legalmente comprovada sua culpa. Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas:

3. direito do acusado de ser assistido gratuitamente por um tradutor ou intérprete, caso não compreenda ou não fale a língua do juízo ou tribunal;

4. comunicação prévia e pormenorizada ao acusado da acusação formulada;

5. concessão ao acusado do tempo e dos meios necessários à preparação de sua defesa;

6. direito ao acusado de defender-se pessoalmente ou de ser assistido por um defensor de sua escolha e de comunicar-se, livremente e em particular, com seu defensor;

7. direito irrenunciável de ser assistido por um defensor proporcionado pelo Estado, remunerado ou não, segundo a legislação interna, se o acusado não se defender ele próprio, nem nomear defensor dentro do prazo estabelecido pela lei;

8. direito da defesa de inquirir as testemunhas presentes no Tribunal e de obter o comparecimento, como testemunhas ou peritos, de outras pessoas que possam lançar luz sobre os fatos;

9. direito de não ser obrigada a depor contra si mesma, nem a confessar-se culpada; e

10. direito de recorrer da sentença a juiz ou tribunal superior.

11. A confissão do acusado só é válida se feita sem coação de nenhuma natureza.

12. O acusado absolvido por sentença transitada em julgado não poderá ser submetido a novo processo pelos mesmos fatos.

13. O processo penal deve ser público, salvo no que for necessário para preservar os interesses da justiça."

Tal se dá porque referido Pacto, a despeito de ter sido introduzido no ordenamento brasileiro por meio de Decreto, possui atualmente, status de norma supra legal, como reconheceu o Supremo Tribunal Federal (RE 466.343).

Adicione-se, por fim, a necessidade de garantia de que a Administração Pública deve anexar ao correspondente processo administrativo, todas as provas que existir sobre os fatos alvo da acusação, favoráveis ou desfavoráveis ao acusado a fim de permitir sua ampla defesa.


3. CONCLUSÕES

A hermenêutica constitucional numa perspectiva pós positivista direciona-se no sentido de conferir força normativa aos princípios, dentre os quais se destaca o princípio da inocência que, para a seara penal, encontra-se positivado no art. 5º inciso LVII, da Constituição da República de 1988.

O referido princípio, contudo, não se esgota no dispositivo citado, razão pela qual não deve ser limitado ao campo penal, sendo possível sua aplicação no direito administrativo, notadamente na hipótese de processo administrativo disciplinar, dado que em ambas as situações, trata-se de aplicação de sanção.

Desse modo, o princípio da inocência mostra-se plenamente aplicável no Direito Administrativo sancionador, razão pela qual não se revela mais possível a aplicação de sanção até o esgotamento dos recursos cabíveis.

Além disso, todas as garantias processuais atualmente aplicáveis no âmbito do processo penal mostram-se incidentes, também, no campo do Direito Administrativo sancionador, inclusive aquelas previstas no Pacto de São José da Costa Rica.


4. REFERÊNCIAS

1. BAPTISTA, Patrícia. Transformações do Direito Administrativo. São Paulo: Renovar, 2003.

2. BARROSO. Luís Roberto, BARCELLOS, Ana Paula de. O começo da história. A nova interpretação constitucional e o papel dos princípios no direito brasileiro. in A Nova interpretação constitucional. Ponderação, Direitos Fundamentais e Relações Privadas. Org. Luís Roberto Barroso. São Paulo: Renovar, 2002.

3. BINENBOJM, Gustavo. Uma teoria do Direito Administrativo. Direitos Fundamentais, Democracia e Constitucionalização. 2ª ed. São Paulo: Renovar, 2008.

4. BRASIL. Constituição da República de 1988. Diário Oficial da União, 05.10.1988.

5. ______. Decreto nº 678, de 6 de novembro de 1992. Promulga a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), de 22 de novembro de 1969. Diário Oficial da União, 9.11.1992.

6. ______. Decreto-Lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942. Lei de Introdução ao Código Civil. Diário Oficial da União, 09.09.1942.

7. ______. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 466.343. Relator Min. Cezar Peluso. Julgamento em 03.12.2008. Diário de Justiça Eletrônico, 05.06.2009.

8. CANOTILHO, Joaquim José Gomes, MOREIRA, Vital. CRP. Constituição da República Portuguesa. 1ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, Coimbra/PT: Coimbra, 2007.

9. CARVALHO, Raquel Melo Urbano de. Curso de Direito Administrativo: Parte geral, intervenção do Estado e estrutura da Administração. Salvador: Jus Podivm, 2009.

10. MELLO, Celso Antônio Bezerra de. Curso de Direito Administrativo. 27ª ed. São Paulo: Malheiros, 2010.

11. MIRANDA, Jorge, MEDEIROS, Rui. Constituição Portuguesa Anotada. Tomo III. Coimbra: Coimbra Editora, 2005.

12. PUIG, Manuel Rebollo. El Derecho Administrativo sancionador. in Uma avaliação das tendências contemporâneas do Direito Administrativo. Coord. Diogo de Figueiredo Moreira Neto. São Paulo: Renovar, 2002.

13. STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição Constitucional e Hermenêutica. Uma nova crítica do Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002.

Sobre o autor
Adrian Soares Amorim de Freitas

Servidor Público Federal. Pós graduado em Ministério Público, Direito e Cidadania, pela FESMP/RN e Direito e Processo Eleitoral, pela Universidade Potiguar/RN.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FREITAS, Adrian Soares Amorim. O princípio da inocência no Direito Administrativo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2691, 13 nov. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17813. Acesso em: 5 nov. 2024.

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