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A federalização dos crimes contra os direitos humanos

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Agenda 22/11/2010 às 15:32

4. O INCIDENTE DE DESLOCAMENTO DE COMPETÊNCIA

Feitas as considerações acerca dos aspectos materiais e processuais da federalização dos crimes graves contra os direitos humanos, passa-se à investigação do incidente de deslocamento de competência, apontando sua origem, as controvérsias surgidas em torno do instituto e a análise do primeiro caso onde buscou-se a federalização.

4.1. A Emenda Constitucional nº 45/2004

A emenda constitucional nº 45/2004, popularmente conhecida como reforma do judiciário, surgiu de uma proposta (PEC nº 96) do então deputado federal Hélio Bicudo, no ano em 1992.

Tramitou no Congresso Nacional por mais de uma década, sendo aprovada em dezembro de 2004, e trouxe em seu bojo o ideário defendido pelas entidades de defesa dos direitos humanos, qual seja, a federalização dos crimes que caracterizem graves violações aos direitos humanos.

Acrescentou, assim, o inciso V-A e o parágrafo 5º ao artigo 109 da Constituição, ampliando a competência da Justiça Federal.

Art. 109. Aos juízes federais compete processar e julgar:

V-A – as causas relativas a direitos humanos a que se refere o parágrafo quinto deste artigo;

§ 5º - nas hipóteses de grave violação de direitos humanos, o Procurador-Geral da República, com a finalidade de assegurar o cumprimento de obrigações decorrentes de tratados internacionais de direitos humanos, dos quais o Brasil seja parte, poderá suscitar, perante o Superior Tribunal de Justiça, em qualquer fase do inquérito ou processo, incidente de deslocamento de competência para a Justiça Federal.

Conforme anteriormente citado, Flávia Piovesan (2004) aponta os crimes de tortura, homicídio doloso qualificado praticado por agente funcional de quaisquer dos entes federados, praticados contra as comunidades indígenas ou seus integrantes, homicídio doloso motivado por preconceito de origem, raça, sexo, opção sexual, cor, religião, opinião política ou idade ou quando decorrente de conflitos fundiários de natureza coletiva e o de uso, intermediação e exploração de trabalho escravo ou de criança e adolescente em quaisquer das formas previstas em tratados internacionais, como crimes passíveis de serem considerados graves violações aos direitos humanos, resguardados em tratados internacionais dos quais Brasil é signatário.

A doutrinadora e militante dos direitos humanos aponta a responsabilidade da União como justificativa para a necessidade de federalização:

considerando que estas hipóteses estão tuteladas em tratados internacionais ratificados pelo Brasil, é a União que tem a responsabilidade internacional em caso de sua violação. Vale dizer, é sob a pessoa da União que recairá a responsabilidade internacional decorrente da violação de dispositivos internacionais que se comprometeu juridicamente a cumprir. Todavia, paradoxalmente, em face da sistemática vigente, a União, ao mesmo tempo em que detém a responsabilidade internacional, não detém a responsabilidade nacional, já que não dispõe da competência de investigar, processar e punir a violação, pela qual internacionalmente estará convocada a responder. (PIOVESAN, 2004)

Sem embargos deste entendimento, a AMB (Associação dos Magistrados Brasileiros) ingressou em maio de 2005 com a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3486 (BRASIL, 2005c).

A Procuradora Federal dos Direitos do Cidadão, Ela Wiecko Volkmer de Castilho (2005), relata que segundo a AMB:

a mudança nos procedimentos para o julgamento de crimes contra os Direitos Humanos ampliou a competência da Justiça Federal, criando uma "competência penal absolutamente extravagante, caracterizada por uma flexibilidade insustentável" e criadora de insegurança quanto às decisões tomadas pela Justiça Estadual, atentatória ao art. 5º, XXXIX da CF. A entidade alegou que a Emenda Constitucional não define o que é uma "grave lesão aos Direitos Humanos", tampouco quais tipos de crimes deveriam ser relacionados a essa condição. Entende necessária lei regulamentadora para definir tais critérios. Também vê inconstitucionalidade na subtração da competência do júri popular para julgar os crimes dolosos contra a vida.

Maluly (2005) relembra que mesmo antes da previsão constitucional agora combatida por parcela dos magistrados e membros do Parquet, existia na legislação a previsão do deslocamento da investigação policial para a mesma categoria de crimes.

Nos termos da Lei 10.466/2002 (anexo b), a Polícia Federal pode proceder a investigação de infrações penais relativas à violação a direitos humanos, que o Brasil se comprometeu a reprimir em decorrência de tratados internacionais que é signatário.

Na defesa do instituto do IDC pode-se citar, dente outros, Flávia Piovesan (2005), Renato Stanziola Vieira (2005), Jorge Malult Assaf (2005), Ela Wiecko Volkmer de Castilho (2005). Em sentido diverso cita-se Marcus Vinícius Amorim de Oliveira (2004), Ingo Wolfgang Sarlet (2005), Leonardo Furian (2005) e Leonardo Fensterseifer (2005).

4.1.1. Princípio do juiz natural

A AMB sustenta que o deslocamento de competência viola o princípio do juiz natural. Este significa que todos têm direito a um julgamento por um juízo ou tribunal preconstituído, com legitimidade em sua investidura jurisdicional. (TUCCI, 1989, p. 28).

José Frederico Marques (apud TUCCI, 1989, p. 29) pondera que a idéia de juiz natural contrapõe-se "não a juízo especial, mas a juízos de exceção ou instituídos para contingências particulares".

Não vislumbra-se no caso da federalização do crimes contra os direitos humanos a existência de um juízo de exceção ou voltado para casuísmos. O texto constitucional regula a jurisdição e a competência para processo e julgamento de tais delitos, prevendo que os juízes federais tornar-se-ão competentes para tanto após a aprovação do STJ.

Nota-se que tanto a jurisdição, representada pela Justiça Federal, quanto a competência, representada pelos juízes federais da subseção judiciária do local do delito, estão previamente instituídas no ordenamento jurídico. Não há a criação de um juízo após a ocorrência do fato.

Lauria Tucci (1989, p. 31) afirma que:

Só mesmo as modificações de competência através de normas regularmente editadas, bem como as substituições previstas em lei, o desaforamento e a prorrogação da competência, é que, na oportuna advertência de José Frederico Marques, "não entram em colisão com a aludida garantia", até porque – complementa – efetivados em regime de estrita legalidade.

O artigo 109 da Constituição tanto prevê os casos em que a federalização deve operar-se, como também define a competência dos juízes federais para julgamento dos casos. Diferentemente do que contesta a AMB, não há subtração da competência do tribunal do júri nos casos de crimes dolosos contra a vida, pois, este será realizado normalmente, só que na justiça federal.

4.1.2. Princípio da reserva legal

Para Rogério Lauria Tucci (2002, p. 220), o princípio da reserva legal é uma conseqüência constitucional do devido processo legal, constante do parágrafo XXXIX do artigo 5° da lei maior, segundo o qual não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal.

Um dos fundamentos da ação direta de insconstitucionalidade em que a AMB combate o incidente de deslocamento de competência é a violação a tal princípio, pois, o parágrafo 5° do artigo 109 não define o que seja uma grave lesão aos direitos humanos e nem quais tipos de crimes deveriam ser relacionados a essa condição.

Cesare Beccaria, ao definir o princípio da reserva legal, afirma que:

Apenas as leis podem fixar penas com relação aos delitos praticados; e esta autoridade não pode residir senão na pessoa do legislador, que representa toda a sociedade agrupada por um contrato social. (apud PRADO, 2000, p. 78).

Observa-se que o incidente de deslocamento de competência é um instrumento processual-constitucional, que em nada inova quanto à tipificação de condutas violadoras de bens jurídicos protegidos por nossas leis ou por tratados internacionais.

Não há qualquer tentativa, com a federalização, de se agravar penas ou de se criar tipos penais, pois, estes estão previamente definidos em nosso ordenamento.

4.1.3. Norma de eficácia plena e aplicabilidade imediata

Classificam-se as normas que a EC 45/2004 acrescentou ao artigo 109 da Constituição como normas de eficácia plena e aplicabilidade imediata. Isto dá-se em razão de versarem sobre direitos humanos. Ensina Flávia Piovesan (2003, p. 345) que em tais casos:

O princípio constitucional da aplicabilidade imediata das normas definidoras de direitos e garantias fundamentais intenta assegurar a força vinculante dos direitos e garantias de cunho fundamental, ou seja, objetiva tornar tais direitos prerrogativas diretamente aplicáveis pelos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário. Isso significa que esse princípio investe os Poderes Públicos na atribuição constitucional de promover as condições para que os direitos e garantias fundamentais sejam reais e efetivos.

Paulo Bonavides (2004, p. 243), que emprega a tal espécie de norma a nomenclatura de norma constitucional imediatamente perceptiva, afirma que José Afonso da Silva foi um dos primeiros juristas no Brasil a formular uma classificação própria e autônoma das normas constitucionais e que é a aqui empregada.

Normas imediatamente preceptivas são, portanto, "no sentido corrente e convencional da expressão", como afirma um dos mais abalizados constitucionalistas que versaram o tema da eficácia das normas constitucionais, aquelas que diretamente "regulam relações entre cidadãos, e entre o Estado e os cidadãos." (BONAVIDES, 2004, p.251)

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Tomando-se por base a disposição do parágrafo 1° do artigo 5°, não há qualquer necessidade de norma infra-constitucional regulamentadora dos dispositivos da federalização dos crimes graves contra os direitos humanos, como afirma a AMB, estando estes aptos a produzirem efeitos desde sua entrada em vigor.

4.1.4. O juízo privativo do Procurador-Geral da República

Como já afirmado anteriormente, o juízo sobre a conveniência e a oportunidade da propositura do IDC é exclusiva do Procurador-Geral da República. Pode-se afirmar que, tal como o ministério público detêm a exlusividade para o oferecimento das denúncias criminais, o chefe do Ministério Público da União também a tem para pedir a federalização de uma causa que verse sobre grave violação aos direitos humanos.

Analogicamente às ações penais, cabe apenas ao membro do Parquet federal a decisão sobre a caracterização ou não de um crime como sendo grave violação a tais direitos. Isso se dá, pois, nem mesmo o legislador constituinte derivado delimitou tal interpretação, que acertadamente deve ser ampla e irrestrita, servindo as construções doutrinárias apresentadas apenas de indicativos.

Tampouco cabe ao STJ decidir se uma violação seria ou não grave, bastando a verificação da previsibilidade do direito alegado em tratados internacionais e com conteúdo materialmente humanista.

4.2. O Caso Dorothy Stang

Passa-se a fazer um relato sobre a vida e as condições em que deu-se a morte da missionária Irmã Dorothy Stang. Após acontecimento bárbaro, que despertou a atenção da comunidade internacional para a precariedade com que o Brasil trata os defensores de direitos humanos, o governo federal se mobilizou e adotou prividências.

Foi instituída a política nacional de proteção aos defensores dos direitos humanos (anexo c), com a finalidade de estabelecer princípios e diretrizes de proteção e assistência à pessoa física ou jurídica, grupo, instituição, organização ou movimento social que promove, protege e defende os Direitos Humanos, e, em função de sua atuação e atividade nessas circunstâncias, encontra-se em situação de risco ou vulnerabilidade.

4.2.1. A missionária

Dorothy Mae Stang nasceu nos Estados Unidos em 7 de junho de 1931. Segundo Peres (2005), entrou para a Congregação Irmãs de Notre Dame de Namur da sua cidade natal (Dayton – Ohio), onde fez votos de ajuda aos pobres e aos marginalizados.

No ano de 1966 mudou-se para o Brasil, onde naturalizou-se, iniciando na cidade de Coroatá, Estado do Maranhão, um trabalho com pequenos agricultores que faziam parte das Comunidades Eclesiais de Base da localidade (CEBS). Buscavam, na esteira do pensamento do teólogo Leonardo Boff e da Teologia da Libertação, a efetivação da justiça social.

Tais agricultores, pessoas pobres que tinham em suas querências elemento de subsistência, foram pressionados pela alta concentração de terras dos latifúndios a deslocarem-se para a região central do Estado do Pará.

Desde a década de 80, a Terra do Meio (centro do Pará) é palco de intensos conflitos de terras envolvendo madeireiros e pequenos agricultores, que chegaram à região junto com a rodovia Transamazônica e os devaneios megalomaníacos dos generais presidentes.

Dorothy Stang, vislumbrando os novos problemas que tais trabalhadores teriam ao chegar a uma região pressionada pelo afluxo populacional, -muda-se para Anapu, onde inicia o Projeto de Desenvolvimento Sustentável (PDS), buscando dar terras e assistência àqueles lavradores pauperizados que viviam sob o jugo da grilagem e do desmatamento desenfreado.

4.2.2. O assassinato

Em um episódio lamentável de nossa história, com repercussão internacional, na manhã de 12 de fevereiro de 2005 a missionária foi assassinada por Rayfran das Neves Sales (Fogoió) e Clodoaldo Carlos Batista (Eduardo). Enquanto ela caminhava pelo projeto que ajudou a implantar em Anapu, foi abordada por seus algozes, que lhe desferiram seis tiros a queima roupa.

Além dos executores, foram denunciados Amair Feijoli da Cunha (Tato), como intermediário, e Vitalmiro Bastos de Moura (Bida), como mandante do crime (BRASIL, 2005a).

Em 10 de dezembro de 2005, Rayfran foi condenado a 27 anos e Clodoaldo a 17 anos de reclusão. Eles eram réus confessos e revelaram em depoimento todos os detalhes do delito.

A versão apresentada por Rayfran afirmou:

‘Que, por volta das 7h30min, RAIFRAN e EDUARDO encontraram com IRMÃ DOROTHY há aproximadamente 150 metros do barraco de CÍCERO, no local exato onde foi encontrado o corpo da freira; Que, EDUARDO iniciou uma discussão com IRMÃ DOROTHY nos termos relatados no depoimento prestado na Policia Civil em Altamira na data de hoje; Que após IRMÃ DOROTHY ter lido o trecho da Bíblia, retirando-se do local e falando que "se tivesse de morrer morreria ali, pelo pessoal (referindo-se aos assentados do PDS)", QUE, IRMÃ DOROTHY virou as costas e prosseguiu em direção ao barraco onde seria realizada uma reunião; Que tendo em vista que CÍCERO estava próximo a IRMÃ DOROTHI e estava ouvindo os últimos trechos da discussão travada entre EDUARDO e IRMÃ DOROTHY o interrogado piscou para EDUARDO objetivando a confirmação se era para desferir os disparos mesmo na presença de CÍCERO; QUE, EDUARDO balançou a cabeça respondendo positivamente a pergunta do interrogado e em seguida chamou IRMÃ DOROTHY; Que, quando a freira virou de frente para o interrogado o mesmo efetivou o disparo no meio do corpo da vítima; Que, IRMÃ DOROTHY caiu ao chão de costas, tendo o interrogado aproximado o revólver de uma distância de 20 cm e efetuado mais um disparo nas costas e outros quatro na cabeça da freira; Que, todos os disparos foram efetivados do revólver calibre 38 fornecido por TATO para o interrogado, Que, quem haveria de efetivar os disparos seria EDUARDO mas na sexta-feira à noite passou a arma para o interrogado, afirmando que não teria coragem de atirar.’ (vide: fls. 79. do Anexo) (BRASIL, 2005b).

Já Clodoaldo sustentou:

‘Que antes de o interrogado e RAIFRAN saírem do barraco TATO falou para RAIFRAN "não é pra falhar dessa vez, que é pra fazer o serviço"; Que, encontraram IRMÃ DORATHY, tendo o interrogado sentado sobre o tambor e RAIFRAN permanecido de pé; Que, a freira cumprimentou os dois e falou que não poderiam plantar capim porque estavam cometendo crime ambiental e aquilo iria ser tirado porque seria uma área do PDS; Que, falou ainda sobre direitos da terra e que entendia a posição do interrogado e de RAIFRAN pois os mesmos eram apenas "soldados mandados"; Que, em certo momento IRMÃ DOROTHY ainda ficou de cócoras e mostrou alguns mapas da região e que no ramal onde estavam seria aproveitado os dois lados para fins de criação de PDS (Projeto de Desenvolvimento Sustentável); Que, IRMÃ DOROTHY fez alguns comentários sobre procedimento que respondia pro supostamente oferecer armas para colonos acrescentando que "a única arma que possuía era essa aqui", puxando a Bíblia de dentro de sua bolsa; QUE, o interrogado recorda que o trecho da Bíblia lido por IRMÃ DOROTHY falava sobre direitos a um pedaço de terra e que Deus deixou as coisas para todo mundo utilizar; QUE, RAUFRAN piscou para o interrogado quando a IRMÃ DOROTHY ainda estava abaixada querendo confirmação do interrogado sobre a execução do crime, tendo o mesmo balançado a cabeça respondendo negativamente; QUE RAIFRAN piscou uma segunda vez quando IRMÃ DOROTHY terminou de ler a Bíblia, tendo o interrogado novamente sinalizado de forma negativa; QUE, neste momento CÍCERO já estava no local aproximadamente um metro e meio do interrogado, de RAIFRAN e a IRMÃ DOROTHY; QUE, após ter lido o trecho da Bíblia e de ter se despedido do interrogado e de RAIFRAN, este falou "pois é dona, desse jeito vai ficar difícil", tendo logo após sacado seu revólver calibre 38 e efetuado um primeiro disparo na direção do peito da IRMÃ DOROTHY, que caiu de bruços ao chão; QUE, no momento do primeiro disparo a freira possuía uma pasta branca, de plástico com algumas letras azuis ou pretas, tendo levantado as mãos antes de ser atingida; QUE, logo em seguida RAIFRAN efetuou outros disparos em IRMÃ DOROTHY, tendo o interrogado corrido para dentro do mato logo após o primeiro disparo, seguido de RAIFRAN, após ter efetuado todos os disparos;’ (fls. 88/89). (BRASIL, 2005b).

O intermediário do crime, Amair Feijoli da Cunha, foi condenado a 18 anos de reclusão em julgamento ocorrido em abril de 2006. O mandante recebeu a maior pena, de 30 anos de reclusão, em 15 de maio de 2007.

A motivação do assassinato, que ganhou repercussão internacional, foi o descontentamento do fazendeiro Vitalmiro Bastos de Moura com o fato de uma gleba de terras que alegava lhe pertencer ser destinada ao Projeto de Desenvolvimento Sustentável, que tinha na missionária sua maior liderança, além do trabalho emancipatório realizado junto aos pequenos agricultores.

4.3. O Incidente de Deslocamento de Competência Nº 1 – PA

Passa-se a analisar o primeiro incidente de deslocamento de competência da história de nosso ordenamento, com a verificação de seu trâmite, resultado e implicações.

4.3.1. O pedido do Procurador-Geral da República

No dia 3 de março de 2005, atendendo a pedido da Procuradoria da República no Estado do Pará, o Procurador-Geral da República Cláudio Fonteles ajuizou no Superior Tribunal de Justiça o IDC que recebeu o número 1, por ser inaugural em nosso ordenamento, e a sigla PA, em referência ao Estado do Pará, de onde buscava-se deslocar a competência.

Amparou seu pleito no artigo 109, §5º da Constituição, alegando estarem presentes os dois requisitos para o deslocamento de competência, a saber:

a) a grave violação de direitos humanos; e

b) a garantia de que o Brasil cumpra com as obrigações decorrentes de pactos internacionais, firmados sobre direitos humanos.

Sustentou Cláudio Fonteles (BRASIL, 2005b):

Por certo que, situações claras, assim demonstradas, de desacreditar o trabalho daqueles que se dedicam, indiscutivelmente, à defesa dos direitos humanos implica no comprometer "o cumprimento de obrigações decorrentes de tratados internacionais de direitos humanos" a que o Brasil se obrigou.

Sem dúvida, outrossim, que a dupla nacionalidade da vítima, covarde e brutalmente assassinada, diga-se sempre, é indicador real da responsabilização do Brasil em Cortes internacionais, a que aderimos na proteção dos direitos humanos, justo por seu caráter universal, a ter-se o quadro retro-descrito, como propício.

Ainda, e por essa linha de argumentação, é notório que a Federação deslocou contingente real do Exército brasileiro, e delegados e agentes da polícia federal para o combate diuturno e incessante ao quadro de criminalidade constante e crescente, que, na área, as autoridades estaduais não lograram debelar.

Pede, portanto, o Procurador-Geral da República que a teor do artigo 1º, da Resolução nº 6/2005 seja o presente autuado como Incidente de Deslocamento de Competência, sendo distribuído na forma do Parágrafo único, do aludido artigo 1º.

Pede, a final, que seja o incidente conhecido e deferido para que a investigação, o processamento, e o julgamento dos mandantes, intermediários e executores do assassinato da irmã Dorothy Stang aconteça na Justiça Federal, no Estado do Pará.

O IDC foi recebido no STJ e julgado pela Terceira Seção daquele tribunal.

4.3.2. O julgamento no STJ

A Resolução STJ nº 6/2005 regulamentou a tramitação do Incidente de Deslocamento de Competência no âmbito daquele tribunal.

Dispõe o ato oficial:

Art. 1º. Fica criada a classe processual de Incidente de Deslocamento de Competência - IDC, no rol dos feitos submetidos a esta Corte, em razão ao que dispõe a Emenda Constitucional nº 45/2004 mediante o acréscimo do parágrafo 5º ao art. 109. da Constituição Federal.

Parágrafo único. Cabe à Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça o julgamento da hipótese prevista no caput deste artigo.

Art. 2º. Fica sobrestado, até que este Tribunal delibere acerca do assunto, o pagamento de custas dos processos tratados nesta resolução que entrarem no Superior Tribunal de Justiça após a publicação da mencionada Emenda Constitucional.

Art. 3º. A Secretaria Judiciária, após aquiescência do Presidente da Corte, implementará todas as providências necessárias ao cumprimento desta resolução.

Art. 4º. Esta resolução entrará em vigor na data de sua publicação.

Assim agiu o STJ, pois, as normas que versam sobre direitos humanos têm aplicabilidade imediata, de acordo com artigo 5º, §1º de nossa Constituição. O processo (BRASIL, 2005d) recebeu o número 2005/0029378-4, sendo designado relator o Ministro Arnaldo Esteves Lima.

Em seu voto, o relator fixou três fatores que considerou imprescindíveis à procedência do deslocamento de competência:

a) grave violação a direitos humanos;

b) assegurar o cumprimento, pelo Brasil, de obrigações decorrentes de tratados internacionais;

c) a incapacidade (oriunda de inércia, negligência, falta de vontade política, de condições pessoais, materiais etc.) de o Estado-membro, por suas instituições e autoridades, levar a cabo, em toda a sua extensão, a persecução penal.

Tal entendimento acabou por ampliar os requisitos que, no entendimento do Procurador-Geral da República, seriam apenas os dois explícitos no texto constitucional.

Segundo o Ministro-Relator:

Tais requisitos – os três – hão de ser cumulativos, o que parece ser de senso comum, pois do contrário haveria indevida, inconstitucional, abusiva invasão de competência estadual por parte da União Federal, ferindo o Estado de Direito e a própria federação, o que certamente ninguém deseja, sabendo-se, outrossim, que o fortalecimento das instituições públicas – todas, em todas as esferas – deve ser a tônica, fiel àquela asserção segundo a qual, figuradamente, "nenhuma corrente é mais forte do que o seu elo mais fraco". Para que o Brasil seja pujante, interna e externamente, é necessário que as suas unidades federadas – Estados, DF e Municípios –, internamente, sejam, proporcionalmente, também fortes e pujantes.

Destarte, mesmo se fazendo presentes os dois requisitos previstos no § 5º do art. 109. da CF, a ausência do terceiro elemento que lhe é naturalmente implícito, para nós, afasta a sua concreta aplicação e, a par disso, coloca o Brasil ao abrigo da eventual submissão a julgamentos por Cortes Internacionais, porque ele não poderá ser acusado de ter-se omitido na investigação, julgamento e punição dos culpados, sempre fiel ao princípio da legalidade, pois um seu Estado-membro, com seu apoio, atua adequadamente em tal sentido. O feito, aliás, já se encontra em fase adiantada (art. 406. e segs. do CPP), estando os denunciados presos e prestes a serem submetidos a seu juízo natural, qual seja, o Tribunal do Júri estadual. (BRASIL, 2005d)

Assim sendo, votou pelo indeferimento do deslocamento da competência da Justiça Estadual do Pará para a Justiça Federal do Pará, ressalvando que não haveria óbice à investigação da Polícia Federal, nos termos da Lei nº 10.446/2002.

O Ministro Nilson Naves acompanhou o voto do relator, acrescentando que tal decisão não implicava em diminuição dos meios processuais de proteção de direitos humanos, salientando que:

Ambas as Justiças têm aptidões para exercitar a competência, e o que as distinguirá será o exame de cada caso, a par, obviamente, da presença do pressuposto constitucional. Isto é o que se recomenda: seja dada, em tese, ao incidente em questão interpretação estrita. Veja-se que, no caso de que estamos tratando, as indicações são todas no sentido de que a Justiça local vem cumprindo exemplarmente sua missão, tanto que o processo está prestes a ter por finda a sua instrução. (BRASIL, 2005d)

No voto do Ministro José Arnaldo da Fonseca, foi citada uma estatística da Comissão Pastoral da Terra, segundo a qual nos últimos 33 anos ocorreram 772 assassinatos relacionados à questão fundiária no Estado do Pará. Entretanto, houve apenas três casos onde os mandantes dos crimes foram julgados.

Ante esse quadro do Estado do Pará, caberia invocar-se o novo preceito constitucional para ter-se federalizada a competência para processar a apuração da responsabilidade pelo homicídio da missionária.

Acredito que o eminente Procurador-Geral da República, naqueles momentos do horrendo crime e de posse desses dados de contínua e permanente inatuação das instituições do Estado, levando a impunidade em crimes dessa natureza, animou-se a inaugurar o recém-criado instrumento jurídico constitucional.

No entanto, em razão da repercussão ruidosa interna e no exterior, envidaram os órgãos policiais do Ministério Público e do Poder Judiciário local em elucidar e trazer a público os autores do hediondo crime, prendendo-os, e a fase do processo já superou a da instrução.

Penso que assim, pelo temor inicial de perseverar-se na inércia, é que se acenou para o deslocamento de competência. Poder-se-ia, a pretexto didático, para outras unidades federativas, aplicar-se a federalização, todavia, não é o didatismo um de seus pressupostos, e é inegável, neste caso, que os esforços dos órgãos locais não se fizeram esperar, e a persecução penal se instaurou de pronto, faltando portanto o requisito da incapacidade de ação, advinda de inércia, descaso ou ausência de condições materiais, pessoais ou políticas. (BRASIL, 2005d).

Chamam a atenção nos votos proferidos que seguiram o relator as ponderações do Ministro Gilson Dipp (BRASIL, 2005d), que afirmou, in verbis:

[...] o Brasil, infelizmente, possui longa tradição de violação dos direitos humanos. Apesar de ser signatário de, praticamente, todas as convenções internacionais a respeito do tema, o Estado brasileiro mostrou-se ineficiente e omisso no tratamento condigno da questão. Há cerca de trinta processos por violação de direitos humanos em trâmite na Comissão Interamericana dos Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos. Certamente, dessas trinta reclamações ou representações, algumas delas, efetivamente, deverão chegar à Corte Interamericana de Direitos Humanos, Corte esta a que o Brasil aderiu em relação a sua competência para lá ser julgado por tais violações. Esta é uma realidade.

Sobre a responsabilidade da República Federativa do Brasil, sustentou que:

A referida omissão não pode ser atribuída apenas aos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário ou ao Ministério Público. É uma omissão do Estado como um todo, ou seja, da União, dos Estados federados. Esta é uma realidade que devemos reconhecer e com a qual temos que conviver. Quantos crimes de tortura foram processados e julgados, seja para condenar seja para absolver? A nossa lei de tortura é recente.

Certamente, na linha de toda essa inspiração é que o constituinte resolveu, por meio da Emenda Constitucional n.º 45, dar tratamento de choque a essas violações, e em dois dispositivos.

O primeiro dispositivo é aquele pertinente à recepção dos tratados internacionais, que em tese, suplantou as diverências sobre a hierarquia dos mesmos. Detalha o Ministro que:

O primeiro deles é o § 3º do art. 5º da Constituição, que resolveu uma séria divergência doutrinária e jurisprudencial relacionada a saber se os tratados referentes a violação dos direitos humanos, celebrados pelo Brasil, teriam cunho de norma constitucional ou de norma infraconstitucional. As decisões do Supremo Tribunal Federal orientavam-se, de forma reiterada, no sentido de que, mesmo esses tratados, à luz da Constituição, deveriam ser tidos como normas infraconstitucionais. Na Emenda n.º 45, porém, os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos, desde que aprovados pelo Congresso Nacional por meio de suas duas Casa, serão equivalentes a emenda constitucionais, o que configura o reconhecimento explícito de que era necessário que a Constituição trouxesse um parâmetro para esses tratados internacionais, para aplicação interna.

Após tal introdução, passa a discorrer sobre o Incidente de Deslocamento de Competência:

O segundo dispositivo, grande momento da Emenda Constitucional n.º 45, foi a criação do Incidente de Deslocamento de Competência para a Justiça Federal, no caso de grave violação de direitos humanos, com a finalidade de assegurar o cumprimento das obrigações decorrentes dos tratados internacionais dos quais o Brasil fosse signatário.

Não tenho a menor dúvida de que a norma não é de eficácia contida. Ela pode ser aplicada.

Penso também que cabe, sim, ao Procurador-Geral da República, no exercício de seu juízo de exame a respeito do caso concreto, ser portador do pedido de deslocamento do mencionado incidente.

Da mesma forma, não vislumbro qualquer defeito no fato de o constituinte ou legislador não ter definido o que é grave violação dos direitos humanos, porque grave violação dos direitos humanos é qualquer ofensa a direito humano. Assim como o Brasil, bem como outros países, não conceituou – pela sua temeridade em assim fazê-lo –, o que é uma organização criminosa, ou o que é terrorismo, também não deve, sob pena de deixar fora de sua abrangência, definir o que é grave violação aos direitos humanos.

Seguindo o entendimento dos demais ministros votantes, Gilson Dipp afirma não ser o assassinado de Irmã Dorothy Stang um caso para se deslocar a competência da Justiça Estadual do Pará para a Justiça Federal:

Agora, parece-me, Sr. Presidente, que no caso deste Incidente de Deslocamento de Competência não basta o pressuposto da grave violação de direitos humanos, decorrente do cumprimento ou descumprimento de obrigações assumidas pelo Brasil. É preciso saber se o Estado federado usou das suas estruturas para dar uma adequada resposta à violação desses direitos.

Não basta a ofensa aos direitos humanos, é preciso que essa violação não tenha sido investigada, apurada, não tenha sido objeto da persecução penal e de processamento e julgamento.

Pergunta-se: as instituições locais do Estado do Pará – não importa o passado, porque violação de direitos humanos não é exclusiva da referida unidade da federação, mas do Estado Brasileiro –, mostraram-se falhas, ineficazes ou omissas na prevenção e apuração desta ofensa aos direitos humanos? O voto do eminente Sr. Ministro Relator e as manifestações aqui realizadas evidenciam que não.

Quanto ao processo, houve a investigação policial, com a participação da Polícia Federal, na forma da Lei n.º 10.456/2005, juntamente com a Polícia local na investigação deste crime, sem que essa lei ferisse o Princípio da Autonomia Federativa. O Ministério Público deu a sua resposta, denunciando os acusados, e o Poder Judiciário, por sua vez, também está fazendo a sua parte, pois recebeu a peça acusatória e está processando o feito, o qual já se encontra em fase de apreciação da pronúncia.

Portanto, não houve, de qualquer forma, segundo meu ponto de vista, falha no aparato preventivo-repressivo de investigação, da persecução penal, do processamento e do julgamento deste caso concreto pelo Estado Federado, Estado do Pará.

A votação unânime da Terceira Seção do STJ teve, ainda, a participação do Ministros Paulo Gallotti, da Ministra Laurita Vaz e do Ministro Hélio Quaglia Barbosa.

Para Castilho (2005), o pronunciamento judiciário impôs os primeiros limites ao instituto processual constitucional, que deve ser aceito apenas quando caracterizado a grave violação de direitos humanos, a afronta a tratado internacional de proteção a direitos humanos e a ineficácia ou omissão as autoridades estaduais.

4.3.3. Temeridade da inovação judicial

Tem-se o caso da decisão sobre o IDC um típico exemplo de inovação judicial. O Superior Tribunal de Justiça criou um requisito extravagante para procedência do pedido de federalização do caso Dotothy Stang.

Não encontra-se em qualquer dispositivo constitucional ou infra-constitucional a exigência de prova da inércia estadual, mas tão somente a caracterização da grave violação e a previsibilidade em tratado internacional do direito aviltado.

Infelizmente a decisão aponta para a restrição da garantia constitucional, indicando o esvaziamento do instituto. Sempre que houver um crime cuja gravidade leve o Procurador-Geral da República a pedir seu deslocamento de competência, os estados federados mobilizar-se-ão para demonstrar à opinião pública que os fatos estão sendo apurados com o devido rigor.

Ocorre que a pedra de toque do IDC não é a busca por celeridade na justiça estadual, mas sim o afastamento da jurisdição dos fatores locais de poder, a fim de evitar-se a produção direcionada de provas e o julgamento parcial. A própria Comissão Interamericana de Direitos Humanos afirma que tais problemas ocorreram diversas vezes no Brasil.

Infelizmente trata-se de uma decisão há anos luz da realidade nacional, cujos casos de graves violações a direitos e de impunidade são a regra, como se observa exemplarmente nas decisões da CIDH e nas estatísticas da Comissão Pastoral da Terra citada anteriormente, segundo a qual, por exemplo, nos últimos 33 anos ocorreram 772 assassinatos relacionados à questão fundiária no Estado do Pará e em apenas três casos os mandantes dos crimes foram julgados.

Pode-se dizer que no caso Dorothy Stang todos os responsáveis pelo crime foram devidamente julgados e punidos. Entretanto, caso não fosse a pressão da comunidade internacional, da opinião pública e do governo federal sobre os órgãos estaduais do Pará, provavelmente seria mais um crime a integrar a vergonhosa estatística da CPT.

Essa exceção de maneira alguma pode ser sustentada como prova da razão do STJ sobre a necessidade de demonstrar-se a inércia estadual, pois, a inovação judicial do tribunal impôs uma visão restritiva de uma garantia de direitos humanos, o que é temerário.

As críticas de José Eduardo Faria (2002, p. 96) a uma cúpula do judiciário apegada em demasia aos procedimentos formais de natureza individualista, paradoxalmente, acabam por contemplar também a inovação judicial do STJ, pois, ambas desprezam o problema tradicional e sempre atual do direito, que é a questão da justiça.

4.4. Projeto de Lei nº 6.647/2006

O projeto de lei (anexo a) busca regulamentar o parágrafo 5° do artigo 109 da Constituição Federal, disciplinando o incidente de deslocamento de competência para a Justiça Federal nas hipóteses de graves violações de direitos humanos.

Acertadamente, o projeto não faz qualquer definição sobre quais sejam as graves violações, sob pena de restringir-se uma norma cuja interpretação deve ser sempre a mais ampla possível.

Sustenta que o pedido pode ser feito em qualquer fase do inquérito policial ou do processo, ampliando o entendimento sobre a matéria a ser deslocada, que passa a abranger não só a penal, mas também a cível, haja vista a necessidade de reparações àqueles que tiveram seus direitos violados.

Trata-se, a primeira vista, de um bom projeto de lei do qual espera-se a aprovação pelo Congresso Nacional.

Sobre o autor
Rodrigo Marcussi Fiatikoski

Advogado, Mestrando em Direito e Política do Petróleo pela Universidade de Dundee, Especialista em Direito Constitucional e Bacharel em Direito pela Universidade Estadual de Londrina.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FIATIKOSKI, Rodrigo Marcussi. A federalização dos crimes contra os direitos humanos . Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2700, 22 nov. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17872. Acesso em: 23 dez. 2024.

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