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O princípio da solidariedade como caminho na obtenção da cidadania plena

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Agenda 21/12/2010 às 16:01

4- Intervenção do Poder Judiciário nas Políticas Públicas

A possibilidade da intervenção.do Poder Judiciário na implementação de Politicas Públicas é um tema que gera polêmicas no mundo moderno e que está amplamente relacionado ao conceito de cidadania.

Antes da análise pormenorizada sobre o tema, insta trazer à baila o conceito de políticas Públicas. Gonçalves (2006, p. 75-76) assevera:

Quando são apresentadas definições de políticas públicas, percebe-se que elas tendem a focalizar o Estado como o agente central de sua promoção, constituindo-se sistematicamente em ações de governos. É o caso de Eros Grau, que nomeia políticas o conjunto de "todas as atuações do Estado, cobrindo todas as formas de intervenção do Poder Público na vida social". Maria Paula Dallari Bucci enuncia que políticas públicas são "programas de ação governamental voltados à concretização de direitos". Ao sintetizar várias definições, Patrícia Arzabe escreve que "políticas públicas podem ser colocadas, sempre sob o ângulo da atividade, como conjuntos de programas de ação governamental estáveis no tempo, racionalmente moldadas, implantadas e avaliadas, dirigidas à realização de direitos e redistribuição de bens e posições que concretizem oportunidades para cada pessoa viver com dignidade e exercer seus direitos, assegurando-lhes recursos e condições para a ação, assim como a liberdade da escolha para fazerem uso desses recursos".

As definições convergem também em outro ponto: a preocupação com o resultado e o efeito das políticas públicas. Para Fábio Konder Comparato, política pública "aparece, antes de tudo, como atividade, isto é, um conjunto de normas e atos tendentes à realização de um objetivo determinado". Duran escreve que "uma política pública é a busca explícita e razoável de um objetivo graças à alocação adequada de meios onde a utilização razoável deve produzir conseqüências positivas".Vale ainda destacar a instigante definição proposta por Maria Paula Dallari Bucci em novo trabalho, buscando um conceito que possa ser operacionalizado na atuação do sistema jurídico-institucional. Segundo ele, política pública seria o programa de ação governamental que resulta de um processo ou conjunto de processos juridicamente regulados – processo eleitoral, processo de planejamento, processo de governo, processo orçamentário, processo legislativo, processo administrativo, processo judicial."

Por conseguinte, com o intuito de facilitar, podemos denominar políticas públicas como conjunto de programas de ação governamental com o fito de concretizar direitos, intervindo na vida social.

Para muitos, a interferência do Judiciário nessa seara afrontaria o Princípio Constitucional da Harmonia e Separação de Poderes, haja vista a legitimidade ordinária do Poder Executivo e Legislativo para tratar sobre o assunto.

Muitas decisões judiciais têm concebido tal intervenção, que serão tratadas no decorrer do presente item. Tais intervenções consistem na possibilidade do Judiciário se imiscuir em matérias administrativas, verificando as políticas públicas empregadas, dando a elas contornos constitucionais, visando a plena efetivação de direitos fundamentais.

As três teses frequentemente alegadas pelos que são contra a intervenção do Poder Judiciário nas Políticas Públicas (afronta à separação de poderes, discricionariedade da administração pública e reserva do possível) na grande maioria das vezes não devem ser acatadas.

De fato, o ente público somente poderá se exonerar de suas obrigações diante de justo motivo objetivamente aferível, sem importar em aniquilação ao mínimo existencial. A teoria da reserva do possível deve se ater somente aos casos onde se demonstre a real insuficiência de recursos por parte do ente, posto que não pode ser utilizada como uma desculpa genérica para omissão estatal no campo da efetivação dos direitos fundamentais.

É cediço que o Estado deve disponibilizar condições materiais imprescindíveis à dignidade da pessoa humana e assegurar que seja prestado ao cidadão o mínimo existencial. Em conseqüência, a atuação do Judiciário busca tão-somente fazer com que políticas públicas sejam encaradas de forma interativa e contributiva entre os três entes.

Os sujeitos do Poder Judiciário são também sujeitos políticos, conhecedores e transformadores da realidade social em busca do valor eterno justiça. Os cidadãos, principalmente por meio de ações coletivas, devem utilizar os instrumentos jurídico-processuais para concretização de direitos e garantias fundamentais.

Com o objetivo de aprofundar a crítica da intervenção sob um aspecto muito pouco debatido (muito além da discricionariedade, da separação de poderes e da "reserva do possível"), vale trazer importante colocação de Gonçalves (2006, p. 75-76):

Finalmente, um rápido comentário sobre o risco de um excessivo tratamento jurídico da questão. Quando se definem políticas públicas como programas que resultam necessariamente de processos jurídico-institucionais, seja na sua dimensão constitutiva, seja no plano da exigência do cumprimento, não se estaria próximo de uma outra variante de despolitização? Não será exagero dizer que "políticas públicas são conjunto de ações e programas de ação governamental que se valem precipuamente de normas jurídicas para a consecução dos objetivos estabelecidos.

O primeiro aspecto relativo diz respeito ao fato que, como destaca Patrícia Arzabe, a pirâmide kelseniana não é adequada para explicar a normatividade da política pública em seu conjunto. Nas políticas públicas, freqüentemente decretos e leis estão subordinados à racionalidade de uma portaria ou de uma resolução, e muitas vezes são implementadas por pressões da sociedade organizada à qual responde o Estado com atos e programas, nem sempre juridicamente formulados. A pergunta que se faz: isso é desejável ou não? "Amarrar" os procedimentos e os programas a um conjunto formal de regras, ou mesmo preocupar-se em definir constitucionalmente a necessidade e o alcance das políticas públicas, não são formas de impedir ou atrasar sua realização?

A segunda questão aponta na direção da transferência ao Judiciário do controle da execução das políticas públicas. Vale neste ponto citar Antoine Garapon. Em sua obra O Juiz e a democracia, de 1999, salienta ele a crescente influência que a justiça exerce sobre a sociedade francesa e a crise de legitimidade que assola as democracias ocidentais como parte de um processo de mudança social. O aumento da influência do Poder Judiciário estaria relacionado com o enfraquecimento do Estado pelo mercado e pelo desmoronamento simbólico do homem e da sociedade democrática.

Dessa maneira, o aumento da litigância processual seria provocado pelo individualismo capitalista e o rompimento com laços sociais anteriores – família, Igreja, Estado Provedor etc.Tudo o que era antes controlado pela relação interpessoal passa a ser regido por um contrato jurídico, com a invasão do direito de arenas que eram exclusivas de outras instituições sociais. E é importante salientar que a interferência judiciária é um fenômeno facilitado, na prática, pelos próprios políticos. A inflação legislativa tem um rebatimento imediato no Judiciário, já que aumenta a área de atuação do mundo jurídico. E o resultado disso é que o cidadão individualizado não mais se envolve em questões de mobilização social e a justiça se torna um verdadeiro balcão de queixas sociais: "A dimensão coletiva do político desaparece. O debate judiciário individualiza as obrigações: a dimensão coletiva certamente se expressa aí, porém de maneira incidental. Ela encoraja um engajamento mais solitário que solidário".

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Em que pese o belíssimo texto supramencionado, temos que observar as benesses da intervenção judicial. Numa sociedade que anseia uma efetiva ação política, a intervenção judicial é, muitas vezes, o único meio de "buscar ar" numa situação absolutamente sufocante.

Porém, não há dúvidas de que o ideal seria a efetivação das políticas públicas pelos meios mais comuns, ou seja, pelos políticos eleitos democraticamente.

Importante se faz trazer algumas decisões demonstrando como a intervenção se dá na prática:

"Embora resida, primariamente, nos Poderes Legislativo e Executivo, a prerrogativa de formular e executar políticas públicas, revela-se possível, no entanto, ao Poder Judiciário, determinar, ainda que em bases excepcionais, especialmente nas hipóteses de políticas públicas definidas pela própria Constituição, sejam estas implementadas pelos órgãos estatais inadimplentes, cuja omissão - por importar em descumprimento dos encargos político-jurídicos que sobre eles incidem em caráter mandatório - mostra-se apta a comprometer a eficácia e a integridade de direitos sociais e culturais impregnados de estatura constitucional. A questão pertinente à "reserva do possível". (STF – RE 436.996-6/SP, 2ª Turma, Rel. Min. Celso de Mello).

"Cumpre advertir, desse modo, que a cláusula da "reserva do possível", ressalvada a ocorrência de justo motivo objetivamente aferível, não pode ser invocada pelo Estado, com a finalidade de exonerar-se do cumprimento de suas obrigações constitucionais, notadamente quando, dessa conduta governamental negativa, puder resultar nulificação ou, até mesmo, aniquilação de direitos constitucionais impregnados de um sentido de essencial fundamentalidade". (STF, ADPF nº 45, Min. Celso de Mello)

"(...)a alegação de violação à separação dos Poderes não justifica a inércia do Poder Executivo estadual do Tocantins em cumprir seu dever constitucional de garantia dos direitos da criança e do adolescente, com a absoluta prioridade reclamada no texto constitucional (art.227). (...)Não há violação ao princípio da separação dos Poderes quando o Poder Judiciário determina ao Poder Executivo estadual o cumprimento do dever constitucional específico" (STF, suspensão de liminar nº 235)

Conforme se depreende, a atuação do Judiciário tem se mostrado eficaz e importante na garantia de direitos básicos do cidadão, quando os Poderes Executivo e Legislativo deixam a desejar.

Afinal, como assevera Bercovicci (2006, p. 161), em uma democracia, o ponto fundamental é entender o povo como sujeito da soberania, ou seja, há uma completa identificação entre soberania estatal e soberania popular.


5- A solidariedade como nova dimensão da cidadania

Hoje em dia, ao pensarmos no conceito de cidadão, devemos imaginá-lo dentre de um cenário internacional cosmopolita, principalmente diante da nova forma de mercado mundial, onde a globalização econômica gerou efeito nefasto nos países que não resolveram problemas básicos de cidadania.

Está na hora de mudar diversos conceitos que se cristalizaram na mente humana. Mascaro aduz:

Nas pungentes palavras de Celso Furtado: "Em nenhum momento de nossa história foi tão grande a distância entre o que somos e o que esperávamos ser" (...)

Esta falta de atenção ao outro, ao próximo, este estranhamento do diferente, é causa de uma despreocupação solene e sem vergonha moral para com o sofrimento da humanidade.(...)" (2008, p.160-161)

O dever de solidariedade se faz premente na busca de uma sociedade mais livre e igualitária. A igualdade e a liberdade são inerentes à condição humana, são um valor universal. Nesse sentido, Smanio (2008, p.337-338):

A questão política tem sido costumeiramente debatida como uma tensão entre a liberdade e a igualdade. Ocorre que, como lembra Fábio Comparato, "enquanto a liberdade e a igualdade põem as pessoas umas diante das outras, a solidariedade as reúne, todas, no seio de uma mesma comunidade. Na perspectiva da igualdade e da liberdade, cada qual reivindica o que lhe é próprio. No plano da solidariedade, todos são convocados a defender o que lhes é comum.

Desta forma, a nova dimensão do conceito de cidadania não pode prescindir da idéia de solidariedade, para resgatar o seu sentido de participação política, bem como para a garantia da efetivação dos direitos fundamentais.

A concepção republicana do Estado de Habermas, apesar de manter a idéia de status como caracterizador da cidadania, aponta para a necessidade da garantia de um processo inclusivo de formação de opinião e vontade, onde sujeitos iguais e livres se entendem a respeito de quais objetivos e normas são de interesse comum de todos. Afirma que ao cidadão republicano é exigido mais do que a orientação por seu próprio interesse

Boaventura de Souza Santos também anota as transformações do conceito de cidadania, "no sentido de eliminar os novos mecanismos de exclusão da cidadania, de combinar formas individuais com formas coletivas da cidadania e, finalmente, no sentido de ampliar esse conceito para além do princípio da reciprocidade e simetria entre direitos e deveres".

A solidariedade significa o caminho da participação dos cidadãos nas instituições do Estado e na ocupação dos espaços das instituições da sociedade civil, formando uma rede de articulação entre Estado e sociedade.

O paralelismo entre as instituições republicanas clássicas, incluindo os direitos civis, políticos e sociais, e as redes de coordenação entre Estado e sociedade também é apontado por José Maurício Domingues. Para o referido autor, a combinação das instituições republicanas com as redes de coordenação, buscando a incorporação da população à institucionalidade formal, deve contribuir para gerar o que chamou de solidariedade complexa.

De fato, a conceituação de cidadania precisa ser efetuada levando-se em consideração suas diversas dimensões. A dimensão vertical do liberalismo que abrange apenas os direitos políticos do cidadão precisa ser extirpada. Faz-se necessário o reconhecimento da cidadania na sua dimensão horizontal, de solidariedade.

O preâmbulo da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 traz: "Considerando que a liberdade, a justiça e a paz no mundo tem por base o reconhecimento da dignidade intrínseca e dos direitos iguais e inalienáveis de todos os membros da família humana"

O preâmbulo da Convenção Americana sobre Direitos Humanos de 1969 declara: "Reconhecendo que os direitos essenciais do homem não nascem do fato de ser nacional de determinado Estado, mas sim, tem como fundamento os atributos da pessoa humana."

Observando-se os preâmbulos supracitados, observa-se que os direitos humanos e direitos de cidadania devem ser assegurados pelo Estado Constitucional e pela comunidade internacional.

A Constituição Federal, em seu art. 3º, inciso I, assevera que constitui objetivo fundamental da República Federativa do Brasil construir uma sociedade livre, justa e solidária.

A Constituição desvinculou a cidadania da nacionalidade, conferindo maior amplitude ao seu significado. Ao lado do conceito liberal de cidadania, de vinculação à nacionalidade, como concessão de direitos políticos de votar e ser votado há o conceito amplo, em consonância com a nova dimensão da cidadania, como expressão de direitos fundamentais e solidariedade.

O art. 5º do Texto Maior traz os direitos e deveres individuais e coletivos.Há previsão expressa de garantias de exercício da cidadania entendida em sentido amplo. Destaca-se, principalmente, os incisos LXXI e LXXVII que tratam do mandado de injunção e da gratuidade dos atos necessários ao exercício da cidadania que alargam o conceito de cidadania, demonstrando-se que a Carta Magna assegura à cidadania, além dos direitos políticos e além mesmo da concessão dos direitos fundamentais, outra dimensão do seu exercício, no dever de solidariedade, da defesa do interesse público e do respeito à dignidade da pessoa humana.

Conforme Moraes (2007, p. 157) o Supremo Tribunal Federal decidiu de forma unânime pela auto-aplicabilidade do mandado de injunção, independentemente de edição de lei regulamentando-o, em face do art. 5º, §1º, da CF, que determina que as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata (STF – Mandado de Injunção 107 foi o primeiro a ser analisado).

Outrossim, o mesmo autor (p. 159) afirma que o mandado de injunção somente se refere à omissão de regulamentação de norma constitucional.

Os direitos fundamentais são entendidos como normas jurídicas positivas de nível Constitucional, que refletem os valores mais essenciais de uma sociedade, visando proteger diretamente a dignidade humana na busca pela legitimação da atuação estatal (LOPES, 2006, p. 39).

Aplicando-se essa definição aos direitos fundamentais à cidadania, conclui-se pela sua perfeita adequação. Trata-se, portanto, de um direito fundamental individual.

Se os direitos civis possuem como titulares os indivíduos e a titularidade dos direitos sociais é coletiva, a atualidade traz direitos cuja titularidade é difusa e universal (PEREZ LUNO, 2006, apud SMANIO, 2009, p. 17).

É necessário explorar a cidadania multicultural, reconhecendo-se ao cidadão a possibilidade de exercitar várias cidadanias, locais, regionais, étnicas, a fim de que possam exercer seus direitos

Esta é uma evolução do conceito de cidadania em decorrência das mudanças ocorridas no século XXI. A efetivação dos direitos fundamentais torna-se imperiosa, razão pela qual o simples conceito liberal não mais subsiste.

Sobre o autor
Leandro Pereira Passos

Advogado.Bacharel em Direito pela Universidade Mackenzie.Especialista em Direito da Seguridade Social pela UNISAL.Mestrando em Direito Político e Econômico pela Universidade Mackenzie

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PASSOS, Leandro Pereira. O princípio da solidariedade como caminho na obtenção da cidadania plena. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2729, 21 dez. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/18078. Acesso em: 22 nov. 2024.

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