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Uma análise hermenêutica no atual Estado de Direito sobre os bens da União e a cobrança de taxas de marinha na ilha de Vitória

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Agenda 19/11/2010 às 11:02

4. EXERCÍCIO HERMENÊUTICO DAS IMPLICAÇÕES TRAZIDAS PELA EMENDA CONSTITUCIONAL Nº 46/2005 PARA A COBRANÇA DE TAXA DE MARINHA

Para identificar a problemática social que envolve a cobrança de taxas de marinha na sociedade capixaba, deve-se remeter a uma cobrança tributária exacerbada dos órgãos estatais sobre a propriedade: a cobrança conjunta sobre o imóvel do Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU), operada pela municipalidade, e as Taxas de Marinha, cobradas pela União via Secretaria de Patrimônio da União.

Isso levanta uma polêmica que o próprio CTN já traz em seu art. 77, § único [09], a saber: uma sobretaxação, o que daria uma conotação "confiscatória" à propriedade, violando o direito à propriedade privada, bem como sendo um atentado ao princípio da proporcionalidade, próprio de um Estado de Direito.

Por esse prisma, há que observar qual seria a base de cálculo e o fato gerador do IPTU e das Taxas de Marinha, conforme tabela a seguir:

 

IPTU

Taxas de Marinha

Base de Cálculo

Valor venal do imóvel [10]

0,6% de aforamento do valor do respectivo domínio útil [11] ou 3% de ocupação do valor atualizado do imóvel [12]

Fato gerador

Propriedade, o domínio útil ou a posse por natureza ou acessão física [13]

Domínio útil [14], imóvel ou parte dele ocupada [15]

Observa-se que a tabela acima demonstra que, apesar da terminologia diferenciada, o IPTU e as taxas de marinha são calculados pela mesma base de cálculo (valor venal ou atualizado do imóvel) e pelo mesmo fator gerador (propriedade / imóvel e domínio útil), o que resulta em um conflito normativo claro segundo o parágrafo único do artigo 77 do Código Tributário Nacional, antes citado.

Realizando uma interpretação teleológica da norma jurídica em consonância com a vontade do legislador pode-se extrair dos comandos normativos a vedação da bitributação com fulcro na proteção da propriedade privada e na garantia da segurança jurídica para as relações econômico-sociais. Por esse vértice, é notável uma bitributação sobre os imóveis com a cobrança conjunta de taxas de marinha e de IPTU, visto que a base de cálculo e o fato gerador dos dois tributos são idênticos, o que demonstra a ilegalidade das duas cobranças sobre o mesmo imóvel.

É o indagado pelo doutorando Marco Antônio Chaves [16] em seu artigo Terrenos de Marinha, quando ressalta

Ora, se o IPTU tem como fato gerador a propriedade, o domínio útil ou a posse, entendida nesse caso como bens do Município, como poderia a União cobrar tributo que tenha o mesmo fato gerador do IPTU? Se a União julga-se detentora dessas propriedades e assim é entendido pelos magistrados, não caberia também a União manter os serviços públicos essenciais, como saneamento, melhorias viárias, transporte, entre outros?

Não distante, observando a supremacia da Constituição ao declarar os bens da União, instituindo dentre eles as terras de marinha e seus acréscimos, é ilegal a conjunta das taxas de marinha e o IPTU, uma vez que a municipalidade deve atender ao preceito do CTN, a saber:

Art. 150. Sem prejuízo de outras asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos municípios:

VI – instituir impostos sobre:

a) patrimônio, renda ou serviços, uns dos outros; (grifo nosso)

Assim, ao realizar uma interpretação sistemática, em consonância com o princípio federativo, a cobrança do Imposto Predial Territorial Urbano sobre os imóveis que são terras de marinha é uma cobrança inconstitucional e ilegal, ferindo o princípio da legalidade – insculpido no art. 5º, II, da CF/88 – bem como o art. 77, § único, e 150 do CTN, vez que trata-se da tributação de imposto pela municipalidade sobre os imóveis de propriedade de União, uma cobrança indevida!

Não distante do acima exposto, tem-se a dúvida elencada pela interpretação literal da emenda constitucional nº 46/2005 frente à manutenção da cobrança de marinha na capital capixaba, uma vez que tal emenda garante a exclusão das ilhas em que se situam as capitais de Estado, neste caso a Ilha de Vitória – capital do Espírito Santo – como bens da União.

Para auxiliar a interpretação literal faz-se necessário utilizar de orientações histórico-evolutivas. Destarte, a capital capixaba era, segundo a planta geográfica de 1831, um conjunto de ilhas que, ao longo do tempo, foram interligadas via aterros no mar, gerando vários trechos de acréscimos ao que hoje denomina-se ilha de Vitória. Isso é amplamente demonstrado no Informativo do Fórum Permanente da Bacia do Rio Aribiri que traz à baila que

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As ilhas de Vitória formavam um arquipélago. Vários pontos da cidade foram aterrados para conquistar mais espaço do mar para o desenvolvimento e a ocupação da cidade de Vitória. Então, como um arquipélago, era preciso poder contar com um transporte entre essas ilhas. Os catraieiros têm registro de que começaram suas atividades por volta de 1860, faziam transporte de cargas que vinham da região montanhosa do estado, das cidades do interior, e as cargas que eram comercializadas na Vila Rubim. (Disponível em: <http://www.movive.org.br/regiao3/Forum/informativo2.pdf>. Acesso em: 11 abr. 2010)

Conforme abordado pelo depoimento histórico da formação da grande ilha de Vitória, por ser a capital composta de vários acréscimos o entendimento da Secretaria de Patrimônio da União (SPU), gestora dos bens da União, é que a capital capixaba não foi completamente atendida pela alteração da EC nº 46/2005, uma vez que essa apenas retira como bens da União as ilhas costeiras situadas na capital de Estados e não os seus acréscimos.

Observa-se, então, a interpretação literal restritiva realizada pela Coordenação Geral Jurídica da Secretaria de Patrimônio da União (CONJUR) em seu PARECER/ MP/ CONJUR/ JCJ/ N. 0486 – 5.9.9/2005, de 27 de maio de 2005, referente ao PROCESSO N. 04905.000584/2005-62, que ao ser analisado pelo Advogado da União, Adriano Martins de Paiva, entendeu que

Segundo o disposto no parecer da Consultoria do Ministério do Planejamento, pasta a que está submetida à [sic] Secretaria do Patrimônio da União, e todas as Gerências Regionais do Patrimônio da União nos Estados, estaria excluído do domínio patrimonial da União os terrenos das ilhas costeiras, exceto as áreas afetadas ao serviço público federal e à unidade ambiental de conservação federal, apenas as sedes urbanas dos municípios situados na respectiva ilha. (Disponível em: <http://www.escola.agu.gov.br/.../AsRepercussoesdaEC46_AdrianoMartins.pdf>. Acesso em: 11 abr. 2010) (grifo nosso)

Por esse entendimento as áreas referentes à unidade ambiental de conservação federal, a antiga linha preamar média de 1831, ficariam mantidas como bens da União, o que é uma interpretação totalmente distorcida do comando constitucional.

Esse entendimento também está em consonância com o Manual de Regularização Fundiária de Terras da União Federal feito pelo SPU, que orienta

A emenda excluiu do patrimônio da União, os terrenos no interior das ilhas costeiras que contenham sede de município. [...] Mesmo nas ilhas costeiras que contenham sede de Município, as praias, o mar territorial, os terrenos de marinha e seus acréscimos dessas localidades, continuam pertencendo à União Federal. (Disponível em: <http://www.planejamento.gov.br/.../%20081021_PUB_Manual_regularizacao.pdf>. Acesso em: 11 abr. 2010) (grifo nosso)

Pelo trecho do Manual da Regularização fica claro que o entendimento do SPU frente à capital capixaba não alterou em aspecto algum as cobranças de taxas de marinha, levantando um problema de leitura constitucional consoante ao atual paradigma de Estado Constitucional Democrático de Direito: frente a interpretações jurídicas possíveis a melhor é aquela conforme à Constituição.

Essa é a mesma opinião de Colnago (2007, p. 67) que orienta que "[...] a utilização de termos ambíguos e vagos pelo legislador ordinário contemporâneo apresenta-se como uma tendência indiscutível, razão pela qual a adoção de decisões interpretativas pela jurisdição constitucional tende também a se consolidar como uma via a ser escolhida com freqüência exponencialmente maior", vez que a validade dos demais comandos normativos deve buscar fundamento de validade no comando normativo maior do Ordenamento Jurídico brasileiro: a Constituição Federal.

Essa é a orientação do atual Ministro do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes (2008, p. 120), quando afirma

Modernamente, o princípio da interpretação conforme [à Constituição] passou a consubstanciar, também, um mandato de otimização do querer constitucional, ao não significar apenas que entre distintas interpretações de uma mesma norma há de se optar por aquela que a torne compatível com a Constituição, mas também que, entre diversas exegeses igualmente constitucionais, deve-se escolher a que se orienta para a Constituição ou a que melhor corresponde às decisões do constituinte. (grifos no original)

Neste diapasão, a interpretação não pode ser apenas literal e restritiva conforme a dada pela SPU, como fora demonstrado, mas sim deve contemplar a interpretação sistemática, histórico-evolutiva e exegética, juntamente com a interpretação gramatical, constituindo um exercício hemenêutico atualista para o caso em análise.

Inicialmente, o texto constitucional ajustado pela EC nº 45/2006 deixa claro, ao ser interpretado gramaticalmente, que as ilhas que contemplem a capital de Estado, não são mais bens da União. Logo, a ilha de Vitória não mais é considerada bem da União, por conseguinte não pode mais ser tributada por taxa de marinha sobre as propriedades ali inseridas.

Por outro vértice, ao observar a evolução histórica da ilha de Vitória é notável que o comando constitucional estabelecido pela EC nº 45/2006 buscou ajustar o benefício de retirar do rol de bens da União todos os imóveis inseridos na ilha de Vitória, a destacar que a ilha deve ser entendida conforme a visão atualizada de ilha capital capixaba, e não pela planta geográfica de 1831 como argumenta a SPU.

Outrossim, a interpretação sistemática à luz do comando constitucional deve reajustar os comandos normativos infra-constitucionais, por meio da otimização constitucional em controle de constitucionalidade direta sobre tais normas, expurgando ou realinhando as normas antes não contempladas pela emenda constitucional, a qual traz a retirada das ilhas sede de capital de Estado do rol de bens da União, sendo assim inconstitucional qualquer comando contrário a essa orientação constitucional.

Por outra visão, tem-se pela interpretação exegética a busca da "voluntas legislatoris", mas numa perspectiva do subjetivismo atualista, em que necessário se faz buscar a intenção do legislador com a produção da norma jurídica e trazê-la à atualidade para auxiliar na solução do presente caso. Desta forma, é possível observar que o pensamento do legislador ao normatizar a EC 45/2006, mais precisamente sobre a alteração do art. 20, IV, da CF/88, era de garantir aos moradores das ilhas capitais a retirada de todos os imóveis da classificação de bens da União, independente da condição de formação ou época da ilha, para que esses não fossem tributados pela União, mas apenas pela municipalidade.

Tal visão interpretativa funda-se na idéia do legislador de que, constituídas em capitais de Estado, as ilhas costeiras seriam contempladas pela utilização das terras segundo a função social da propriedade combinado com o controle municipal das propriedades, sendo desnecessário que essas propriedades passem por um controle conjunto da municipalidade e da União.

Neste contexto, pela proximidade de comando municipal alinhado com uma reforçada segurança da ilha, por ser o local de concentração política estadual de autoridades, o legislador entendeu que não tinha necessidade de tais terras continuarem na qualidade de bens da União, retirando-as, pela EC 45/2006, de tal condição.

Por fim, ressalta-se que o exercício hermenêutico demonstrou que a interpretação da norma pautada pelo Poder Executivo não está em consonância com o atual Estado de Direito, pois elas deveriam ter seu alcance retirado a partir de interpretação gramatical, sistemática, histórico-evolutiva e exegética, resultando na interpretação mais adequada ao paradigma jurídico-político vigente, o qual propugna em última instância uma organização destes métodos interpretativos perspectivada por uma interpretação conforme à Constituição.


5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Pela exposição do tema importa destacar que a interpretação não deve ser restrita a um único método interpretativo, nem mesmo à adoção de uma parte de um método que não seja atual dentro do Estado de Direito vigente, sendo que este contempla diretrizes orientadoras para leitura de normas jurídicas que são formadas por uma base introdutória: a Constituição Federal.

Por esse entendimento, não pode o interprete também aceitar que a literalidade constitucional reine para com os métodos interpretativos, uma vez que a Carta Magna brasileira abarca princípios norteadores que aumentam a visão interpretativa aos utilizar os óculos constitucionais.

E foi exatamente isso que o trabalho demonstrou: o art. 20, IV, da Lex Mater brasileira, emendado pela EC nº 46/2005, não pode mais ser interpretado restritivamente como idealiza a SPU, para manutenção da tributação de taxas de marinha sobre imóveis na ilha de Vitória, mas sim deve ser o Texto Maior brasileiro observado em sua completude sistemática e histórico-evolutiva.

Sobre o autor
Presley Modolo de Assunção

Acadêmico da FDV – Vitória / ES

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ASSUNÇÃO, Presley Modolo. Uma análise hermenêutica no atual Estado de Direito sobre os bens da União e a cobrança de taxas de marinha na ilha de Vitória. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2697, 19 nov. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17863. Acesso em: 23 dez. 2024.

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