Resumo: Busca o presente trabalho apreciar importante questão sobre o tema do licenciamento ambiental, qual seja a possibilidade de atuação supletiva do ente federal. Examina-se aqui os requisitos desta atuação, bem como seus limites, visando fomentar a discussão sobre a questão.
Palavras-chave: Licenciamento Ambiental. Supletividade. Inépcia e inércia.
I - INTRODUÇÃO
A competência em sede de licenciamento ambiental, matéria tormentosa na doutrina e jurisprudência, possui como um dos pontos de tensão a discussão sobre a atuação supletiva do Ibama.
Nos termos da Lei de Política Nacional do Meio Ambiente, à autarquia federal – erigida à função de órgão executor do SISNAMA (artigo 6º, IV) – compete não apenas a condução dos licenciamentos ordinariamente a ela reservados, marcados pela significância dos impactos ambientais, de âmbito nacional ou regional (artigo 10, § 4º), mas também a função supletiva dos licenciamentos a cargo dos demais entes (artigo 10, caput).
É essa a redação do mencionado dispositivo:
Art. 10 - A construção, instalação, ampliação e funcionamento de estabelecimentos e atividades utilizadoras de recursos ambientais, considerados efetiva e potencialmente poluidores, bem como os capazes, sob qualquer forma, de causar degradação ambiental, dependerão de prévio licenciamento de órgão estadual competente, integrante do Sistema Nacional do Meio Ambiente - SISNAMA, e do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis - IBAMA, em caráter supletivo, sem prejuízo de outras licenças exigíveis.
(...)
4º Compete ao Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis - IBAMA o licenciamento previsto no caput deste artigo, no caso de atividades e obras com significativo impacto ambiental, de âmbito nacional ou regional. (g.n.)
A definição das hipóteses que justificam essa atuação supletiva, bem como seus limites, é matéria ainda pouco explorada na doutrina e jurisprudência, merecendo apreciação no presente trabalho.
II – DO LICENCIAMENTO AMBIENTAL SUPLETIVO
Desde logo, pode-se afirmar que não se confundem as competências ordinária e supletiva do Ibama, especialmente porque a última manifesta-se exatamente nas hipóteses de competência ordinária dos demais entes federativos.
A primeira questão que se põe, portanto, refere-se às circunstâncias aptas a ensejar a atuação supletiva da autarquia federal, as quais não estão expressamente consignadas na Lei nº. 6.938/81, destacando-se, de início, a excepcionalidade da medida, na medida em que – ao tempo em que impõe ao ente federal atuação fora dos limites tradicionalmente ocupados – conspira contra o escopo principal da legislação ambiental, qual seja o de fortalecer os entes municipais e estaduais, descentralizando e generalizando a gestão ambiental.
Noutro giro, não se pode perder de vista que o caminhar constante do processo de licenciamento é direito fundamental do administrado, haja vista que a Constituição estabelece a duração razoável do processo como obrigatória também nos processos administrativos (artigo 5º, inciso LXXVIII).
Dessa forma, em sendo o exercício das atividades potencialmente poluidoras condicionado ao respeito ao meio ambiente (artigos 170, VI, e 225 da Constituição), é imperioso que o Poder Público cerque-se de instrumentos aptos a concluir sua apreciação de modo eficiente.
Dito isso, a atuação supletiva do Ibama reclama a presença de graves obstáculos à condução ordinária – pelo ente competente – do licenciamento, sendo tais requisitos expostos no julgado do TRF da 4ª Região, abaixo colacionado, que foi mantido, sem ressalvas, pelo Colendo STJ, nos autos do REsp nº. 818.666/PR:
"EMENTA:PROCESSUAL CIVIL. DECISÃO QUE EXCLUI LITISCONSORTE. PROSSEGUIMENTO DO FEITO. LEGITIMIDADE PASSIVA. MATÉRIA DE ORDEM PÚBLICA. APRECIAÇÃO EX OFFICIO. IBAMA. COMPETÊNCIA SUPLETIVA. LEI Nº 6.938/81. SUPRESSÃO PARCIAL OU TOTAL DE FLORESTAS. ART. 3º, § 1º, da Lei nº 1.885/38,de 29.06.99. PRÉVIA AUTORIZAÇÃO DO ÓRGÃO FEDERAL. ÁREA DE PRESERVAÇÃO PERMANENTE. ART. 1º, III, DA LEI Nº 4.771/65. INTERESSE COMUM.
(omissis)
3 - O artigo 10, caput, da Lei n.º 6.938/81 prevê que o IBAMA licenciará em caráter supletivo, em relação ao órgão estadual ambiental. A atuação supletiva do IBAMA apesar de a lei não indicar os seus parâmetros, deverá ocorrer, principalmente, em duas situações: se o órgão estadual ambiental foi inepto ou se o órgão permanecer inerte ou omisso. A ação supletiva do IBAMA, como do órgão existente ao tempo da elaboração da lei 6.938/81, a SEMA - Secretaria Especial do Meio Ambiente, justifica-se pela inexistência de quadros funcionais e para possibilitar que os Estados tomassem à frente a gestão ambiental. (omissis)".
(TRF4, AC 1999.70.00.029504-6, Terceira Turma, Relator p/ Acórdão Luiz Carlos de Castro Lugon, DJ 31/08/2005)"
Ao tratar do tema, afirma Paulo Affonso Leme Machado [01]:
"4.2. Licenciamento ambiental supletivo pelo IBAMA
O art. 10, caput, da Lei 6.938⁄81 prevê que o IBAMA licenciará em caráter supletivo, em relação ao órgão estadual ambiental.
A atuação supletiva do IBAMA, apesar de a lei não indicar os seus parâmetros, deverá ocorrer, principalmente, em duas situações: se o órgão estadual ambiental for inepto ou se o órgão permanecer inerte ou omisso.
A ação supletiva do IBAMA, como do órgão existente ao tempo da elaboração da Lei 6.983⁄81, a SEMA-Secretaria Especial do Meio Ambiente, justifica-se pela inexistência de quadros funcionais e para possibilitar que os Estados tomassem à frente a gestão ambiental.
Essa possibilidade de intervenção do IBAMA no licenciamento, diante de seu caráter incerto e subjetivo, não está sendo eficaz para a proteção do meio ambiente." (In "Direito Ambiental Brasileiro", 13ª ed, Malheiros Editores, pág. 270).
Nesses termos, a atuação supletiva demanda a constatação da ocorrência de inépcia ou inércia do ente estadual ou municipal.
Em relação à inércia, inexistem maiores dificuldades para sua configuração, uma vez que a Resolução CONAMA nº. 237/97 trouxe prazos determinados para a atuação dos órgãos ambientais, sob pena de incidência da atuação supletiva da autarquia federal, fato que afasta qualquer subjetivismo sobre a questão, nos termos normativos abaixo colacionados:
"Art. 14 - O órgão ambiental competente poderá estabelecer prazos de análise diferenciados para cada modalidade de licença (LP, LI e LO), em função das peculiaridades da atividade ou empreendimento, bem como para a formulação de exigências complementares, desde que observado o prazo máximo de 6 (seis) meses a contar do ato de protocolar o requerimento até seu deferimento ou indeferimento, ressalvados os casos em que houver EIA/RIMA e/ou audiência pública, quando o prazo será de até 12 (doze) meses.
§ 1º - A contagem do prazo previsto no caput deste artigo será suspensa durante a elaboração dos estudos ambientais complementares ou preparação de esclarecimentos pelo empreendedor.
§ 2º - Os prazos estipulados no caput poderão ser alterados, desde que justificados e com a concordância do empreendedor e do órgão ambiental competente.
(...)
Art. 16 - O não cumprimento dos prazos estipulados nos artigos 14 e 15, respectivamente, sujeitará o licenciamento à ação do órgão que detenha competência para atuar supletivamente e o empreendedor ao arquivamento de seu pedido de licença." (g.n.)
A inépcia, por sua vez, traz em seu bojo juízo de valor negativo quanto às condições e capacidades do ente ambiental para condução do licenciamento, inexistindo parâmetros legais objetivos que balizem dito juízo, mas apenas constatações decorrentes da experiência prática, tais quais a má condução anterior do licenciamento em empreendimentos semelhantes e a baixa qualificação acadêmica do corpo de servidores da instituição.
Assim, no silêncio da lei, caberá discricionariamente ao Ibama, no exercício da competência supletiva (artigo 11, § 1º, da Lei nº. 6.938/81), apreciar a existência de inépcia, de ofício ou a requerimento do interessado prejudicado, em manifestação necessariamente fundamentada.
Todavia, ressalte-se, novamente, que se está diante de medida extremamente excepcional, especialmente quando diante da hipótese de inépcia, uma vez que este pressupõe grave juízo depreciativo em relação às capacidades de entes da Federação.
A forma federativa do Estado, erigido não por acaso como um dos princípios fundamentais da República, mas sim para servir de símbolo de sua importância (artigo 1º da Constituição), repousa na delicada harmonia que deve vigorar entre as diversas, e igualmente autônomas, entidades político-administrativas (artigo 18 da Constituição).
Assim, a intervenção de uma delas na esfera de competência ordinária das demais deve não apenas seguir o regramento legal, mas ainda observar o princípio da razoabilidade, evitando-se medidas desnecessárias, que comprometam a estabilidade do sistema, máxime quando se está diante da matéria ambiental, temática reservada à atuação comum, em que pese coordenada, de todo o Poder Público (artigo 23, incisos VI e VII, da Constituição).
Destarte, a constatação de inépcia do ente estadual ou municipal deverá ocorrer em casos extremos, em que manifesta a falta absoluta de aptidão técnica para a condução do licenciamento, ou ainda a inexistência do órgão ambiental no conjunto da organização administrativa do ente público, sob pena de violação expressa do princípio federativo.
Ademais, o instituto da competência federal supletiva – que traz exceção à autonomia federativa – deve ser compreendido e aplicado com a noção da alteração do contexto histórico em que produzido, eis que objeto de alteração legal nos idos de 1989, quando ainda parcos e mal estruturados a maior parte dos entes estaduais e municipais de meio ambiente, situação que, atualmente, apresenta sensível melhora.
Dita circunstância autoriza o entendimento no sentido de que estamos diante de norma de inconstitucionalidade progressiva ou ainda constitucional – hipóteses de apreciação de constitucionalidade admitidas pelo Supremo Tribunal Federal nos RE 135.328/SP e RE 147.776/SP [02] –, que deverá ser paulatinamente afastada, na medida em que se organizem os órgãos estaduais e municipais.
Pois bem.
Caracterizadas as hipóteses aptas a justificar a atuação supletiva, em juízo provocado pelo interessado ou espontaneamente realizado pela Administração, adentra-se na questão referente aos limites dessa ação.
A expressão "supletivo" remete à atividade de suprir, verbo referente, em regra, à atividade de preencher, ocupar e substituir. Todavia, encontra-se ainda no campo da expressão a idéia de auxiliar e complementar. Ambas as acepções, destaque-se, atendem perfeitamente ao escopo do legislador, conforme abaixo explicitado.
Nesse sentido, o Ibama – considerando configurada a necessidade de sua atuação supletiva –, poderá, para fins de afastar a inércia e/ou inépcia que justificaram sua atuação, adotar as medidas que entender cabíveis, sendo exemplos a cooperação e auxílio com os entes locais, a comunicação ao Ministério Público, a adoção de medidas judiciais que imponham ao ente ambiental o respeito às regras estabelecidas até o extremo de condução própria do licenciamento.
Caberá ao próprio Ibama, portanto, definir as medidas adequadas a fim de sustar a situação de inépcia ou inércia do órgão estadual ou municipal, ponderando, por meio de juízo administrativo discricionário, as particularidades da situação fática, a fim de definir sua atuação.
Inexistem, portanto, critérios legais expressos que indiquem quais situações impõem a substituição do Ibama como ente condutor do licenciamento e quais apontam para medidas de cooperação, flagrantemente menos drásticas, estando a questão a cargo do prudente e razoável juízo do administrador, cuja conclusão deve, sempre que possível, caminhar no sentido de auxílio aos entes deficitários, mantendo assim suas competências ordinárias, eis que este é o objetivo maior do SISNAMA.
Outrossim, ainda que não contemplados em regras legais, questões como a importância e urgência do empreendimento ou atividade, a potencialidade lesiva da atividade e a reiteração da conduta inerte ou inepta pelo órgão público devem pesar no juízo do administrador.
Saliente-se, por oportuno, que a eventual tomada de decisão pela avocação do licenciamento, com a substituição do órgão estadual ou municipal pelo federal, na hipótese de inércia ou inépcia, não pode prescindir da necessária manifestação judicial, salvo se houver concordância do ente público ordinariamente competente.
Isso porque o princípio da segurança jurídica impõe que se confira ao administrado estabilidade jurídica e institucional, que nunca será alcançada caso os entes públicos divirjam – como provavelmente o farão – quanto à adequação da gravosa medida de avocação, afastando o ente estadual ou municipal a inércia – através da movimentação, ainda que intempestiva, do processo – ou defendendo a qualidade técnica de seus quadros.
Ademais, a Constituição impõe o devido processo legal e o contraditório (artigo 5º, incisos LIV e LV) como pressupostos inafastáveis à interferência na esfera de direitos de qualquer indivíduo ou entidade, pública ou privada, sendo manifesta a aplicabilidade do preceito quando a decisão do Ibama impõe a retirada, sem concordância, de parcela da competência de outro ente político-administrativo.
Dessa feita, caso o Ibama entenda pelo cabimento da assunção da condução do licenciamento, diante da constatação de inépcia ou inércia do ente estadual ou municipal, e havendo divergência destes, opção outra não há senão o manejo da ação judicial cabível.
orroborando a qualidade tsso - ou cipal a inura de decis-se os ingressando com as açucional - elementos icipais de meio ambient
Por fim, deve-se advertir que não se admite entendimento no sentido de que a mera constatação, pelo ente federal, de inépcia ou inércia do ente estadual ou municipal ordinariamente competente confere ao interessado direito subjetivo de ver o processo conduzido pelo Ibama, em atuação supletiva.
Entender dessa forma significa não apenas desconsiderar a amplitude que a legislação conferiu à atuação supletiva, acima demonstrada, mas também impor ao ente federal quantidade de licenciamentos superior a sua capacidade administrativa, frustrando assim o princípio da eficiência – sob a já mencionada perspectiva de duração razoável do processo –, fundamento maior do próprio instituto.
Carrear diretamente todo e qualquer processo de licenciamento moroso ou tecnicamente imperfeito ao ente federal findaria por violar o próprio escopo da norma, consubstanciado na busca da melhoria do exercício desta relevante função pública, pelo singelo motivo de que tampouco o Ibama possui quadro apto a abarcar grande quantidade de demanda.
Por fim, cabe considerar que a gravidade dos fatos que admitem a decisão administrativa pela avocação do procedimento de licenciamento foi bem percebida pelo CONAMA, ao editar a Resolução nº. 237/97. Sobre o tema, dispõe o artigo 4º:
Art. 4º - Compete ao Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis - IBAMA, órgão executor do SISNAMA, o licenciamento ambiental, a que se refere o artigo 10 da Lei nº 6.938, de 31 de agosto de 1981, de empreendimentos e atividades com significativo impacto ambiental de âmbito nacional ou regional, a saber:
(...)
§ 2º - O IBAMA, ressalvada sua competência supletiva, poderá delegar aos Estados o licenciamento de atividade com significativo impacto ambiental de âmbito regional, uniformizando, quando possível, as exigências. (g.n.)
A análise do dispositivo deixa claro que a possibilidade de delegação aos Estados do licenciamento cuja competência ordinária é do Ibama não se aplica à hipótese de competência supletiva. Em outras palavras, uma vez constatando inépcia ou inércia de tal forma grave que justifique a avocação do procedimento, não está a autarquia autorizada a restituir posteriormente a apreciação da questão ao ente desidioso, devendo – em atenção à proteção ambiental, escopo maior do licenciamento – concluir a análise do projeto.
III - CONCLUSÃO
O licenciamento ambiental, instrumento decisivo para a realização concreta dos princípios da prevenção e precaução, elemento basilar na busca do desenvolvimento sustentável, tem na possibilidade de atuação supletiva do ente federal resquício da época em que os órgãos estaduais e municipais ainda eram incipientes.
Atualmente, com a paulatina estruturação dos entes municipais e estaduais, realiza-se o escopo do SISNAMA em fortalecer uma atuação integrada e comum de todas as esferas da Federação, em obediência a mandamento constitucional inscrito no artigo 23, incisos VI e VII.
Todavia, permanece presente a possibilidade de atuação supletiva do Ibama, em sede de licenciamento, cuja excepcional ocorrência não pode prescindir da constatação de inércia, omissão ou flagrante inépcia dos demais entes ambientais, sendo a última constatada através de juízo discricionário do ente federal.
Conforme restou demonstrado no presente trabalho, a atuação supletiva não implica necessariamente a gravosa avocação do licenciamento, sendo admitidas medidas de cooperação que – ao passo de atenderem ao objetivo central de proteção ao meio ambiente – acarretem o fortalecimento dos órgãos estaduais e municipais e a maior coordenação entre os membros do SISNAMA.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.htm>. Acesso em: 26 set. 2010.
BRASIL. Lei de Política Nacional do Meio Ambiente. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L6938.htm>. Acesso em: 28 set. 2010.
FIORILLO, Celso Antonio Pacheco. Curso de Direito Ambiental Brasileiro. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2009.
MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito Ambiental Brasileiro. 15. ed. São Paulo: Malheiros, 2007.
MILARÉ, Édis. Direito do Ambiente. 6. ed. São Paulo: RT, 2009.
TRENNEPOHL, Curt. Licenciamento Ambiental. 3ª ed. São Paulo: Impetus, 2010.
Notas
Direito Ambiental Brasileiro. 13ª ed, Malheiros Editores, pág. 270.
Os julgados referidos tratam da constitucionalidade da norma do CPP (artigo 68) que autoriza o MP a ingressar com as ações civis ex delicto das vítimas pobres, mantida pelo STF tão-somente enquanto não devidamente organizadas as Defensorias Públicas, circunstância fática que tornará a norma inconstitucional.