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Crime impossível.

Controvérsias acerca da ineficácia absoluta do meio

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Agenda 22/12/2010 às 19:55

3.CONTROVÉRSIAS ACERCA DA INEFICÁCIA ABSOLUTA DO MEIO

3.1.Breves Considerações

Como vimos anteriormente são duas as modalidades do crime impossível, ou seja, pode consubstanciar-se de duas maneiras, a saber: por ineficácia absoluta do meio empregado para a prática delituosa; e por absoluta impropriedade do objeto. Em ambos os segmentos encontramos controvérsias na jurisprudência brasileira, entretanto, é mais comum encontrarmos divergências acerca do meio e não do objeto. Nessa esteira é que analisaremos aquela e não esta. Já quanto às divergências, ocorrem em diversas modalidades de crimes, mas nos ateremos apenas ao uso de documento falso e ao furto.

3.2.A Relativização da Ineficácia do Meio

3.2.1.Dos Crimes de Uso de Documento Falso

A relativização da ineficácia do meio no instituto do crime impossível é um fenômeno que vem sendo aplicado por diversos tribunais brasileiros. Tornou-se comum nas decisões de alguns tribunais o afastamento do crime impossível sob o argumento de o meio empregado ser apenas relativamente ineficaz e não absolutamente ineficaz como reza a lei. Os mais comuns são os furtos tentados ocorridos no interior de lojas de departamentos situadas, principalmente nos shopping centers. Segundo a maioria das decisões, os dispositivos e apetrechos eletrônicos não se mostram infalíveis, mas apenas dificultam a ação do agente infrator e, nesse diapasão, têm o condão de apenas desqualificar o furto de consumado para tentado, submetendo o delinqüente às agruras da lei. De outra banda têm-se as decisões relativas à falsificação de documentos, aqueles em que o policial percebe que a Carteira de Habilitação, por exemplo, é falso, ou pelo menos, aparentemente falsa, necessitando de confirmação realizada por um expert. Nesses casos, a interpretação tem sido no sentido de considerar que a falsificação grosseira não possui o condão, per si, de fazer configurar o crime de uso de documento falso. Com efeito, o que se tem é uma relativização da ineficácia do meio, mas aplicada de forma distinta a institutos de natureza, aparentemente, semelhantes.

No crime de uso de documento falso a simples aferição pelo agente público, não é suficiente, per si, o condão para determinar tratar-se de documento falso. É certo dizer que esta afirmação é supedaneada pelas decisões emanadas dos tribunais que são claras em aduzir que mesmo sendo grosseira a falsificação, carece ainda de atestado da perícia para sua confirmação. Desta forma só há falar em eficácia do meio se todos aqueles para quem será exibido o falso documento estivessem munidos de capacidade de aferição que suprisse também a necessidade de perícia técnica. Entretanto, não é o que acontece, pois o agente público, in casu, o policial, que faz a abordagem de um cidadão portador de documento falso, ao usar sua experiência e destreza para num simples exame visual detectar a falsidade do documento, está utilizando algo inerente à sua pessoa, portanto, tal instinto ou intuição é subjetivo, logo, nem todos os policiais possuem a mesma destreza e habilidade e atenção necessárias à aferição. Destarte, não se pode generalizar o poder de percepção dos agentes públicos. Entendendo como entende atualmente grande parte dos magistrados, com a devida vênia, estão em verdade ignorando a relativização da eficácia do meio, pois como dissemos, a capacidade técnica de aferição perceptiva é de natureza cognitiva, portanto, não é uniforme, mas desigual e, por conseguinte, individual.

De outra banda, apresentasse o condutor de um veículo automotor, um documento público, como a Carteira Nacional de Habilitação, com tamanho e demais aspectos inteiramente desproporcionais com o documento original, aí sim, estar-se-ia diante de algo perceptível ao homem médio, entendendo-se que este conhece uma Carteira Nacional de Habilitação. Ademais, não se teria nenhuma dúvida de que se tratasse de falsificação grosseira. Também não se teria dúvida de que o meio era absolutamente ineficaz para a perpetração do tipo penal, qual seja o uso de documento falso. No entanto, o que ocorre, de fato, é que os documentos falsos, na maioria das vezes são imperceptíveis à simples verificação visual, carecem, assim, de minucioso exame para ser atestado como falso e daí poder ter o condão de desqualificar a natureza criminal. Seria ideal se num simples olhar todos os agentes públicos fossem capazes de notar numa Carteira Nacional de Habilitação, por exemplo, as fibras coloridas e fluorescentes do papel utilizado, bem como as impressões calcográficas, ofsete e tipográficas e a simulação do relevo no verso, o fundo invisível fluorescente, fundo numismático, além de impressões de espelho e dos dados variáveis por pontos. Entretanto, não é o que ocorre de fato. Detalhes como esses dificilmente são percebidos, senão por experts. O que se tem em realidade é que as falsificações apresentam em sua maioria, semelhanças com o documento original nos aspectos visual, cromático, bem como nas dimensões do leiaute e das impressões [28].

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Como vimos no acórdão acima, o agente infrator foi beneficiado com o instituto do crime impossível, uma vez que, embora tenha praticado o tipo penal em sua essência, pois o documento apresentado era falso, foi tal meio considerado ineficaz, de forma absoluta, para a prática delituosa. Com a devida vênia, entendemos que o meio não era absolutamente ineficaz, mas apenas relativo. Pelo que se infere do venerado acórdão, o fato de o policial militar ter desconfiado que se tratava de documento falso, foi preponderante para que o meio fosse considerado absolutamente inidôneo para a perpetração do tipo penal. Também a percepção do policial foi o que ensejou a prisão em flagrante do agente infrator, mesmo carecendo ainda de laudo pericial, o que somente foi providenciado depois da prisão. Ademais, é de se perguntar: E se o policial a examinar o documento falso não fosse aquele que o fez, mas outro, sem a mesma habilidade e perspicácia? A resposta é simples, aquele falso documento público teria passado como verdadeiro e mesmo assim o crime teria sido cometido. Mas é de se ressaltar que mesmo sendo outra a resposta, é irrelevante para o presente contexto. O fato é que meios submetidos, preliminarmente, à análise humana, pela natureza subjetiva desta, não podem ser considerados de natureza absoluta, mas sim, relativa, dados aos aspectos de pura cognição.

3.2.2.Dos Crimes de Furtos em Lojas de Departamentos

Outra controvérsia diz respeito aos furtos tentados nas lojas de departamentos munidas de equipamentos de segurança. Se em relação ao delito de Uso de Documento Falso a percepção da falsidade feita pelo agente público tem como conseqüência a exclusão da tipicidade, tornando o fato delituoso crime impossível, pela ineficácia absoluta do meio, no caso dos furtos nas lojas de departamentos a interpretação dada vem dividindo a jurisprudência nos tribunais pátrios. Para parte da jurisprudência, os equipamentos eletrônicos e demais apetrechos de segurança utilizados nas lojas não possuem o condão de tornar impossível a prática do furto, mesmo diante da precisão e credibilidade que gozam daí serem relativamente ineficazes para impedir a prática de furtos e os agentes infratores respondem ao menos pelo furto tentado, mas não se livram soltos. Nesse sentido veja o julgado [29] a seguir, oriundo do TJDF, littheris:

PENAL E PROCESSO PENAL - TENTATIVA DE FURTO EM INTERIOR DE LOJA DE DEPARTAMENTOS - CRIME IMPOSSÍVEL - PEDIDO DE CONDENAÇÃO PELA PRÁTICA DE FURTO TENTADO - MATERIALIDADE E AUTORIA COMPROVADAS - PRESENÇA DE SISTEMAS DE SEGURANÇA E ALARMES - IMPOSSIBILIDADE RELATIVA DO MEIO - RECURSO PROVIDO - UNÂNIME.

Não há que se falar em crime impossível ante a presença de sistema de segurança no interior da loja, vez que para sua configuração, faz-se necessária a "ineficácia absoluta do meio" ou "absoluta impropriedade do objeto", nos exatos termos do art. 17 do Código Penal.

Os dispositivos antifurtos não se mostram infalíveis e, por tal motivo, servem apenas para dificultar as eventuais subtrações perpetradas pelos seus freqüentadores, não se configurando, de toda sorte, a ineficácia absoluta do meio ou a impropriedade do objeto.

Condenação das apeladas pela prática de furto tentado, previsto nas sanções do art. 155, § 4.º, inciso IV, c/c art. 14, inciso II, do Código Penal.

Na esteira do que desejamos expor no presente trabalho tem-se o entendimento oriundo do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, que considera os equipamentos eletrônicos e a segurança do estabelecimento meios eficientes e capazes de impedir um crime de furto, sendo, pois, meios ineficazes para a prática delituosa do tipo furto e, portanto, configura-se o crime impossível. Vejamos a ementa [30] a seguir, littheris:

CRIME IMPOSSÍVEL. Caracteriza-se o denominado crime impossível quando a situação permanece sob total controle, jamais tendo o agente possibilidade, sequer mínima, de consumar o delito, pela absoluta ineficácia do meio, com o que não correu o bem qualquer risco. E assim ocorre quando é exercida vigilância permanente e ininterrupta, acompanhada a ré em todos os seus passos e abordada, com pleno êxito, após superado o setor de pagamento. Apelo ministerial desprovido.

E esse também é meu pensamento, revelado em votos que tenho proferido (AC de números 297032773, 297042822, 70001377050, 70002271914, 70002418184, 70005154646, 70005338751, 70005950183, 70006054332, 70006165039, 70006196653, 70007156276, 70007350143, 70007439334, 70008124968, 70008137770 e 70008586174, 70008905762, 70011057767, 70011982493, dentre outros).

5. Diante das razões expendidas, concluo que se houve com inteiro acerto a julgadora, ao decidir pela atipicidade do fato, por configurado o denominado crime impossível.

6. Assim, em face do exposto, nego provimento ao apelo.


4.CONCLUSÃO

Pelo que foi exposto no presente trabalho concluímos que a jurisprudência diverge de Tribunal para Tribunal no que diz respeito à ineficácia do meio como requisito para o instituto do crime impossível. Pela análise do acórdão e julgados do Tribunal de Justiça do Distrito Federal foi possível verificar que esta corte não trata do assunto de maneira uniforme. Vejamos, por exemplo, o caso do uso de documento falso. Para aquele Tribunal o entendimento é de que não há falar em crime se o agente público perceber a falsificação, daí infere-se também que, se foi percebida, é porque se trata de falsificação grosseira, portanto é ineficaz o meio. Já em relação aos furtos praticados em lojas de departamentos munidas de equipamentos eletrônicos e de seguranças armados, o Tribunal entende que o meio não é absolutamente ineficaz, mas somente relativamente, respondendo o agente infrator pelo crime de furto na modalidade tentada.

Em analise sobre fatos semelhantes, mas ocorridos no Rio Grande do Sul, a interpretação dada tem sido diferente. No Tribunal de Justiça daquele Estado a maioria dos julgados tem conservado o entendimento de que os equipamentos eletrônicos, bem como a vigilância por meio de seguranças armados possuem o condão de tornar impossível a prática do crime de furto, principalmente quando o agente infrator é acompanhado por todo o tempo que permanece no interior da loja.

Em perfunctória análise a ambos os julgados entendemos que melhor razão assiste ao Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, daí primarmos por uma uniformização dos critérios de análise. Apesar de não haver menção nos julgados analisados, entendemos que o agente infrator que entra em uma loja com o animus furandi e tem, desde o início, os atentos olhos dos vigilantes e das câmeras de segurança sobre si, tem também suas chances de êxito reduzida a zero, tornando, destarte, impossível a prática do crime. Ademais, analisando esta situação sob a ótica da Súmula 145 do STF, fica evidente que se tem, em verdade, um caso de flagrante preparado, não pela polícia, mas por terceiros e, nesse diapasão entendemos também que se trata de crime impossível.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CAPEZ, Fernando, Curso de Direito Penal, Vol. I São Paulo: Saraiva 2003, pg. 240.

DAMÁSIO, E. de JESUS, Direito Penal, Parte Geral, Vol. I, Saraiva, São Paulo: 1995.

DEVESA, José Maria Rodrigues. Derecho Penal Español, Carasa: Espanha, 1975

FALCONI, Romeu, Lineamentos de Direito Penal, 3ª. ed. São Paulo: Ícone, 2002.

LISZT, Franz Von, Tratado de Direito Penal Alemão, Tomo I, Russel: Campinas-SP, 2003.

MARQUES, José Frederico, Tratado de Direito Penal, Vol. II. Campinas: Millenium, 2002.

MIRABETE, Julio Fabbrini, Manual de Direito Penal, Vol. I, Saraiva, São Paulo: 2005.

NUCCI, Guilherme de Souza, Manual de Direito Penal: Parte Geral, 2007.

Tribunal de Justiça do Distrito Federal – Apelação Criminal n.° 2004.01.1.049683-2 - 1.ª Turma Criminal

Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul – Apelação Criminal - Nº 70008983884

Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul - Apelação Criminal Nº 70024267395 - 6ª Câmara - Comarca de Passo Fundo

WELZEL, Hans, Direito Penal Alemão, ed. Romana, Campinas-SP: 2004.


Notas

  1. NUCCI, Guilherme de Souza, Manual de Direito Penal: Parte Geral, 2007, pg. 338.
  2. LISZT, Franz Von, Tratado de Direito Penal Alemão, Tomo I, Russel: Campinas-SP, 2003, pg. 325.
  3. Julgado do dia 10 de junho de 1880, no Tribunal do Império da Prússia, 1º., 451.
  4. MARQUES, José Frederico, Tratado de Direito Penal, Vol. II. Campinas: Millenium, 2002. pg. 355.
  5. NUCCI, Guilherme de Souza, Manual de Direito Penal: Parte Geral, 2007, pg. 335.
  6. MARQUES, José Frederico, Tratado de Direito Penal, Vol. II. Campinas: Millenium, 2002. pg. 355.
  7. DAMÁSIO, E. de JESUS, Direito Penal, Parte Geral, Vol. I, Saraiva, São Paulo: 1995,pg. 303.
  8. MARQUES, José Frederico Marques, idem.
  9. CAPEZ, Fernando, Curso de Direito Penal, Vol. I, Saraiva, São Paulo: 2003, pg. 236.
  10. WELZEL, Hans, Direito Penal Alemão, ed. Romana, Campinas-SP: 2004, pg. 357.
  11. CAPEZ, Fernando, cit. pg. 236.
  12. WELZEL, Hans, idem.
  13. WELZEL, Hans, cit. pg. 277.
  14. FALCONI, Romeu, Lineamentos de Direito Penal, 3ª. ed. São Paulo: Ícone, 2002, pg. 194.
  15. DEVESA, José Maria Rodrigues. Derecho Penal Español, Carasa: Espanha, 1975, pg. 733.
  16. CAPEZ, Fernando, cit. pg. 237.
  17. JESUS, Damásio E. de, Direito Penal, Parte Geral, Vol. I, São Paulo, Saraiva: 1995 pg. 304.
  18. WELZEL, Hans, Direito Penal, Campinas, Romana: 2003 pg. 278.
  19. CAPEZ, Fernando, Curso de Direito Penal, Vol. I São Paulo: Saraiva 2003, pg. 240.
  20. (Teoria Adotada, em tese, pelo Código Penal Brasileiro).
  21. CAPEZ, Ferando, Cit. pg. 240.
  22. WELZEL, Hans, cit. pg. 277.
  23. MIRABETE, Julio Fabbrini, Manual de Direito Penal, Vol. 1, Atlas, São Paulo: 2003, pg. 165.
  24. RJDTACRIM
  25. CAPEZ, Fernando, cit. pg. 237
  26. CAPEZ, Fernando, idem. pg. 238.
  27. MIRABETE, Julio Fabbrini, Manuel de Direito Penal, Vol. I, Saraiva, São Paulo: 2005, pg. 160.
  28. Para um melhor entendimento acerca do que acabamos de expor, link: http://tjdf19.tjdft.jus.br/cgi-bin/tjcgi1?DOCNUM=6&PGATU=1&l=20&ID=61937,66614,450&MGWLPN=SERVIDOR1&NXTPGM=jrhtm03&OPT=&ORIGEM=INTER.
  29. APR – Apelação Criminal n.° 2004.01.1.049683-2 - 1.ª Turma Criminal
  30. Apelação Crime: Nº 70008983884
Sobre o autor
Antonio Sólon Rudá

Antonio Sólon Rudá é um Jurista brasileiro, especialista em ciências criminais, Ph.D. student (Ciências Criminais na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra); e MSc student (Teoria do Direito pela Fac. de Direito da Universidade de Lisboa); É membro da Fundação Internacional de Ciências Penais; É membro julgador do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-DF; Autor de artigos e livros jurídicos; É Advogado cível e trabalhista; e Sócio fundador do Escritório Sanches & Sólon Advogados Associados. E-mail: antoniosolonruda@gmail.com. WhatsApp 61 9 9698-3973. Currículo: http://lattes.cnpq.br/7589396799233806. 

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RUDÁ, Antonio Sólon. Crime impossível.: Controvérsias acerca da ineficácia absoluta do meio. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2730, 22 dez. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/18093. Acesso em: 22 nov. 2024.

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