2. Sobre o cumprimento da sentença
2.1. Do cumprimento transposto
Antes das reformas, a execução de qualquer sentença condenatória dava-se em processo autônomo. No entanto, de acordo com o movimento de força mundial que pregava a reforma do Judiciário, tal autonomia processual, calcada nas lições de Enrico Tullio Liebman, não seria mais desejável, eis que o jurisdicionado tinha a impressão de ineficiência estatal sempre que, ao vencer uma demanda, era informado que para fazer cumprir o veredicto, deveria ingressar novamente em juízo. Isto sem falar na conseqüente demora da efetiva prestação jurisdicional. Através de uma série de mecanismos legais o devedor acabava por conseguir rediscutir o que já estava pacificado, fazendo com que o credor, ou se submetesse novamente às formalidades processuais, ou desistisse de seu direito, ou, pior, desistisse do Poder Judiciário. A partir de 2002, porém, o legislador, através da Lei 10.444, procurando mitigar o problema, fez com que o cumprimento das sentenças condenatórias de fazer, abster ou entregar coisa não necessitassem mais do autônomo procedimento de execução, mas fossem cumpridas no próprio processo no qual foram proferidas. Como já exposto, este processo, no qual conhecimento, liquidação e execução são mera decorrência um do outro, foi batizado como "sincrético". Em 2005, com a aprovação da lei 11.232, o novo modelo de cumprimento de sentença condenatória completou-se, sendo que o sucessivo processo autônomo deixou de ser a regra geral para atuar de forma subsidiária em alguns poucos casos. Assim, antes de estudarmos a ocorrência do processo sincrético, convém ao menos elucidar quais títulos ainda se processam autonomamente.
Esclarecemos que hodiernamente só haverá processo autônomo "de execução" no caso de o título não ser judicial (situação que chamamos de execução pura) ou quando, embora judicial, o título não ensejar uma continuidade processual (caso que será denominado cumprimento transposto da sentença condenatória). Isto ocorrerá ou porque não incidiu anteriormente um processo de conhecimento, ou porque este incidiu de forma atípica. É o que veremos no próximo tópico, no entanto, antes de enfrentarmos o tema cabe uma advertência: o procedimento autônomo dos títulos extrajudiciais seguirá todo o rito do Processo de Execução (Livro II do Código de Processo Civil – execução pura), enquanto que o procedimento autônomo dos títulos judiciais obedecerá as regras do Processo de Conhecimento (Livro I do Código de Processo Civil), utilizando-se do segundo livro apenas subsidiariamente, na existência de lacunas.
Há uma terceira hipótese, a única cujo procedimento não é autônomo: será o procedimento regra para os títulos judiciais e ocorrerá materialmente no próprio processo de conhecimento mediante atos executivos (aqui falaremos em cumprimento sincrético da sentença).
2.1.1. Dos títulos Judiciais
Quando houver título judicial só incidirá o processo autônomo (cumprimento transposto) em três casos, correspondentes aos incisos II, IV e VI do artigo 475-N do Código de Processo Civil, a saber: a sentença penal condenatória transitada em julgado, a sentença arbitral, a sentença estrangeira, homologada pelo Superior Tribunal de Justiça.
Diz-se que o processo será autônomo, pois o parágrafo único do referido artigo estabelece que nas hipóteses mencionadas o mandado inicial deve trazer a "ordem de citação do devedor, no juízo cível, para a liquidação ou execução, conforme o caso". Ora, se há citação, trata-se de nova ação. No entanto, logo após as palavras "mandado inicial", entre parênteses é possível ler uma remissão ao artigo 475-J, o que reconduz o procedimento ao novo processo de conhecimento (no qual o cumprimento da sentença ocorre sincreticamente mediante atos, não ao clássico processo de execução.
No mesmo sentido, Ramos assevera que:
"A imposição do ato citatório nessas três hipóteses (art. 474-N, parágrafo único) decorre da própria natureza das coisas, e em hipótese nenhuma significa a inauguração de um "processo de execução". A situação, portanto, não deve causar a – falsa – impressão de que se estaria diante de eventual "processo de execução" desses títulos judiciais." (Neves et al., 2006, p. 261)
Assim, do processo autônomo, este cumprimento transposto da sentença tem apenas a observância da citação, que deverá ocorrer de acordo com os artigos 213 e seguintes do Código de Processo Civil, no resto se procederá como se estivéssemos numa ação sincrética.
Por óbvio, contudo, em se tratando de cumprimento transposto, a defesa do executado não se dará por embargos, bem sim através da impugnação prevista no também novato artigo 475-L.
Vejamos cada uma das sentenças que seguirão o cumprimento transposto, as quais ensejarão, portanto, um do processo formalmente autônomo, mas materialmente sincrético:
A sentença penal condenatória transitada em julgado, por óbvio, exigirá processo de execução autônomo junto aos juízos cíveis. Isto ocorre justamente pela sua própria natureza, que é penal. A separação entre processo de conhecimento e execução da sentença, que procura, no cível, reparar economicamente os danos sofridos ou pela vítima do ilícito ou pelos seus familiares, é, portanto, inevitável, pela simples incompatibilidade da própria matéria que cada Justiça encerra. No ensejo, cabe dizer que teria sido conveniente o legislador corrigir a terminologia (pois o artigo em comento é mera cópia do anterior 584, II). É que na realidade o título penal não é tecnicamente, um título executivo. Nesse sentido, Câmara (2006, p. 98) assevera que "o que se deveria dizer é que a sentença penal condenatória é título para a liquidação de sentença (e, uma vez decidido o incidente de liquidação, ter-se-á por formado o título executivo judicial)". De fato, toda sentença penal é, para o Direito Civil, ilíquida.
Por derradeiro, convém esclarecer que mesmo naquelas Comarcas onde as competências jurisdicionais da Justiça Cível e da Penal coincidam, será necessária a manutenção da formalidade de nova citação, pois entendemos que, muito embora o Poder Judiciário seja único, a forma com que se processam os atos, nas duas esferas, é totalmente distinta, não permitindo mescla tão sui generis como poderiam alguns desejar. Nesse particular a primazia da celeridade deve ser afastada.
A sentença arbitral, regulada pela Lei 9.307/96, da mesma forma, não é expedida por órgão judicial da Justiça Cível. O órgão que expede a sentença arbitral, embora a lei estabeleça, em seu artigo 18 que "o árbitro é juiz de fato e de direito", na verdade não pertence aos quadros funcionais do Poder Judiciário, sendo a arbitragem uma atividade parajurisdicional desenvolvida perante órgãos que não são nem mesmo estatais. Esse artigo estabelece também, em relação aos poderes do árbitro, que a sentença por ele proferida "não fica sujeita a recurso ou a homologação pelo Poder Judiciário". Obviamente não serão todas as sentenças arbitrais, necessariamente, títulos executivos, pois pode ocorrer da sentença arbitral não trazer em si caráter condenatório nenhum. Nestes casos nada haveria a se cumprir... De fato, com muita coerência, o artigo 31 da referida lei estabelece que "a sentença arbitral produz, entre as partes e seus sucessores, os mesmos efeitos da sentença proferida pelos órgãos do Poder Judiciário e, sendo condenatória, constitui título executivo". Por óbvio, aqui também o cumprimento da sentença será transposta, ou seja dar-se-á em processo autônomo: haverá citação mas, após, se procederá como se ação sincrética (de conhecimento) fosse.
A sentença estrangeira 8, como se sabe,não tem eficácia no território nacional antes de sua homologação perante o Superior Tribunal de Justiça 9. Aqui também perdeu o legislador a oportunidade de proceder a uma correção terminológica, pois a sentença estrangeira não é, no sentido técnico do termo, um título executivo: título executivo será o despacho homologatório daquela. A ocorrência de executoriedade se dá somente após este despacho. Cabe fazer uma ressalva em relação à natureza originária da sentença estrangeira: para que se possa cogitar tudo quanto estamos afirmando, por lógica, só pode tratar-se, também aqui, de sentença condenatória.
Inicialmente poderia parecer óbvio que tal homologação deva ser comunicada ao interessado através de uma citação, e não mera intimação. Nesse sentido Ramos pondera, em relação à sentença forasteira:
"Dado que não será o juiz que a proferiu o competente para o respectivo cumprimento, então será necessário o início de uma nova relação processual cuja validade estará condicionada à citação. A razão, portanto, é de ordem lógica e voltada à realização dos ditames constitucionais que orientam o processo, em especial o contraditório e a ampla defesa". (NEVES et al., 2006, p. 260)
Contrariamente, Câmara diz que neste caso foi mera opção do legislador a manutenção da execução autônoma, justificando seu posicionamento através da seguinte argumentação que transcrevemos:
"O processo de conhecimento formador do título executivo desenvolve-se perante o Poder Judiciário brasileiro (...) seria, pois, perfeitamente possível considerar-se que a execução da decisão homologatória de sentença estrangeira é uma fase complementar do processo de homologação, que tramita no Superior Tribunal de Justiça". (CÂMARA, 2006, p. 106)
Analisemos com cuidado a questão: o procedimento homologatório prescinde da análise do conteúdo da sentença estrangeira no que tange ao mérito, sendo observados apenas alguns requisitos indispensáveis, previstos na Resolução nº 9/2005 do Superior Tribunal de Justiça, dentre os quais o de haver transitado em julgado, de ter sido proferida por autoridade competente de acordo com as regras de competência da lei estrangeira e de terem sido as partes citadas ou haver-se legalmente verificado a revelia. Não é segredo que estes últimos requisito existem em homenagem ao princípio constitucional do contraditório e da ampla defesa. Em outras palavras, o Superior Tribunal de Justiça já verifica, antes de homologar ou denegar, se todas as partes envolvidas no processo tiveram a oportunidade de se manifestarem, portanto, de se defenderem. Igualmente, também é verificada a hipótese do desinteresse da parte ter ocasionado a revelia.
Nesta ótica, todos os condenados por sentenças estrangeiras transitadas em julgado que foram homologadas pelo Superior Tribunal de Justiça já foram necessariamente citados para providenciar, perante a Justiça ádvena, a própria defesa. Assim, tais pessoas, físicas ou jurídicas, já tem, faticamente, conhecimento do processo que as condenou. Ora, sendo assim realmente tem razão Câmara: nada obstaria o cumprimento da sentença por mero cumprimento sincrético, não fosse a lei, pois já verificadas nossas constitucionais premissas garantidoras do contraditório e ampla defesa. Assim, acompanhando o jurista carioca, entendemos ser o cumprimento transposto da sentença, nesse caso, uma opção legislativa, não impossibilidade factual. E, assim sendo, cochilou o legislador pátrio, pois poderia ter optado pelo menos burocrático cumprimento sincrético, autorizando também aqui a mera intimação do demandado.
2.1.2. Da Competência
O inciso III do artigo 475-P do Código de Processo Civil trata da questão da competência em relação ao módulo satisfativo, na esfera civil, das sentenças penais condenatórias transitadas em julgado, das arbitrais e das "sentenças estrangeiras" 10, digo, dos despachos que homologam as sentenças estrangeiras.
Para determinar qual juízo será competente em relação à decisão oriunda da esfera penal, segundo Daniel Amorim basta:
"(...) fazer um exercício de abstração, imaginando-se qual seria o juízo competente na hipótese de necessidade do processo de conhecimento para a formação do título, sendo esse juízo o competente para executar o título constituído na esfera criminal. Essa regra será igualmente aplicada ao processo de liquidação ao processo executivo [sic])". (Neves et al., 2006, p. 281)
Muito embora o autor use, na frase final, o tempo verbal futuro, na realidade a fixação de competência do módulo de liquidação seria anterior ao módulo de execução. Ainda melhor que execução, todavia, é o termo "cumprimento", já que estamos tratando de processo cognitivo (cujo cumprimento da sentença se dá por atos executórios, mas nem por isso será processo de execução). Ademais, a sentença penal condenatória não seria mesmo executada na esfera civil, pois nem mesmo verdadeiro título executivo é: o que o artigo em comento quer estabelecer, na realidade, é uma regra para a fixação da competência do módulo processual liquidatório, cujo resultado será uma decisão a ser cumprida na esfera civil.
Assim, a regra que devemos seguir é a do parágrafo único do artigo 100 do Código de Processo Civil, a qual estabelece ser competente, nas ações de reparação de dano sofrido em razão de delito, o foro do domicílio do autor ou do local do fato. Nunca é demais lembrar que neste, assim como em todos os outros casos de competência relativa, se o interessado quiser, pode abrir mão do direito de escolha para aplicar a regra do foro comum: demandar no local de domicílio do réu.
Em relação às sentenças arbitrais, apenas se não houver foro eleito no próprio compromisso arbitral ou na cláusula compromissória é que se cogitará das regras de competência nos moldes que o Código de Processo Civil estabelece para o processo de conhecimento, que coincide com aquelas dos títulos extrajudiciais.
Por último, em relação à decisão de homologação da sentença estrangeira, que necessariamente será emanada pelo Superior Tribunal de Justiça, cabe lembrar que, de acordo com a Constituição Federal (artigo 109, inciso X), cabe aos juizes federais, cuja competência territorial será definida de acordo com o artigo 484 do Código de Processo Civil, dar continuidade ao cumprimento transposto do despacho homologatório, seguindo as regras "estabelecidas para a execução da sentença nacional da mesma natureza".
2.1.3. Da liquidação de sentença
Em nota de rodapé (nota n. 1) já adiantamos quais as principais características da nova liquidação de sentença para que fosse possível ao leitor a compreensão do instituto naquela ocasião, ao menos de forma superficial. Mais adiante, quando trataremos do cumprimento sincrético da sentença, nos aprofundaremos um pouco mais. Por ora basta fazer uma consideração: é que continuará a existir, nos casos acima, a necessidade de liquidação, quando não houver, no título judicial, a definição do quantum debeatur. Esta lacuna certamente será verificada no caso da sentença penal condenatória, pois não é o juízo penal competente para fixar o valor da reparação. Potencialmente, poderá ocorrer nos casos de sentença arbitral condenatória e de homologação de sentença estrangeira condenatória, pois estas podem trazer em seu bojo tal declaração quantitativa, mas nada obsta que se calem em relação a tal pronunciamento balizador.
Assim, antes do módulo executório deverá ocorrer o módulo liquidatório, todas as vezes que o título, qualquer que seja, carecer de liquidez.
2.2. Do cumprimento sincrético
A Lei 11.232/05 fez com que o novo sistema processual do cumprimento das sentenças condenatórias mediante atos executivos fosse inaugurado em nosso Judiciário, no final de Junho de 2006. Trata-se de norma que veio terminantemente a substituir o antigo modelo de execução em processo autônomo, pelo cumprimento imediato, portanto, dentro do próprio processo em que a sentença foi proferida.
Por ser cronologicamente anterior, antes de focarmos o procedimento em si, entendemos ser interessante analisar também as regras de competência que regerão o procedimento de cumprimento sincrético, e definir em quais casos isso ocorrerá.
2.2.1. Da competência
Como já adiantado em capítulo que abordou as hipóteses do cumprimento transposto da sentença, o tema da competência jurisdicional vem tratado no novato artigo 475-P. Iniciaremos a análise do assunto trazendo a questão da inédita possibilidade de alteração de jurisdição e, por fim trataremos da questão do cumprimento em ações de competência originária dos tribunais, visto que a hipótese do inciso III já foi devidamente analisada. Da leitura do referido artigo, extrai-se que será competente para cumprir a sentença de encerramento do primeiro módulo, o juízo que processou (na verdade, que decidiu) a causa em primeiro grau de jurisdição (inciso II), sendo facultado ao demandante, nesses casos, que solicite ao juízo de origem, através de juntada de mera petição no processo, a remessa dos autos ao juízo do local onde se encontram os bens do demandado ou ainda ao local do seu domicílio (parágrafo único). A norma, que afasta o ultrapassado princípio do judex executionis est ille, qui competenter tulit sententiam, se harmoniza, em contrapartida, com o moderno preceito já delineado na redação original do artigo 612 do mesmo Código, o qual oferece a compreensão que os atos executórios devem ocorrer, em regra, no interesse do credor. Assim, nada mais justo que conceder-lhe a faculdade de fazer com que se processem, se o quiser, não no juízo que decidiu a causa no primeiro grau, mas em outro, a sua escolha, desde que presentes um destes requisitos: no novo foro devem estar os bens penhoráveis (ou já penhorados), ou deve o demandado ali ter seu domicílio.
Vemos, portanto, que a possibilidade do exercício desta faculdade pelo credor atenua a força da "perpetuatio jurisdictionis", positivada pelo artigo 87 do Código de Processo Civil. Daniel Neves (2006, p. 278), no entanto, entende que tal mitigação ocorra pontualmente no início do módulo executivo, recuperando a referida regra sua força, tão logo a escolha seja feita. Segundo o causídico paulista "parece que a exceção prevista pelo artigo legal somente se aplica no momento em que o demandante deva optar pelo juízo competente para a fase de cumprimento da sentença". Assim, segundo este pensamento, uma vez transferidos os autos, muito embora possa ocorrer sucessivamente uma mudança de domicílio do devedor, ou ocorra que este adquira bens em outra Comarca, a competência já estará fixada, não sendo possível nova escolha.
Tal teoria não é totalmente aceita por Alexandre Câmara, o qual vê no interesse público um razoável motivo para que ocorram sucessivos deslocamentos de competência, mas apenas no caso do exeqüente ter optado pelo foro dos bens penhoráveis e estes não se prestarem, afinal, a quitar todo o débito, buscando o demandante novos foros onde outros bens se encontrem. Argumenta o autor que:
"É preciso separar as duas hipóteses. No caso de se ter optado pelo foro do domicílio do executado, não me parece haver razão para deixar de incidir, aqui, o art. 87 do Código de Processo Civil e, instaurado o módulo processual executivo, mudanças posteriores do domicílio do executado não influirão na competência, que ficará mantida no lugar onde instaurado originariamente aquele módulo processual". (CÂMARA, 2006, p. 146)
A nosso ver a questão pode ser rapidamente analisada sob dois prismas: à luz da organização sistemática do Código e da mens legis.
Ambos os artigos (o 87 e o 475-P, parágrafo único) encontram-se no mesmo Livro I, intitulado "Do Processo de Conhecimento" consistente em dez Títulos. O artigo 87 é o segundo artigo dentro do Título denominado "Dos órgãos Judiciários e dos Auxiliares da Justiça", dentro do Capítulo I "Da Competência", que possui apenas dois artigos. Em outras palavras, tal Título cuida da organização do judiciário e estabelece as regras mais gerais de competência, em apenas dois artigos. Já o parágrafo único do artigo 475-P localiza-se no Título VIII, que cuida "Do Procedimento Ordinário", em seu último Capítulo, intitulado "Do Cumprimento da Sentença". Já no início de nossa caminhada jurídica aprendemos que a regra mais específica deve prevalecer sobre a geral: assim, o parágrafo único do artigo 475-P deve, por ser exceção à regra do artigo 87, prevalecer sempre, no módulo do cumprimento sincrético, visto que não lhe são impostas outras limitações.
Pormenorizando a observação, se fica autorizado o exercício da faculdade dentro do "processo de conhecimento", então ela é necessariamente permitida no "cumprimento da sentença" do "procedimento ordinário", excluindo in casu, a incidência da regra de "competência" que normalmente regula os "órgãos Judiciários".
Se o parágrafo em exame estabelece que:
"(...) no caso do inciso II do caput deste artigo, o exeqüente poderá optar pelo juízo do local onde se encontram bens sujeitos à expropriação ou pelo do atual domicílio do executado, casos em que a remessa dos autos do processo será solicitada ao juízo de origem" 11
...e a opção é autorizada no "cumprimento de sentença", então será autorizada em todo o módulo de cumprimento de sentença. Ora, em lugar algum está dito que tal opção pode ocorrer uma só vez 12!
A lei quer somente significar que a remessa dos autos do processo deve ser requerida ao juízo em que eles se encontrem. Nada mais. E isto deverá ocorrer todas as vezes em que tal remessa for útil ao credor, se este assim o desejar.
Não vemos, aliás, motivo algum para que se distingam os dois casos. Para nós, além da hipótese admitida por Câmara, toda vez que o demandado mudar domicílio, se estivermos no módulo de cumprimento da sentença mediante atos executórios, será possível ao demandante pedir que os autos para lá sejam remetidos, na busca da satisfação do seu crédito 13. Com esta afirmação iniciamos a análise da razão da norma.
Como bem demonstrado na introdução, todas as recentes leis que vem reformando o Código Processual tem como fim último torná-lo um instrumento da célere e efetivo. Ora, isto significa, conferir materialmente o direito a quem o tem apenas no mundo teórico, sem demoras. Assim, julgado procedente o pedido do credor, deve o judiciário propiciar-lhe todas as vantagens que não sejam contrárias aos próprios princípios do ordenamento. E conceder ao autor a possibilidade de "perseguir" seu crédito não vai contra nenhum princípio do Direito pátrio. Ao aceitarmos esta tese, estaríamos contribuindo em muito com a efetividade do processo.
Por último, cabe lembrar que no caso da opção ser efetuada, pode ocorrer do juiz a quem forem distribuídos os autos, no novo foro, reputar-se incompetente para recebê-los, alegando, por exemplo, não ser verídica a condição que legitimaria a escolha do credor ou ainda, e provavelmente com maior freqüência, poderia ocorrer de o próprio condenado contestar tais condições.
Em ambos os casos, a nosso ver, não há maiores problemas para deslindar a questão: o conflito negativo de competência será resolvido pelo Tribunal ao qual as regras estabelecidas pela Constituição Federal, nos artigos 102, I, "o" e 105, I, "d", conferem autoridade.
Encerrada esta questão, devemos ainda observar o inciso I do artigo 475-P do Código de Processo Penal, que prevê a competência executiva dos Tribunais nas decisões que sejam proferidas em ações de sua competência originária. A princípio, todos os Acórdãos proferidos em ações de competência originária, que necessitem do módulo executivo, terão continuidade procedimental perante o próprio Tribunal. Ocorre, porém, que normalmente os tribunais não são organizados internamente para manobrar atos executivos, sendo perfeitamente possível que deleguem, então, a função, ao primeiro grau de jurisdição. Isto é aceitável graças ao extensivo entendimento da alínea "m" do inciso I do artigo 102 da Constituição Federal, que admite, em relação ao Supremo Tribunal Federal, a delegação de atribuições ao primeiro grau. Esclareça-se que, de qualquer forma, nos casos em que a delegação ocorrer, apenas os atos materiais de execução é que serão realizados pelo primeiro grau, enquanto os atos decisórios, em relação ao mérito do cumprimento, devem continuar nas mãos dos Tribunais.
É de se notar que mesmo antes das reformas, doutrina e jurisprudência já tinham entendimento pacífico da questão, tanto que em 2004, Zavascki já afirmava que:
"(...) a faculdade de delegar deve ser interpretada restritivamente, de modo a que não comprometa, mais do que o indispensável, a competência originária do tribunal delegante. Por isso, não se compreendem entre os atos processuais delegáveis os atos decisórios" (ZAVASCKI, 2004, p. 125)
É ainda interessante, para concluirmos o tópico, fazer um paralelo com a última hipótese de definição de competência do inciso III do artigo sub occulis. Lá, quando tratar-se de homologação de sentença estrangeira, a delegação é imposta e é total, pelo disposto no caput do artigo 109 da Constituição Federal, onde se lê que serão os juízes federais (portanto os da primeira instância) competentes para processar e julgar tais feitos.
2.2.2. Dos títulos judiciais
Os títulos judiciais que se submeterão ao novo regramento do cumprimento sincrético são todos os demais incisos do artigo 475-N, ainda não analisados, a saber:
I – a sentença proferida no processo civil que reconheça a existência de obrigação de fazer, não fazer, entregar coisa ou pagar quantia;
III – a sentença homologatória de conciliação ou de transação, ainda que inclua matéria não posta em juízo;
V – o acordo extrajudicial, de qualquer natureza, homologado judicialmente;
VII – o formal e a certidão de partilha, exclusivamente em relação ao inventariante, aos herdeiros e aos sucessores a título singular ou universal.
A redação do inciso I pode dar margem a dúvidas, pois fala em "sentença cível que reconhece a existência de obrigação" e, numa interpretação literal, é inegável que estariam aqui abrangidas também as sentenças meramente declaratórias e as constitutivas. Seriam, portanto, aplicáveis, numa primeira leitura, para a sentença que apenas declara e para aquela que cria ou determina um novo status de uma relação jurídica, as regras do cumprimento sincrético. Exemplificando, se Fulano vai a juízo pedir a declaração de existência de uma dívida em face de Cicrano e obtém decisão judicial declaratória: sobre esta decisão, após uma apressada leitura do primeiro inciso do artigo 475-N, incidiria a regra segundo a qual se aplicaria o módulo de cumprimento no próprio processo em que a sentença foi proferida.
Nesse sentido Fredie Didier Junior afirma que:
"(...) o rol dos títulos executivos judiciais no direito positivo brasileiro sofreu considerável ampliação com a mudança da redação do inciso I do art. 475-N do Código de Processo Civil (antes inciso I do art. 584, ora revogado), que confere eficácia executiva à sentença que reconhecer (certificar) a existência de uma obrigação (um direito a uma prestação). Há quem admita, por isso, e com razão, a eficácia executiva também de sentenças meramente declaratórias, desde que reconheçam a existência de um direito a uma prestação". (DIDIER JR, 2007)
Mais adiante o mesmo autor prega também efeitos executórios às sentenças constitutivas, alegando que uma sentença constitutiva pode reconhecer direitos a uma prestação: "ao certificar e efetivar um direito potestativo, o órgão jurisdicional certifica, também, por tabela, o direito a uma prestação que daquele é conseqüência". E apresenta inclusive uma:
"(...) regra geral: uma sentença constitutiva, ao efetivar um direito potestativo, cria um preceito que deve ser obedecido pelo sujeito passivo, consistente no dever de obedecer à nova situação jurídica criada, não criando embaraços à sua concretização. Surge, pois, um dever de prestar (correlato a um direito a uma prestação negativa) cujo descumprimento pode dar ensejo à instauração da atividade executiva, que, rigorosamente, buscará efetivar o comando judicial contido na sentença constitutiva" (DIDIER JR, 2007)
Ocorre que tal entendimento pode trazer diversas perplexidades aos cientistas do direito. Vimos no tópico 1.3 que, por definição, a sentença meramente declaratória transitada em julgado faz encerrar a atividade jurisdicional. Logo, não há que se falar em módulo de cumprimento ou de execução.
Também como vimos anteriormente, a classificação das sentenças está intimamente atrelada à exordial: se o que é pedido é apenas uma declaração, uma vez concedida esta, encerra-se a atividade jurisdicional. Não há motivo para pensarmos de forma diferente. Não há que se falar em continuidade sincrética. Caso contrário, inevitavelmente alguns aventariam possibilidades que acabariam por demonstrar-se absurdas. Sabemos que as sentenças meramente declaratórias são imprescritíveis... e se fossem, por si só, executáveis, o vencedor de uma demanda declaratória de dívida poderia ficar esperando o pagamento (que não viria, pois não foi pedido), sobre o qual incidiria teoricamente uma multa de 10 % (artigo 475-J do Código de Processo Civil), deixaria passar os 6 meses previstos no inciso 5º do art. 475-J para seu arquivamento e... após 40, 50, 60 anos ou mais, poderia pedir o cumprimento da sentença, mediante atos executivos, de seu "título executivo imprescritível".
Insistimos pela segunda vez que antes mesmo de pensarmos na questão da imprescritibilidade, a nosso ver, já não há possibilidade de cumprimento da sentença meramente declaratória pelo simples fato que tal sentença faz encerrar a atividade jurisdicional, por sua própria natureza.
Assim sendo, sentenças que podem ser objeto de cumprimento através de atos executivos são tão somente aquelas em que a atividade jurisdicional é necessária para que lhe se dê efetividade: as condenatórias. Só aqui haverá oportunidade para o sincretismo processual, pois nos outros casos a atividade certamente encerrou-se.
Apenas para reforçar esse entendimento, ou seja, de que o cumprimento sincrético só ocorre nos casos de sentenças condenatórias oriundas, por tudo quanto dito até aqui, de pedidos condenatórios, atente-se que o cumprimento se sentença, conforme os dizeres do artigo 475-I deverá ocorrer de duas formas alternativas: ou de acordo com as regras dos artigos 461 e 461-A, ou de acordo com as do artigo 475-J e seguintes do Código de Processo Civil. Para que seja possível a argumentação, antecipamos 14 que os primeiros dois artigos tratam do cumprimento da sentença que impõe, respectivamente, um fazer/não fazer e a entrega de coisa. O terceiro artigo citado trata daquela que impõe o pagamento de quantia certa. Pois bem, em ambos os primeiros, a lei fala em "objeto": diz que será concedida a tutela na ação que tenha por "objeto" uma daquelas obrigações. Ora, que é o objeto 15 senão o próprio bem da vida pedido na exordial? E se a sentença for de procedência, a tutela concedida não terá natureza condenatória? Tal sentença terá um dos seguintes motes: "Te imponho que faças o que não queres fazer!" – ou – "que não faças o que queres!" – ou ainda – "que entregues o que não queres entregar!" – e, sucessivamente, veremos que as ordens não acatadas ensejarão conseqüências, em detrimento do inadimplente, através de medidas coercitivas independentemente de qualquer outra solicitação por parte do vencedor: é a Justiça atuando de ofício. Ora, não são condenações?
O último caso de cumprimento sincrético é o do artigo 475-J. Aqui a demonstração da natureza condenatória da sentença é ainda mais óbvia, pois o termo utilizado pela lei não deixa dúvidas: "condenado". De fato, diz o artigo que será acrescida multa de dez por cento à dívida do devedor condenado, caso este não efetue o pagamento após 15 dias. Então, obviamente, para que seja possível a atuação do novo sistema, no caso de sentença que envolva uma obrigação de pagar quantia certa, é necessária uma condenação. Condenação esta que, forçosamente, é decorrente de um pedido condenatório contido na exordial. Condenação que, se não for cumprida, submeterá, automaticamente, o devedor aos atos sub-rogatórios executivos.
Ficou portanto demonstrado que todas as hipóteses contempladas pelo inciso I do artigo 475-N são sentenças condenatórias. As outras sentenças, que não são condenatórias, em respeito ao numerus clausus dos títulos executivos judiciais, títulos executivos judiciais não são. De forma alguma ocorrerá, portanto, o cumprimento da sentença meramente declaratória. Isto porque, repetimos, as declaratórias não estão inseridas no rol taxativo do artigo 475 e, por conceito, não ensejam, nem requerem, por si, uma continuidade da atividade jurisdicional, pois o pedido do autor já foi totalmente satisfeito (ou não) com a emanação da sentença de procedência (ou improcedência).
Nesse mesmo sentido, Athos Gusmão Carneiro manifestou-se na Revista IOB de Direito Civil e Direito Processual Civil nº 48, do bimestre Julho-Agosto de 2007, na página 88: "A sentença tipicamente declaratória continua a ser "satisfativa" por si mesma, não necessitando (e, portanto, não admitindo) cumprimento".
Isso porque toda sentença meramente declaratória jamais poderá conferir ao direito declarado um conteúdo de exigibilidade. Dirá apenas: O direito existe! – ou – Não existe! – ou – O documento é falso! - ou - É verdadeiro! Apenas isso.
Câmara (2006, p. 95), nessa mesma direção encontra mais um argumento: que a interpretação da norma deve ocorrer de forma sistemática. Se prevalecer o entendimento de Didier Júnior, o parágrafo único do artigo 4º do Código de Processo Civil (o qual afirma poder o demandante postular apenas uma declaração de existência ou não de uma relação jurídica, se assim o desejar), perderia totalmente o sentido. A este ponto coloca a seguinte pergunta: "Ora, de que adiantaria a lei dizer que o demandante pode limitar-se a postular a declaração, se o resultado prático disso seria rigorosamente o mesmo que se produziria se ele pedisse a condenação?" Respondemos nós: de nada! E não podemos admitir que tal parágrafo único sirva apenas de adorno.
Assim, inexistente, no pedido, a rogativa para algum tipo de condenação, não se prestará a sentença dali proveniente ao cumprimento sincrético. Nem poderia ser diferente, pela expressa regra do artigo 460 do Código de Processo Civil, que proíbe a emanação de sentença de natureza diversa da pedida. Porém, atenção: é que genuínas sentenças ou decisões condenatórias vem sendo erroneamente classificadas ou de meramente declaratórias ou de constitutivas.
É o que ocorre, por exemplo, no caso da decisão que extingue a execução provisória: tem aparência de ser constitutiva, mas, convenhamos, a própria lei, no inciso I do artigo 475-O do Código Processual, estabelece que o exeqüente "se obriga" a indenizar o executado pelos prejuízos sofridos. Ora, se "obriga" a indenizar, condena. Igualmente, é comum deixar-se levar pelo engano que a anulação de um ato jurídico declarado em sentença tenha apenas o dom de desconstituir, fazendo que as partes retornem ao estado anterior. Ora, se o autor quiser que esse retorno represente uma mudança no mundo fático, indubitavelmente terá contratado um bom advogado que, na inicial, terá pedido a efetivação de tal mudança, no caso de procedência. Ora, essa sentença também será condenatória! Ainda sobre esse caso, em respeito ao artigo 182 do Código Civil, não sendo possível fazer com que as partes retornem ao estado anterior, as partes deverão ser "indenizadas com o equivalente". Ou seja, mesmo da impossibilidade fática de cumprir-se a condenação de forma satisfativa em relação ao bem da vida, nasce uma condenação em pecúnia.
A doutrina que se apóia no cumprimento sincrético das sentenças declaratórias e constitutivas, não reconhece condenações nos exemplos acima. Tratam as conseqüências das decisões como meros "efeitos anexos 16". Ora, não são efeitos anexos: é o próprio bem da vida perseguido, o próprio objeto do pedido que está sendo concedido ou devolvido ao estado anterior.
Reforçamos o quanto dito anteriormente: deve-se analisar o pedido mediato. O mesmo engano, que é meramente terminológico, vem dragando os Ministros do Superior Tribunal de Justiça. Trazemos a baila o Recurso Especial 551184/PR, cujo Relator Min. Castro Meira, em relação a pedido de repetição de indébito em face do INSS, decidiu que:
"Operado o trânsito em julgado da decisão que determinou a repetição do indébito, é facultado ao contribuinte manifestar a opção de receber o respectivo crédito por meio de precatório regular ou compensação, eis que constituem, ambas as modalidades, formas de execução do julgado colocadas à disposição da parte quando procedente a ação. Não há na hipótese dos autos violação à coisa julgada, pois a decisão que reconheceu o direito do autor à compensação das parcelas pagas indevidamente fez surgir para o contribuinte um crédito que pode ser quitado por uma das formas de execução do julgado autorizadas em lei, quais sejam, a restituição via precatório ou a própria compensação tributária. Por derradeiro, registre-se que todo procedimento executivo se instaura no interesse do credor Código de Processo Civil, art. 612 e nada impede que em seu curso o débito seja extinto por formas diversas como o pagamento propriamente dito - restituição em espécie via precatório, ou pela compensação."
É que, na realidade, muito embora o contribuinte tenha cogitado na inicial uma compensação, é inegável que esta também condena. Em outras palavras, o pedido inicial já era de condenação, sendo a compensação mero modus procedendi dela, pois se presta, de toda forma, a concessão do bem da vida pretendido. Tenhamos em mente: o bem da vida é o pedido mediato. A Lei 8.383/91 (Lei da Ufir), com redação conferida pela Lei 9.069/99 estabelece, nos casos de pagamento indevido, ou a maior, de tributos, contribuições federais, inclusive previdenciárias, e receitas patrimoniais, mesmo quando resultante de reforma, anulação, revogação ou rescisão de decisão condenatória, o contribuinte poderá efetuar a compensação desse valor, no recolhimento de importância correspondente a período subseqüente, sendo-lhe facultado, porém, optar pelo pedido de restituição. Pode o autor pedir a compensação ou, alternativamente, a restituição: o bem mediato não é nem uma nem outra, mas a condenação a receber, de alguma forma, seu crédito.
Outra ementa brandida por aqueles que querem ver todo tipo de sentença sendo "sincretizada" é a do Recurso Especial 588202 / PR, onde se lê:
"A sentença declaratória que, para fins de compensação tributária, certifica o direito de crédito do contribuinte que recolheu indevidamente o tributo, contém juízo de certeza e de definição exaustiva a respeito de todos os elementos da relação jurídica questionada e, como tal, é título executivo para a ação visando à satisfação, em dinheiro, do valor devido. – Rel. Min. Teori Albino Zavascki".
Ora, pelos mesmos motivos apontados acima, tal sentença não é declaratória. Prova disso é o fato do próprio relatório trazer em seu bojo a seguinte consideração:
"Consistindo a compensação e a restituição em modalidades de execução do julgado, pode a parte, detentora de título judicial que declare o direito oriundo de pagamento indevido ou a maior de tributo, escolher entre a compensação e a restituição por meio de precatório 17."
Vemos que, no resultado prático, vem acertando o Tribunal da Cidadania. Assim, se porventura o demandante tem em mãos uma sentença aparentemente declaratória de dívida vencida, de pagamento não devido ou, ainda, uma decisão aparentemente constitutiva de anulação de ato, entre tantas outras hipóteses, talvez na realidade tal ato tenha índole de condenação, aplicando-se coerentemente o cumprimento sincrético da sentença mediante atos executivos.
O inciso III do artigo 475-N traz a hipótese de "sentença homologatória de conciliação ou de transação, ainda que inclua matéria não posta em juízo". Como ficou bem demonstrado, trata-se de despacho homologatório, não de sentença, muito embora haja resolução de mérito (Código de Processo Civil, artigo 269, III).
Em relação à redação anterior, é interessante notar que vinham juntas a "sentença homologatória" de que ora tratamos e a sentença arbitral, que tem para si, após a Lei 11.232/2005, inciso próprio (o VI, já comentado). Ademais, tratou o legislador de deixar explícito o que já antes nos parecia muito lógico: acrescentou ao inciso os dizeres: "ainda que verse sobre matéria não posta em juízo". Assim, na conciliação em audiência, as partes podem transacionar livremente, podendo inclusive trazer questões novas, ou seja, não cogitadas no pedido, e ajustar o que melhor lhes aprouver. É que se trata de mero pacto entre as partes, e por isso não se aplicará aqui o Princípio da Congruência, trazido na norma pelos artigos 128 e 460 do Código de Processo Civil: a atividade jurisdicional se limitará ao ato sancionatório do pacto livremente estabelecido pelos diretos interessados, assistidos pelos seus causídicos. Desta feita, a transação ou conciliação poderá conter matéria que sequer foi ventilada na inicial ou na contestação do procedimento previsto pela Lei 9.307/96, e tal matéria fará necessariamente parte do título;
O inciso V do artigo em análise traz a hipótese de acordo extrajudicial, de qualquer natureza, homologado judicialmente 18. Aqui, o ajuste entre as partes é pré-existente e o que se busca não é outra coisa senão a simples homologação judicial do acordado. Por certo, novamente não estamos diante de uma verdadeira sentença. Ramos (NEVES et al., 2006, p. 259) chega a dizer que se trata de mera "chancela" do juiz. Ressalte-se que não estamos tratando da hipótese em que a transação é referendada pelo Ministério Público, Defensoria Pública ou pelos Advogados dos transatores (art. 585, II do Código de Processo Civil), pois dessa forma o documento seria título executivo extrajudicial: tratamos, nesse momento, da decisão que homologa contrato de transação, que impõe a pelo menos uma das partes o cumprimento de uma obrigação e que é título executivo judicial. Segundo Câmara, tal homologação não fará coisa julgada material, pois o caso é de jurisdição voluntária, trazendo também a opinião de Dinamarco, para o qual não ocorre coisa julgada nem formal, nem material:
"o ato de homologação terá eficácia de sentença, mas não terá propriamente essa natureza, não sendo alcançado pela autoridade de coisa julgada, já que não é proferido em um processo". (apud CÂMARA, 2006, p. 102)
Embora não seja propriamente uma sentença, terá eficácia de sentença e atuará como título executivo no cumprimento sincrético.
Esclarecidos estes principais traços, cabe ora fazer um elogio ao legislador. É que consertou erro técnico cometido em 1995 quando inseriu, através da Lei 9.099, em seu artigo 57, o acordo extrajudicial, "de qualquer natureza ou valor", homologado por juiz competente, independentemente de termo, valendo a sentença como título executivo judicial. Decerto não era aquela lei, que trata especificamente dos Juizados Especiais, o melhor local para tratar de questão que interessa todo o processo civil, não só aqueles Juizados. Assim, andou bem nosso legislativo em introduzir norma com valor e eficácia em todo o processo civil em Código adequado.
Há quem entenda ser este dispositivo aplicável para a hipótese de homologação judicial de título extrajudicial. Os que pregam tal teoria dizem, em resumo, não haver em nosso sistema normativo regra explicita a impedir o portador de tais títulos de valer-se da homologação, visto que a norma fala em "acordo extrajudicial de qualquer natureza". Esta possibilidade poderia ser desejada, visto que a homologação viabilizaria a aplicação dos artigos 461 ou 461-A do Código de Processo Civil, os quais prevêem concessão de tutela específica.
A nosso ver, não necessitaria a lei prever especificamente tal impossibilidade, pois a norma já impede tal conjectura a priori. Balizamos nossa posição no artigo 3º do Código de Processo Civil, o qual estabelece que para propor ação é necessário ter, além de legitimidade, interesse. O interesse é, portanto, uma das condições da ação. Mas a que serve impor o interesse processual como um "pré-requisito" da demanda? Segundo Moacyr Amaral Santos (1999, v.1, p. 170) a necessidade do interesse de agir se revela "para que este tutele o interesse primário, que de outra forma não seria protegido". Em outras palavras, é necessário haver interesse (condição) de proteger um outro interesse (direito) que só pode ser protegido daquela forma (com aquela ação). Na visão de Vicente Greco Filho (1992, v.1, p. 42), para que fazer atuar o Judiciário é preciso "que a parte interessada use do meio adequado previsto pela lei para a correção da lesão, de modo que se pode dizer que o interesse só existe quando enquadrado na devida forma legal". Cintra (1997, p. 260) em obra conjunta com Cândido Dinamarco e Ada Pellegrini Grinover, assevera que o resultado oriundo da demanda deve ser útil e, portanto, é preciso que "em cada caso concreto, a prestação jurisdicional solicitada seja necessária e adequada". No mesmo sentido, Sérgio Bermudes (2006, p. 55) afirma que: "a prestação jurisdicional precisa ser útil" – e continua – "faltará utilidade à função jurisdicional, se ela se exercer desnecessariamente, sem que haja lide a prevenir ou a remediar" e, mais adiante conclui que "além de ter necessidade da prestação jurisdicional, o autor precisa pedir a providência adequada à satisfação de tal necessidade".
Acertar o que já está certo, não é necessário: é, portanto, inútil. Se o titular do direito já tem em mãos um título executável (muito embora extrajudicial, é executável por inserido no rol do artigo 585 do Código de Processo Civil), qual utilidade haveria em se pleitear uma tutela de conhecimento? Para conhecer o que, se já o direito já é conhecido? Qual a finalidade da ação cognitiva, se o demandante já tem em mãos cártula de título líquido, certo, exigível e... executável? Homologar o que, se tal cártula não necessita de homologação? – atente-se não "necessita" de homologação para ser título executivo, pois já o é.
No caso de ser vontade do legislador permitir a homologação judicial de um título extrajudicial, a norma deve dizê-lo explicitamente. È o caso, por exemplo, do futuro "Código Brasileiro de Processos Coletivos", cujo anteprojeto foi apresentado ao Ministério da Justiça no início de 2007, no qual, a vingar a atual redação, constará permissivo legal específico a consentir homologação judicial do Termo de Ajustamento de Conduta 19, legalmente um título executivo extrajudicial.
Se é uma questão formal, já que as mini-reformas do Código de Processo Civil estão em andamento, em querendo transformar os títulos executivos extrajudiciais em judiciais, nossos legisladores ainda estão em tempo, pois, em se tratando de vias procedimentais, tudo é possível desde que a norma o permita. O que não se pode fazer é abolir o interesse processual (utilidade, necessidade e adequação), já que é fator determinante para verificação da existência das condições da ação, como um dos princípios do Processo Civil, em nome da viabilização de uma tutela diversa da prescrita. Que se mude, então, o preceito legal, excluindo o interesse de agir do artigo 3º da norma Processual.
O inciso VII do artigo 475-N traz a hipótese do formal e da certidão de partilha, esclarecendo que as pessoas sujeitas à sua eficácia executiva são exclusivamente o inventariante, os herdeiros e os sucessores a título singular ou universal. Com finalidade didática, a doutrina classifica a sucessão, quanto aos efeitos, em dois tipos: a) sucessão a título universal; b) sucessão a título singular. Ora, quem é herdeiro, portanto, ou o é a título singular, ou o é a título universal. Não há um terceiro tipo, e mesmo que houvesse, seria inútil incluí-lo também, pois na realidade poderia o legislador ter posto um ponto final após "herdeiros": o conceito já estaria claro. A observação, embora trazida de outra forma, também é destacada por Câmara (2006, p. 104), que se refaz a Arnold Wald.
Seria escusável tal deslize se a regra nos tivesse sido trazida crua, se tivesse sido redigida às pressas, mas não é esse o caso. A redação do revogado parágrafo único do artigo 584 do Código Processual trazia a mesma atecnia, ao dizer que os "títulos a que se refere o no V deste artigo têm força executiva exclusivamente em relação ao inventariante, aos herdeiros e aos sucessores a título universal ou singular".
Além disso, a certidão e o formal de partilha não são títulos executivos. Título executivo será a decisão judicial que adjudicar o quinhão hereditário a uma pessoa. Mais uma vez o legislador não foi técnico.
Por fim, embora já tenhamos feito a análise dos casos em que cabe o cumprimento sincrético de acordo com os incisos do artigo 475-N, lembramos que a decisão que concede, segundo os ditames do parágrafo terceiro do artigo 461 do Código de Processo Civil, a tutela jurisdicional antecipada (nas causas cujo pedido se refaz a uma obrigação de fazer ou não fazer), deverá ter seu cumprimento nos moldes do novo sistema.
2.2.3. Da liquidação de sentença
Liquidar a sentença significa tornar líquido o valor de uma condenação, ou seja, fixar seu o valor por todos os meios que se fizerem necessários a este fim. Este módulo processual é o elo que une o conhecimento, onde fica estabelecida a procedência de um pedido, ao cumprimento daquela sentença meritória, quantificando-a. Significa, portanto, estabelecer o quantum debeatur. Por certo que só será necessária a liquidação nos casos em que a condenação seja ou um pagamento em moeda ou, nas ações universais, em bens que não poderiam ter sido determinados no pedido inicial. As reformas tratam do assunto em tópico totalmente novo, introduzindo no Processo de Conhecimento, mais especificamente no Título VIII, que trata do Procedimento Ordinário, o Capítulo IX, intitulado "Da Liquidação de Sentença" (artigos 475-A ao 475-H do Código de Processo Civil). Ficou com isto revogado o "quase" homônimo Capítulo VI (artigos 603 ao 611 do Código de Processo Civil )do Título I do Livro II, que trata do Processo de Execução. É que, antes cuidava-se da liquidação da sentença, ora tratamos da liquidação de sentença. As alterações, contudo, não foram meramente aperfeiçoamentos lingüísticos ou topográficos. A moderna liquidação assumiu novo temperamento, já que um terço dos velhos artigos mudaram apenas de endereço, mas os restantes dois terços foram totalmente desfigurados (vide nossos comentários preliminares na nota n. 1).
A liquidação passa a ser mero incidente processual, podendo ser requerida pelo credor, muito embora o condenado tenha apresentado recurso. A redação do § 2º autoriza o entendimento de que, mesmo na pendência de uma apelação, é possível requerer e dar continuidade ao módulo liquidatório, caso em que o mesmo será processado em autos apartados, no juízo de origem. Para que isso seja factível, o liquidante deverá instruir o requerimento com as cópias das peças processuais pertinentes. Esta nova forma prestigia em muito o princípio da celeridade processual, visto que o feito não ficará sobrestado aguardando a decisão do Tribunal. Por óbvio, no caso de não ter sido interposto recurso de apelação, a liquidação será processada nos próprios autos.
Sendo incidente processual, a parte contrária será apenas intimada do requerimento, na pessoa de seu advogado, o que, na maioria das Comarcas, ocorre através do Diário Oficial.
Já o § 3º do artigo 475-A versa, na verdade, não sobre a liquidação da sentença, mas sobre a sentença em si. Estabelece que, em dois casos específicos do procedimento sumário, (alíneas d e e do inciso II do artigo 275 do Código de Processo Civil - cobrança de seguro relativa a acidente causado por veículo, e ressarcimento por danos causados em acidente de veículo de via terrestre), a sentença deverá ser necessariamente líquida.
A proibição de sentença ilíquida é criticada por Câmara (2006, p. 82), em relação a alínea e, a nosso ver com razão, eis que a proibição de sentença condenatória genérica, no caso de ressarcimento por danos causados em acidente de veículo de via terrestre, pode ocasionar no caso concreto a fixação de uma pena injusta, se proferida a sentença em data muito próxima ao acidente (pelo menos é isso que se espera do procedimento sumário), pode ocorrer de não ser quantificada a real extensão do dano.
Araken de Assis (in Neves et al., 2006, p. 164) exemplifica a dificuldade de emanação de uma sentença líquida, nesses casos, citando a possibilidade de serem necessários longa internação ou tratamentos fisioterápicos ao acidentado e propõe que o dispositivo deve ser compreendido como se o juiz só não pudesse proferir sentença ilíquida apenas se lhe faltar "elemento necessário para a fixação do valor devido" (in Câmara, 2006, p. 83), ou seja, na verdade estaria o Juiz autorizado a proferir sentença ilíquida, bastando alegar a falta desse elemento. Ernane Fidélis dos Santos propõe como solução um julgamento por eqüidade, enquanto Alexandre Freitas Câmara e Rodrigo Mazzei são solidários, propondo que o feito deve ser convertido de sumário a ordinário, estendendo, portanto, sua duração. Consideram os autores que, em proferindo sentença líquida, essa pode ser, afinal, injusta, porém, visto que protegida pela coisa julgada, dela não caberá nem repetição de indébito, nem nova demanda com o intuito de complementar a indenização.
A questão é complexa e apenas o tempo poderá nos dar a solução, no entanto, posto o problema, não podemos nos furtar de opinar. A idéia inicial seria procurar uma solução no sentido de evitar a sentença de conhecimento enquanto não se tiver idéia da real extensão do dano, afinal mesmo o procedimento sumário não pode ser encarado como uma corrida de velocidade 20. A Justiça deve ser rápida, mas não é desejável que seja tão rápida ao pondo de produzir resultados imponderados, portanto potencialmente injustos. A alternativa de Araken de Assis seria ótima, mas não encontramos nenhum artigo de lei que possa respaldá-la. Data venia, a solução proposta por Fidélis, além de, a nosso ver, não ter respaldo legal, não resolve o problema. Nos parece, enfim, que a proposta Câmara-Mazzei tem uma lógica razão de ser e encontra respaldo nos §§ 4º e 5º do artigo 277 do Código de Processo Civil, que autoriza a conversão do procedimento sumário em ordinário sempre que houver necessidade de prova técnica de maior complexidade.
Do Código de Processo Civil se depreende que há três formas de tornar a sentença líquida. O artigo 475-B, o primeiro a ser analisado, quer cuidar da liquidação por cálculo aritmético. No entanto diversos autores, dentre os quais Eduardo Talamini, Cândido Rangel Dinamarco, Teresa Arruda Alvim Wambier e Rodrigo Mazzei (in Neves et al., 2006, p. 167-168), não vêem nesta, uma liquidação, posto que não há iliquidez, mas mera atualização da verba reclamada. Concordando com os doutrinadores acima, estudaremos o artigo cuidando para utilizar a nomenclatura correta.
Pois bem, o credor apresentará o pedido de atualização da verba, com a memória discriminada dos cálculos efetuados. Aqui abre-se a oportunidade para o demandado oferecer sua defesa através de impugnação, cujo conteúdo é delimitado pelo artigo 475-L.
Pode ocorrer, contudo, que o credor não tenha em mãos todos os elementos necessários para efetuar tal avaliação, mas que necessite de colaboração do demandado ou de terceiro, através da entrega dos dados que possibilitem a operação matemática. Nestes casos o Juiz determinará, de acordo com o § 1º do artigo em comento, a entrega das informações em no máximo 30 dias. Se for terceira pessoa a detentora dos elementos que possibilitarão os cálculos e esta não os entregar, o juiz, de acordo com o artigo 362 do Código de Processo Civil, "expedirá mandado de apreensão, requisitando, se necessário, força policial, tudo sem prejuízo da responsabilidade por crime de desobediência".
Se for o próprio demandado o possuidor das informações e este não as entregar, o § 2º do artigo em comento dita que "reputar-se-ão corretos os cálculos apresentados pelo credor". Uma primeira leitura desse parágrafo pode dar azo a erro. É que o autor não tinha os subsídios para apresentar cálculo algum: Não estava o credor justamente esperando os dados sem os quais não seria possível efetuá-lo 21? Por certo a interpretação não pode ser esta.
Para que seja possível enxergar o referido parágrafo sob outra ótica é necessário fazermos uma análise conjunta de todos os quatro parágrafos que complementam o artigo, analisando apenas a relação demandante-demandado. Tenhamos, então, presente o quanto foi dito dos primeiros dois, resumidamente: o parágrafo primeiro diz que se o demandante não tiver os dados, os requisitará ao Juiz o qual procurará obtê-los em 30 dias; o parágrafo segundo estabelece que no caso da não apresentação injustificada dos dados pelo demandado, "reputar-se-ão corretos os cálculos apresentados pelo credor" O § 3º autoriza o juiz a "valer-se do contador do juízo, quando a memória apresentada pelo credor aparentemente exceder os limites da decisão exeqüenda 22", e o § 4º estabelece que, em não concordando o credor com os cálculos feitos pelo contador oficial, a execução será feita pelo valor originariamente pretendido, "mas a penhora terá por base o valor encontrado pelo contador"
Pois bem, entendemos que a norma quis autorizar o credor a apresentar os cálculos após a negativa do devedor. A dinâmica seria a seguinte: Após a prolação de sentença líquida mas não atualizada no módulo de conhecimento, o demandante, por não possuir todos os dados necessários para proceder tal atualização, requer ao juiz que os requisite. Tais informações estão em posse do devedor, mas este não as entrega. Com isto, perderá o direito à impugnação, sujeitando-se aos cálculos que o credor reputar convenientes 23. O credor, então, apresentará uma conta, que forçosamente será feita tendo por base meras suposições de valores. O juiz, analisando-a pode considerá-la razoável ou não. Se o juiz reputar que o valor está dentro do plausível, aplica-se a regra do § 2º. Se o juiz considerar que há excesso, pedirá à contadoria que refaça os cálculos, nos termos do § 3º. A este ponto a regra do § 4º assume importância, pois quando estabelece que a execução será feita pelo valor trazido pelo autor, mas a penhora por aquele apurado pelo contador, quis na realidade dizer que os atos executivos do cumprimento da sentença continuarão seu curso sem possibilidade de, agora, oferecer-se impugnação, mas que, no momento da penhora, o valor a ser considerado será aquele judicialmente calculado. É uma forma de evitar abusos por parte do credor, que não poderá apresentar valores absurdos, mas é também uma forma de protegê-lo de outras demoras.
A segunda forma de liquidação prevista pelo Código Processual è dita liquidação por arbitramento e está regulada pelos artigos 475-C e 475-D. Ocorre quando, muito embora nos próprios autos se encontrem todos os elementos para dar liquidez à sentença, esta é proferida de forma ilíquida, necessitando de perícia capaz de calcular o quantum devido.
Pode tal forma de liquidação ocorrer por vontade das partes (desde que a fixação do valor seja possível por perícia), por sentença, ou quando o exigir a natureza do objeto 24. É que em alguns casos pode ser mais desejável uma rápida prolação da sentença que defina logo o mérito, do que postergar tal ato para simplesmente decidir alguma questão quantitativa. Resolvendo a questão de mérito, o an debeatur fica definido, o que pode ser interessante, por exemplo, num caso cuja quantificação do devido envolva cálculos de extrema complexidade ou que envolva pedidos ilíquidos juntamente a outros, já líquidos: já que há impossibilidade do processo apresentar "mini-sentenças", o melhor a fazer é decidir prontamente todo o feito, deixando os cálculos técnicos para o segundo módulo, que será de liquidação. Esta possibilidade interessa particularmente ao credor, já que há, no parágrafo único do artigo 466 do Código de Processo Civil, a autorização de considerar-se tal sentença ilíquida (genérica) como título constitutivo de hipoteca judiciária, cuja averbação ordenada pelo Juiz será feita junto ao Registro de Imóveis (artigo 167, I, nº2 da lei 6015/73).
Por serem considerados prova técnica, parte da doutrina 25 considera aplicáveis as regras previstas para a prova pericial (artigos 420 a 439 do Código de Processo Civil) naquilo que não contrastarem com os outros artigos do capítulo em análise. Se antes a aplicação era necessária, porque agora não deveria sê-lo?Devemos concordar com tal opinião, reconhecendo que não há motivo jurídico ou lógico algum em se prescindir daqueles regramentos só por estarmos em outro módulo, já que lá, certamente, teriam sido respeitados. Esse raciocínio provém do próprio entendimento que a primeira sentença do processo, como vimos, reflete o mérito com mera postergação da liquidez.
O último tipo de liquidação é denominado "por artigos" 26, terminologia que persevera muito embora o pedido não seja mais feito em tópicos. Esta liquidação é tratada pelos artigos 475-E e 475-F, que cuidam de hipótese em que o an debeatur também já está definido, assim como na liquidação por arbitramento. Porém, aqui, os elementos capazes de dar liquidez à sentença, são extrínsecos ao processo, são fatos novos. Não há mero diferimento da fixação do quantum debeatur: a liquidez não poderia dar-se nem mesmo por perícia nos autos, pois estes não contém todos os parâmetros necessários para tal quantificação. Nesse sentido, no momento da prolação da primeira sentença, os parâmetros estão "fora" dos autos.
A doutrina vem afirmando em peso que a liquidação por artigos, por sua complexidade, não poderá ser considerada mero incidente processual, sendo que o condenado não deverá ser simplesmente intimado do requerimento, mas citado da inicial, a qual deverá ser redigida com as formalidades impostas pelos artigos 282 e 283 do Código de Processo Civil. A autorizar esse entendimento é o próprio artigo 475-F, ao estabelecer que esta modalidade observará "no que couber, o procedimento comum", fazendo, em seguida, remissão ao artigo 272 do mesmo Código. Este, por sua vez, esclarece que "o procedimento comum é ordinário ou sumário". O primeiros dois artigos que disciplinam o procedimento ordinário são justamente os de número 282 e 283 e é firme o entendimento doutrinário em relação à aplicação destes dois artigos, para satisfação dos requisitos da inicial, também no procedimento sumário.
A nosso ver, no entanto, com a máxima vênia, ousamos discordar. Muito embora "no que couber" seja expressão por demais vaga e se tenha na petição inicial uma das pilastras de todo o processo civil, não podemos deixar de aplicar ao caso, mais uma vez, pura hermenêutica. É pilastra ainda mais robusta, por ser decorrente da lógica e não da lei, mas aplicável à ela, a regra segundo a qual a norma específica revoga a geral.
É que, muito embora o Capítulo IX, que trata especificamente do tema da liquidação, seja o penúltimo do mesmo Título VIII (Do Procedimento Ordinário), inaugurado pelo artigo 282, autorizando a conclusão de que estas duas normas tem igual peso em especificidade, não podemos olvidar que, na verdade, o artigo 475-F faz referência ao artigo 272, pertencente a Capítulo intitulado "Das Disposições Gerais". Assim, aplica-se tudo quanto for aplicável do procedimento comum, desde que não esteja em desacordo com as regras específicas daquele Capítulo, o de número IX.
Logo, se no Capítulo IX está prevista a intimação do requerimento, assim é que deverá ser feito. O verdadeiro sentido do quanto previsto no artigo em análise é meramente fazer com que o modus procedendi da liquidação fique desvinculado daquele utilizado no primeiro módulo. Significa apenas que, para estabelecer se o módulo de procedimento comum será sumário ou ordinário, não servirá como parâmetro o sistema procedimental que se adotou até ali, bem sim outros fatores. Há possibilidade, parece lógico, de o juiz deparar-se com o caso concreto, recebendo simples requerimento, desde que haja "artigos" a propiciar o contraditório, inclusive, diante da literalidade do artigo 272, que traz a alternativa "ou", de aplicar um ou outro, sendo inclusive aconselhável que aplique o rito mais célere.
Assim, seria incoerente o cumprimento dos parâmetros exigidos pelos artigos 282 e 283, tendo por base o quanto dito, argumento que utilizamos em aliança com o Princípio da Celeridade, substrato que fundamenta toda a reforma processual. Jamais poderia, portanto, ser julgado inepto um requerimento de liquidação por não conter, por exemplo, o valor da causa, visto que é justamente este que se busca, ou ainda o endereço de domicílio do demandado, que certamente já estará nos autos.
Ainda há que se mencionar o Princípio da Fidelidade ao Título, insculpido no artigo 475-G, o qual estabelece preclusão da discussão meritória neste módulo, vedando a modificação da sentença e, com isso, circunscrevendo a limitação da nova discussão às questões de mera dosagem.
Cabe uma última observação, antes pincelarmos alguns comentários sobre a nova sistemática do cumprimento de sentença: não sendo mais considerada como sentença a decisão que determina o quantum, mas mera decisão interlocutória, o recurso cabível não será a apelação, mas sempre o agravo de instrumento, conforme o artigo 475-H do Código de Processo Civil. Resultado disso é a impossibilidade de fazer sobrestar o feito. Assim, em não havendo interrupção do processo mesmo com a interposição do recurso, inicia-se o último módulo processual. Por óbvio, no entanto, se a decisão extinguir o processo, será sentença, da qual caberá apelação. Neste sentido já decidiu a 5ª Turma do Tribunal Regional Federal da Segunda Região 27.