SUMÁRIO: 1. Introdução; 2. A relação entre o público e o privado no paradigma do Estado Democrático de Direito: premissas para a delimitação do interesse tutelado pela Advocacia Pública; 3. Da Advocacia Pública na Constituição da República de 1988: seu papel no Estado Democrático de Direito; 4. Das funções institucionais do Advogado Público: consultiva e contenciosa; 5. Da autonomia da Advocacia Pública em relação aos governantes/Administradores dos entes presentados – uma necessidade lógica no atual paradigma; 6. Conclusões
RESUMO
Trata-se de artigo jurídico que busca fixar o papel da Advocacia Pública no atual paradigma constitucional vigente no Brasil – o do Estado Democrático de Direito. Com isso, delimita-se a real função institucional da Advocacia Pública, essencial à justiça, de defender o Estado enquanto efetivador do interesse público. Nega-se, assim, a subordinação do Advogado Público aos dirigentes, administradores ou, até mesmo, ao Chefe do Poder Executivo, sendo que tais autoridades somente serão defendidas por aquela instituição na medida em que atuarem em sintonia com os anseios populares plasmados na Constituição da República e nas leis vigentes.
Palavras-Chave: Advocacia Pública. Paradigmas constitucionais. Estado Democrático de Direito. Autonomia. interesses públicos e privados.
Abstract: This article aims to define the role of the State Attorneys in Brazil’s current constitutional paradigm – the democratic rule-of-law State. Through that, it is possible to mark out the real institutional role of the State Attorneys, essential to justice, in defending the State as the agent that carries out the public interest. It is therefore denied any subordination between the State Attorneys and the chair persons, managers or even the President, for these authorities shall only be legally defended inasmuch as they perform accordingly to the public needs inscribed in the Constitution and governing laws.
Key-Words: State Attorneys. Constitutional Paradigms. Democratic Rule of Law State. Autonomy. Public and Private Interests.
1. Introdução
Conforme sabido, vigia, no passado, notadamente no período absolutista, a teoria segundo a qual o Estado seria irresponsável por seus atos. Tanto assim é que se tornaram comuns expressões como "Le roi ne peut mal faire", na França, ou "The king can do not wrong", na Inglaterra. Em tradução livre, o rei não pode errar ou o rei nunca erra [01].
Ultrapassado esse período, o Estado passou a responder pelos atos que seus servidores ou Administradores praticavam em face do cidadão. Nesse contexto, imperioso se fez que o Estado, agora sujeito não só de direitos, mas também, e principalmente, de obrigações, fizesse-se presente em demandas judiciais. Para tanto, precisava de um órgão especializado em tal mister.
Eis que surge a figura do Advogado Público, enquanto pessoa dotada de capacidade postulatória apta a representar [02], judicial e extrajudicialmente, o Estado em todas as ocasiões em que sua presença se fizesse necessária.
Com a crescente conscientização popular acerca de seus direitos, houve um vultoso incremento da participação do Estado em demandas judiciais. Pode-se dizer, inclusive, que o Estado [03] é, hoje, a pessoa que mais está presente, como parte, principalmente como réu, em ações judiciais.
Daí a importância de se estudar, com o devido cuidado e atenção, o verdadeiro papel da Advocacia Pública. E tal estudo deve ser feito, como não poderia deixar de ser, valendo-se das lentes do paradigma jurídico vigente – o do Estado Democrático de Direito.
Tal pressuposto influenciará decisivamente nas conclusões a que se pretende chegar com o presente artigo, porquanto, a depender do paradigma adotado, um mesmo instituto pode ter os mais díspares significados e um órgão, as mais divergentes funções.
Para comprovar tal assertiva, iniciar-se-á definindo o que vem a ser paradigma para, em seguida, delinear os contornos do atualmente vigente.
Feito isso, analisar-se-ão as diversas funções da Advocacia Pública no Estado Democrático de Direito, explicitando, assim, o seu papel nesse atual paradigma.
Todo esse esforço tem por objetivo tentar responder à seguinte indagação/problema: saber se o papel do Advogado Público deve se restringir à defesa dos interesses manifestados pelos governantes/administradores ou se o mesmo tem por função defender o Estado em sentido amplo, cujo poder emana do povo. Noutros termos, pergunta-se: seria o Advogado Público um órgão de defesa do governo ou do Estado?
Buscar-se-á responder a tal indagação valendo-se, como marco teórico, da teoria discursiva de Jürgen Habermas, o qual, ao descrever o paradigma do Estado Democrático de Direito, definiu-o a partir do entrelaçamento das esferas pública e privada, superando, com isso, tal separação. O público não mais se identifica com o interesse manifestado pelo governante, tal como ocorria no Estado Social. O privado, por sua vez, não é limitado pelos interesses individuais egoísticos dos cidadãos. No Estado Democrático de Direito, o interesse público só o é se respeitar os interesses privados dos cidadãos. O privado, por sua vez, só é legítimo na medida em que respeita os anseios coletivos (lembre-se, neste ponto, por exemplo, da função social da propriedade).
De todo o exposto, já restou evidente que a hipótese que se tentará comprovar com o presente trabalho consiste na afirmação de que o papel da Advocacia Pública é promover a defesa do interesse público, cujo conteúdo pode ser alcançado a partir da efetivação dos direitos e garantias fundamentais plasmados na Constituição. Tais interesses podem ou não coincidir com os dos governantes, mas, independentemente disso, o Advogado Público deve obediência tão-somente à Constituição e às leis válidas. Nesse sentido, o governante deve ser defendido apenas se sua atuação estiver em consonância com os princípios e regras vigentes em nosso ordenamento jurídico.
Definido o escopo e o plano para se o alcançar, iniciem-se os trabalhos!
2. A relação entre o público e o privado no paradigma do Estado Democrático de Direito: premissas para a delimitação do interesse tutelado pela Advocacia Pública
Todo trabalho, seja ele científico ou não, necessita de um ponto de partida.
Além disso, é necessário que o seu protagonista tenha uma série de conhecimentos e experiências prévias que nortearão a sua empreitada, os quais influenciarão diretamente no resultado final da mesma. Afinal, tais experiências e pressupostos prévios definirão o caminho a ser tomado para se alcançar a meta visada.
É justamente essa dupla função – a de ponto de partida e a de pressuposto para a pesquisa – que desempenha o paradigma [04].
Dito isso, atente-se que, para Thomas Kuhn [05], o termo paradigma pode ter dois significados:
De um lado, indica toda a constelação de crenças, valores, técnicas etc., partilhados pelos membros de uma comunidade determinada. De outro, denota um tipo de elemento dessa constelação: as soluções concretas de quebra-cabeças que, empregadas como modelos ou exemplos, podem substituir regras explícitas como base para a solução dos restantes quebra-cabeças da ciência normal. [06]
A par dessas duas acepções, pode-se dizer que o paradigma constitui o ponto de partida para qualquer análise ou interpretação que se pretenda fazer de algo. Enquanto pressuposto do intérprete, o paradigma interfere direta e decisivamente na conclusão alcançada. Afinal, como ensina o Prof. Marcelo Cattoni:
Toda interpretação, assim como toda atividade humana, dá-se num contexto histórico, pressupõe paradigmas e, para usar uma expressão de Habermas, um pano de fundo de mundos da vida compartilháveis [HABERMAS, The theory of communicative action], que simplesmente não podem ser, em sua totalidade, colocados entre parênteses, através de uma atividade de distanciamento ou abstração, porque o ser humano não pode abstrair-se de si mesmo, não pode fugir à sua condição de ser de linguagem; "paradigmas", "mundos da vida" compartilháveis, embora plurais, são condições para a interpretação, são condições de comunicação. [07]
Noutros termos, é ele, o paradigma, que define a partir do que o pesquisador está desenvolvendo sua teoria.
Transferindo essa noção para a Ciência do Direito, pode-se afirmar, com Habermas, que o Estado moderno viveu, ao longo da história, sob três paradigmas distintos, quais sejam, o do Estado Social, o do Estado Liberal e, por fim, o do Estado Democrático de Direito.
A depender do paradigma adotado pelo jurista, a interpretação da legislação vigente poderá variar, tendo em vista os diferentes pressupostos ou pontos de partida de que se valerá. Afinal:
(...) os paradigmas contêm ideologias ou visões de mundo que fornecem uma série de pressupostos necessários à interpretação concreta de direitos. Por exemplo, conceitos jurídicos como liberdade e igualdade são extremamente dependentes dessa discussão paradigmática. As diferentes interpretações que liberais e socialistas chegaram o demonstra. [08]
Nesse ensejo, note-se que a constituição, enquanto manifestação da vontade do verdadeiro titular do poder – o povo – deve, embora isso nem sempre ocorra, espelhar o paradigma adotado pela comunidade que busca reger.
Quando o paradigma vivenciado por certa sociedade é previsto na Constituição vigente, passa ele a ser um paradigma constitucional. Noutros termos, passa de paradigma sociológico, constituído pelas crenças, tradições e visões de mundo de uma determinada comunidade, para um paradigma jurídico.
No caso brasileiro, a Constituição, ao proclamar que todo poder emana do povo (artigo 1º, parágrafo único), instituiu o Estado Democrático de Direito, elegendo-o como o paradigma que deve nortear a atuação do Estado em todas as suas esferas.
Qualquer instituto, órgão ou ente Estatal deve agir segundo esse paradigma, sob pena de incorrer em inconstitucionalidade. Nesse sentido:
(...) atentar contra a Democracia é atentar contra a ordem constitucional, enquanto expressão normativa da vontade popular.
Por escolha constitucional brasileira, a Democracia apresenta-se como marco insubstituível da prática jurídica social, sendo inegociável, senão com o rompimento da atual ordem constitucional.
Atos despóticos são, assim, atos ilícitos. [09]
Antes de adentrar o paradigma vigente, contudo, cumpre dizer que o Estado Democrático de Direito foi precedido, modernamente, por dois outros paradigmas constitucionais – o do Estado de Direito (ou Liberal) e o do Estado Social.
O primeiro [10] instituiu uma ruptura com o antigo modelo medieval de castas [11], bem como com o modelo Absolutista, do Estado Nação, que se sucedeu.
É um paradigma que entende a liberdade como a possibilidade de fazer tudo aquilo que um mínimo de leis não proíbam, diz Locke e Montesquieu. (...) é a liberdade de ter, a liberdade dos burgueses, dos modernos. (...)
Essa idéia de liberdade se assenta, obviamente, na propriedade, na idéia de igualdade de uma sociedade que afirma que todos os seus membros são proprietários, no mínimo de si próprios, pois mais ninguém pode ser propriedade de outrem e, assim, todos são sujeitos de Direito. [12]
Naquele momento, portanto, os direitos a serem garantidos pelas declarações constitucionais que nasciam eram concebidos como liberdades negativas, protegendo o cidadão contra o arbítrio estatal. O papel do Estado, então, assume feição meramente regulatória, "reservando ao mercado a tarefa de promover a distribuição equânime de oportunidades e benefícios" [13]. Nesse sentido, afirma Habermas:
Segundo este modelo, uma sociedade econômica, institucionalizada através do direito privado (principalmente através dos direitos de propriedade e da liberdade de contratos), deveria ser desacoplada do Estado enquanto esfera de realização do bem comum e entregue à ação espontânea de mecanismos de mercado. Essa sociedade de direito privado era trabalhada conforme a autonomia dos sujeitos de direito, os quais, enquanto participantes do mercado, tentam encontrar sua felicidade através da busca possivelmente racional de interesses próprios. [14]
O maravilhamento com tal modelo, contudo, chegou ao fim. A excessiva liberdade da iniciativa privada acabou por ensejar uma "não liberdade", com a exploração exacerbada da classe trabalhadora por aqueles que detinham o poder econômico [15], culminando, após muita luta social [16], no surgimento do próximo paradigma, qual seja, o do Estado Social ou do Bem-Estar Social.
Esse novo paradigma, como ensina André Del Negri:
(...) efetivou-se por meio de um Estado intervencionista, mais atuante e preocupado em estimular o crescimento e o desenvolvimento das inúmeras atividades ligadas às áreas da saúde, educação, cultura, família e previdência social. Chega-se, assim, à conclusão de que, no Brasil, esse paradigma socializante teve início com a Constituição de 1934. Nesse marco teórico, o Estado abandonou sua posição de espectador, passando a interferir nos serviços públicos com uma linha de crescimento constante nos empregos e nos impostos arrecadados, ocasionando, conseqüentemente, um maior "bem-estar" à sociedade (as aspas servem aqui para lembrar que, talvez, o Estado Social seja a radicalização do Estado Liberal, ao criar meios compensatórios para ter o controle de massas. Às vezes, criam-se emprego e renda tão-somente para calar o cidadão). [17]
É sabido, no entanto, que o Estado Social não conseguiu, igualmente, cumprir os grandiosos propósitos que inspiraram sua criação. Ao contrário, a pobreza da população e a disparidade social só aumentaram com o tempo. A diferença é que, além de uma pequena parcela de abastados que explorava a mão-de-obra da maioria desfavorecida, exsurgiu, paralelamente, uma figura gigantesca e centralizadora – o próprio Estado [18]. E, como bem adverte Kant, autor de uma das mais completas e coerentes teorias do Estado de Direito:
(...) um governo fundado sob o princípio da benevolência para com o povo, tal como o governo de um pai para com os filhos, isto é, um governo paternalista (imperium paternale), é o pior despotismo que se possa imaginar. [19]
Dito isso, cumpre observar que ambos os paradigmas – o Liberal e o Social – estabeleciam, como traço comum, uma nítida distinção entre o público e o privado [20]. Como bem salienta o Prof. Menelick:
O conceito básico era o mesmo, em um ou em outro, mudava-se simplesmente a seta valorativa. No primeiro, o privado é excelente e o público é péssimo. No segundo, o público é excelente e o privado é péssimo. De toda sorte, no entanto, o privado é e continua a ser em ambos o reino do egoísmo encarnado no indivíduo e o público o do interesse geral sempre consubstanciado no Estado. [21]
Todavia, essa relação entre o público e o privado é profundamente alterada no Estado Democrático de Direito.
A distinção entre ambos não é mais tão nítida. Pelo contrário, cada vez mais o público e o privado se confundem, formando uma amálgama em permanente tensão. Há, na verdade, uma relação de interdependência, conflito e comunicação perenes entre o público e o privado, nascendo daí a noção de cidadania.
Aliás, parece não haver dúvida, ao menos teoricamente, de que o paradigma jurídico-constitucional adotado por nosso ordenamento é o do Estado Democrático de Direito. Tal paradigma serve de norte para a estruturação de todo o sistema jurídico, o qual não poderá inobservá-lo em nenhuma de suas fases, haja vista o Princípio da Supremacia da Constituição e o controle de constitucionalidade irrestrito das leis.
Contudo, tal conclusão, que é decorrência lógica clara da Constituição da República ao dizer que todo poder emana do povo (parágrafo único do seu artigo 1º), parece passar despercebida para muitos intérpretes-aplicadores do Direito, que o continuam aplicando como se ainda vivêssemos no ultrapassado Estado Social ou, até mesmo, no Estado Liberal.
No entanto, não é lícito, no paradigma vigente, entregar-se ao governante o papel de tradutor da vontade popular, o que aconteceria se se permitisse que ele julgasse segundo seus "elevados" conhecimentos acerca da sociedade. A vontade normativa não pode ser entregue a uma autoridade [22]. O povo, ao votar, não elege um intérprete da consciência popular (à semelhança do Führer nazista) [23], delegando seu poder ao Estado [24]. Isso ocorria no ultrapassado Estado Social, não agora.
Em outras palavras, é preciso, no paradigma democrático, conferir ao destinatário a oportunidade de discutir os fundamentos da norma jurídica para, até mesmo, se for o caso, rejeitá-la.
Imperioso esclarecer, contudo, que não se está defendendo uma chamada "Teoria Crítica do Direito" [25], no equivocado sentido de que o mesmo poderia ser aplicado inclusive contra legem. Afinal, conforme sabido, a Constituição da República também integra o ordenamento jurídico, situando-se, aliás, em seu ápice. Vale dizer, interpretar uma norma segundo o entendimento popular é um imperativo constitucional. Julgar-se-ia contra legem, na verdade, se não se atentasse a tal comando [26].
Tal modelo foi proposto, dentre outros, por Jürgen Habermas, em sua Teoria Discursiva da Democracia [27], que servirá como marco teórico para os presentes estudos.
Ao propor tal paradigma, Habermas buscou o entrelaçamento e a comunicação permanente entre as esferas pública e privada, superando, na verdade, tal separação [28]. Trata-se de uma relação de complementaridade, em que "os cidadãos, ao darem-se conta de sua autonomia pública, têm que estabelecer os limites da autonomia privada, a qual qualifica as pessoas privadas para o seu papel de cidadão" [29].
Toma relevo a Teoria Discursiva do Direito, que possui espeque na argumentação de que a legitimidade do Direito pode servir aos propósitos da almejada integração social, desde que aflorado através de um processo racional de formação da opinião e da vontade, pautado pela defesa do pluralismo e tolerância aos distintos posicionamentos e argumentos, sob uma perspectiva inclusivista. [30]
Vale dizer, aos cidadãos deve ser dada a mais ampla oportunidade de participar do processo de construção do direito. Sua atividade não deve se limitar ao mero exercício do direito de voto. Dá-se também, e principalmente, a partir dos meios processuais, judicial ou administrativamente, que devem ser postos a sua disposição. Nesse sentido, ensina Habermas:
A legitimidade do direito apóia-se, em última instância, num arranjo comunicativo: enquanto participantes de discursos racionais, os parceiros do direito devem poder examinar se uma norma controvertida encontra ou poderia encontrar o assentimento de todos os possíveis atingidos. [31]
Conforme já dito, no paradigma do Estado Democrático de Direito, público e privado não podem se contrapor ou se separar [32]. Ao contrário, devem se relacionar permanentemente, em uma constante e saudável tensão [33], que só pode ser resolvida perante o caso concreto [34].
A relação entre as autonomias pública e privada foi profundamente alterada. Hoje, o público não mais se identifica unicamente com o Estado. Afinal, é o povo o titular do poder. É ele quem decide, valendo-se dos instrumentos democráticos de participação na tomada de decisão política, o seu futuro, e não uma autoridade de cunho paternalista, tal como ocorria no Estado Social. Como ensina Friedrich Müller:
O termo "democracia" não deriva apenas etimologicamente de "povo". Estados democráticos chamam-se governos "do povo" ["Volks"herrschaften]; eles se justificam afirmando que em última instância o povo estaria "governando" ["herrscht"].
Todas as razões do exercício democrático do poder e da violência, todas as razões da crítica da democracia dependem desse ponto de partida. [35]
E arremata:
O discurso de legitimação de uma democracia não só obriga a mesma a ser democrática no seu conteúdo – abstraindo do fato de que o significado desse adjetivo "democrático" pode ser matéria de grandes controvérsias. Ele deveria sobretudo realizar também no seu próprio procedimento o que designa, deveria, portanto, ser correlativamente estruturado, i. é: não formular afirmações em bloco, que se imunizam contra a discussão, não apresentar-se qual dedução cogente, não falar por intermédio de resultados antecipados. Muito pelo contrário, a legitimidade – como também a normatividade jurídica – é um processo e não uma substância, uma essência ou mesmo uma qualidade de textos. [36]
Vale repetir, o público não mais se identifica com a figura do Estado. O privado, por seu turno, não se limita aos interesses individuais e egoísticos do indivíduo. E é tendo em vista tal perspectiva que o intérprete-aplicador do direito deve aplicá-lo e compreendê-lo.
(...) a democracia requer o reconhecimento eqüiprimordial das dimensões pública e privada. Também as esferas pública e privada são dimensões em permanente tensão e interdependentes (...)
Existem dimensões públicas que hoje atravessam mesmo os recintos mais privados, e o próprio público é uma esfera que não pode ser confundida com a do Estado, reatando-se, outra vez, com aquela noção de povo que não pode ser visto como consciência coletiva ou algo desse tipo, mas, a rigor, requer ser enfocado como fluxos comunicativos, como possibilidade de participação, enfim, toda uma complexidade doutrinária que é requerida hoje para darmos conta dos desafios que temos que enfrentar. [37]
Transferindo esses pressupostos para o tema do presente trabalho, chegada é a hora de se voltar os olhos, especificamente, para o papel da Advocacia Pública sob a única ótica possível e lícita na atual ordem constitucional brasileira – a do Estado Democrático de Direito.