Símbolo do Jus.com.br Jus.com.br
Artigo Selo Verificado Destaque dos editores

O papel da advocacia pública no Estado Democrático de Direito

Exibindo página 2 de 5
Agenda 05/01/2011 às 09:07

3. Da Advocacia Pública [38] na Constituição da República de 1988: seu papel no Estado Democrático de Direito

A existência de um órgão com a específica finalidade de presentar o Estado em juízo é algo relativamente novo na história brasileira.

Afinal, antes da Constituição de 1988, o Ministério Público cumulava em si a dupla função de defesa da sociedade e de advocacia de Estado.

No âmbito federal, em meados dos anos 30, criaram-se as autarquias, que eram defendidas por seus procuradores ou advogados, os quais, com a Lei n.º 7.659/45, passaram a gozar das mesmas prerrogativas conferidas aos Procuradores da República. O Ministério Público, por sua vez, fixou-se na defesa da União.

Em 1986, com o Decreto n.º 93.237, foi instituída a Advocacia Consultiva da União, composta pela Procuradoria Geral da Fazenda Nacional (do Ministério da Fazenda), pelas Consultorias Jurídicas, pelos órgãos jurídicos dos Gabinetes Militar e Civil da Presidência da República, pelas Procuradorias Gerais e departamentos jurídicos das autarquias e fundações federais, e pelos órgãos jurídicos das empresas públicas, sociedades de economia mista e demais entidades controladas, direta ou indiretamente pela União [39].

Contudo, a função de defender o Estado em Juízo (advocacia contenciosa) continuava entre as atribuições do Ministério Público, juntamente com a defesa da sociedade. Tal situação, não raras vezes, gerava profundos conflitos de interesses dentro daquela instituição. Afinal, em algumas situações, o parquet poderia, em tese, exercer a função de autor em uma demanda em face do Estado e, nessa mesma demanda, defender este último.

Atento a tal discrepância, o Constituinte de 1988 reorganizou o Ministério Público da União e criou a Advocacia-Geral da União e a Defensoria Pública da União.

Ao Ministério Público reservou-se a função de defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis (artigo 127, CR/1988).

À Defensoria Pública, a de orientação jurídica e defesa, em todos os graus, dos necessitados (artigo 134).

Finalmente, à Advocacia-Geral da União reservou-se a tarefa de representar a União, judicial e extrajudicialmente, bem como a de prestar consultoria e assessoramente jurídico ao Poder Executivo (artigo 131).

Em resumo, o Ministério Público defende a sociedade (direitos coletivos, individuais homogêneos e individuais indisponíveis); a Defensoria Pública, os mais pobres e necessitados e; a Advocacia Pública, o Estado.

Como visto, embora tenham hoje papéis bem distintos e separados, a origem dessas três funções essenciais à justiça advém de um tronco comum – o Ministério Público. A Advocacia e a Defensoria Pública ficaram com parcela das atribuições que antes cabiam ao parquet. Vale destacar que tal gênese comum justifica muitas das conclusões a que se chegará com o presente trabalho. Afinal, todos eles foram criados com a inspiração de defender os interesses da sociedade em geral, cada um a seu modo.

Dito isso, mister se faz situar, em uma análise sistemática, o lugar reservado à Advocacia Pública na Constituição da República/88.

Vê-se que a CR/88 dispõe, em seu Título IV, acerca da organização dos poderes. Reservou, então, o Capítulo I ao Poder Legislativo; o Capítulo II, ao Poder Executivo; o III, ao Judiciário e; finalmente, o Capítulo IV, às funções essenciais à justiça.

Note-se que o Constituinte não inseriu as funções essenciais à justiça em um dos clássicos três poderes [40]. Não. Elas estão em um capítulo à parte.

Ora, por princípio hermenêutico, é sabido que nenhuma disposição legal, ainda mais em se tratando de norma constitucional, deve ser tratada como inútil. Da mesma forma, a organização sistemática de um diploma legal deve sempre balizar a compreensão do mesmo pelo intérprete.

Nesse diapasão, imperioso concluir que não foi por acaso que a Constituição da República brasileira decidiu situar as funções essenciais à justiça fora da organização dos demais poderes.

Na verdade, ao assim fazer, pretendeu dizer que a essas funções, que são essenciais à justiça, reserva-se a importantíssima tarefa de auxiliar, aproximar democraticamente e, porque não dizer, fiscalizar os demais poderes instituídos.

Não se trata propriamente de um quarto poder, como outrora foi dito. Afinal, o poder é um só, que pertence ao povo (artigo 1º, parágrafo único, da CR/88).

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

Na verdade, aos órgãos cujas funções são consideradas essenciais à justiça incumbe a tarefa de, em um exercício dialógico de intercomunicação e diálogo próprio do Estado Democrático de Direito, tentar unir e direcionar as funções Executiva, Legislativa e Judiciária no sentido de atender aos anseios do verdadeiro titular do poder – o povo.

Noutros termos, se a divisão tripartite dos poderes tende a separá-los física e ideologicamente [41], as funções essenciais à justiça funcionam como uma espécie de "cola", preenchendo os espaços vazios entre os mesmos. Com isso, tenta-se formar uma amálgama, em um só corpo, constituindo-se, assim, o Estado Democrático de Direito.

O Ministério Público, a Advocacia Pública e Privada, bem como a Defensoria Pública não são órgãos do Poder Executivo [42], como se costuma afirmar. Nem tampouco integram o Judiciário. Na verdade, tais órgãos transitam permanentemente entre os poderes da República. Ora em um, ora em outro. Em um movimento constante e pendular de tensão e aproximação.

Aliás, talvez seja essa a razão da dificuldade da frustrada tentativa, fadada ao fracasso, de se os situar, organicamente, em um dos poderes. A própria Constituição da República afastou, como visto, tal possibilidade.

Tal circunstância, contudo, parece ter passado desapercebida pelo Supremo Tribunal Federal quando julgou a ADI n.º 291/MT. Nela, aquela Corte Superior, de início, deferiu pedido liminar [43] para suspender a eficácia das expressões constantes da Constituição do Estado do Mato Grosso que conferiam à Advocacia Pública prerrogativas semelhantes às do Ministério Público, tais como, escolha do Procurador-Geral dentre os integrantes da carreira e independência no exercício de suas funções institucionais. Com a relatoria do Ministro Moreira Alves, entendeu-se que "o desvinculamento da Procuradoria do Estado com relação ao Chefe do Poder Executivo estadual causa sérios prejuízos à administração pública do estado-membro". No julgamento definitivo, exarado em 07/04/2010 pelo Pleno [44], manteve-se essa posição [45].

Tal entendimento, no entanto, não se amolda ao atual paradigma constitucional, vez que obriga, por via transversa, a Advocacia Pública a defender o Chefe do Executivo mesmo quando este agir contrariamente aos interesses públicos extraídos da própria Constituição.

Todavia, vale repetir, a Advocacia Pública, uma das funções essenciais à justiça, não integra o Poder Executivo. Tanto isso é verdade que a mesma não presenta somente o Executivo. Quando o ato impugnado for praticado pelo Judiciário ou pelo Legislativo, quem atua em nome do Estado também é, igualmente, um Advogado Público. É ele, e só ele, quem possui capacidade de postular em juízo em nome da entidade pública.

Nesse quadro, não se pode dizer, sem erro, que o advogado público é órgão do Executivo. Seu papel constitucional ultrapassa tal limitação.

Enquanto função essencial de justiça, ele deve, sim, auxiliar os demais poderes na implementação de suas políticas públicas e interesses institucionais. Mas o faz em prol do interesse Estatal/público, que pode ou não coincidir com o do governante.

Não se quer dizer, com isso, que o advogado público deve reiteradamente contrariar os Administradores. Pelo contrário. Sua função é orientar a atuação deles de forma a fazê-la se pautar pela legalidade e pelos anseios constitucionais.

Como se verá adiante, sua tarefa não é dizer simplesmente "não" ao governante. Melhor seria dizer, para cumprir sua missão constitucional, dizer "dessa forma não é possível, mas dessa outra, respeitados o contraditório e a ampla defesa, bem como os demais princípios constitucionais e legais, é, sim, possível".

Fixadas todas essas premissas, indispensáveis para se alcançar o objetivo visado, passe-se à análise do papel da advocacia pública no paradigma do Estado Democrático de Direito.

De início, lembre-se de que a advocacia, seja ela pública ou privada, é função essencial da justiça. Aliás, como bem salienta o Prof. José Afonso da Silva:

A advocacia não é apenas uma profissão, é também um munus e "uma árdua fatiga posta a serviço da justiça". O advogado, servidor ou auxiliar da Justiça, é um dos elementos da administração democrática da Justiça. Por isso, sempre mereceu o ódio e a ameaça dos poderosos. Frederico, o Grande, que chamava os advogados de "sanguessugas e venenosos répteis", prometia "enforcar sem piedade nem contemplação de qualquer espécie" aquele que viesse pedir graça ou indulto para um soldado, enquanto Napoleão ameaçava "cortar a língua a todo advogado que a utilizasse contra o governo". Bem sabem os ditadores reais ou potenciais que os advogados, como disse Calamandrei, são as "supersensíveis antenas da justiça". E esta sempre estará do lado contrário de onde se situa o autoritarismo. [46]

O advogado é, de uma certa forma, o tradutor dos interesses das pessoas que representa. Vale dizer, ele, após ouvir os fatos narrados pela parte e os interesses que a mesma intenta atingir, traduz tal narrativa para uma linguagem técnica-jurídica, na forma da legislação vigente. Daí dizer-se que o advogado:

(...) examina o fenômeno jurídico ao vivo, colhe-o diretamente na vida real, em toda a sua riqueza de detalhes, em toda a sua gama de cores, com toda a sua carga de aspirações, emoções e interesses conflitantes. Só o advogado, e particularmente antes da lide ou fora dela, é obrigado à análise do fato jurídico sob todos os seus ângulos, em seu pleno fieri, na sua dinâmica cambiante. [47]

Dito isso, cumpre dizer que, conquanto sejam ambas funções essenciais à justiça, algumas características distinguem a Advocacia Pública da privada. Tanto assim é que a própria Constituição da República colocou-as em Seções distintas [48].

O advogado privado atua representando o seu cliente. Vale dizer, ele age mediante delegação de poderes conferida, voluntariamente, por uma pessoa, que o faz pelo instrumento de mandato (procuração).

Ressalvada sua independência técnica, uma vez admitido o encargo, também voluntariamente, de defender os interesses de seu cliente, deverá fazê-lo com todos os meios e recursos disponíveis, incansavelmente, segundo as diretrizes traçadas por aquele que o contratou.

Já o advogado público atua presentando a pessoa jurídica de direito público que lhe é afeta. Ou seja, esse ente se faz presente pelo advogado público. Noutros termos, ele é a própria pessoa jurídica em juízo. Seu poder de presentação não decorre de um mandato, mas, sim, da própria lei.

Além disso, o advogado público não decide se quer ou não defender aquela entidade, tal como ocorre com o advogado privado. Tal função (poder-dever) decorre de lei, e não de ato de vontade. O aspecto volitivo limita-se ao momento de decidir se a pessoa, aprovada em concurso público de provas e títulos, quer ou não preencher tal cargo. Feito isso, resta-lhe uma função, da qual não pode se furtar de exercer.

No esteio do que já foi dito, o Advogado Público não é um profissional contratado pelo governante para representar seus interesses em juízo. A natureza pública de sua investidura no cargo impede tal exegese.

Tanto assim é que a sua capacidade de presentar a pessoa jurídica de direito público que lhe é afeta não decorre de um mandato, plasmado em uma procuração. Tal função (poder-dever) de fazer o órgão público presente em juízo decorre, como já dito, diretamente de lei.

O Advogado Público, então, tal como os demais servidores públicos, é um agente que deve pautar sua atuação tendo em vista o interesse público, e não o interesse do governante. Ele é, em última análise, um servidor do público.

Afinal, como visto, no paradigma do Estado Democrático de Direito, o público não se confunde com o Estado, nem tampouco com o governante. É justamente daí que decorre a conclusão de que o advogado público, considerando-se como tal aquele devidamente investido em cargo público efetivo [49], defende os interesses do cidadão, genericamente considerado, enquanto servidor [do] público que é.

Enquanto tal, deve sempre balizar sua atuação pelos princípios e normas que regem a atividade administrativa. É, em última análise, à lei, aqui incluída a Constituição, que o advogado público deve realmente obediência.

Não se está aqui descurando da existência de uma hierarquia administrativa. É sabido que a organização dos agentes públicos estatais é feita de forma escalonada e hierarquizada. E não é diferente com o advogado público.

Contudo, tendo em vista o status de função essencial à justiça da Advocacia Pública, não pode ela estar sujeita ou subordinada à vontade dos governantes. Nesse sentido, ensina o Prof. Aldemário Araújo Castro:

O exercício da independência técnica (relativa) dos advogados públicos e o viés construtivo das manifestações consultivas e contenciosas reclamam um certo distanciamento dos "interesses imediatos" (e dos "humores imediatos") dos gestores e administradores. Não é concebível, salvo dentro da triste lógica da advocacia de Governo, uma relação hierárquica, de subordinação, do advogado público em relação à "cadeia de comando" funcional de determinado órgão, ministério ou entidade. [50]

Em idêntico sentido, sugere André Luiz Batista Neves:

A solução passa, certamente, pela garantia de independência funcional aos Procuradores – já há muito intuída como necessária pelo legislador, como, por exemplo, na possibilidade de atuação da pessoa jurídica de direito público ao lado do autor de ação popular, caso isso se afigure útil ao interesse público [art. 6º, §3º, da Lei nº 4.717, de 29.06.1965] – e pelo resgate de seu papel cívico. Como rememora Pereira e Silva, "não se concebe que ainda hoje a função do Procurador do Estado, para significativa parcela da população, seja confundida como a do advogado do governo, ou seja, que a sua atividade se vincule a interesses efêmeros, e não a interesses perenes: os interesses públicos" [Reinaldo Pereira e Silva, "A Função Social do Procurador do Estado" in Revista Seqüência (CCJ/UFSC), Nº 31 (http://infojur.ccj.ufsc.br/Pereira_e_Silva-A_funcao_social_do_procurador_do_estado.htm - 03.06.1999). [51]

Vale dizer, o advogado público, se está subordinado a alguém, está-o apenas dentro de sua própria estrutura hierárquica. Noutros termos, deve obedecer apenas às diretrizes traçadas pela própria Advocacia Pública, de forma a tornar mais homogênea e coerente sua atuação. E, mesmo assim, se tais normas de homogeneização estiverem em sintonia com a legislação pátria.

Nunca ao chefe do Executivo, sob pena de inviabilizar o exercício da tarefa que lhe incumbiu o legislador constituinte – de velar e auxiliar a justiça, ou melhor, na implementação do Estado Democrático de Direito.

Nesse sentido, afigura-se no mínimo questionável a validade constitucional do Decreto n.º 7.153, de 09/04/2010 (DOU 12/04/10) [52], que permite a defesa, pela AGU, de gestores da administração federal em processos em tramitação no TCU. Tal vício já foi, inclusive, apontado em nota de Sindicato de Auditores Federais, que, acertadamente, criticou a norma:

Essa previsão infralegal poderá instaurar um conflito de interesse sem precedente entre os gestores e o Estado Brasileiro, pois a Constituição atribui à AGU a defesa judicial e extrajudicial da União, não a defesa de seus gestores pela consumação de atos irregulares. Em outras palavras, significa dizer que o dispositivo em questão poderá, na prática, resultar no uso da estrutura da AGU contra os interesses próprios da União discutidos nos processos que tramitam no TCU. A pergunta que fica no ar é: A AGU é mantida pela União para exercer a Advocacia de Estado ou a indesejável missão de Advocacia de Governo (ou dos governantes)? [53]

Tal desconfiança procede na medida em que a extensão da possibilidade de defesa de gestores da Administração pela AGU é, na mencionada norma, bastante ampla e genérica. E, no entanto, o papel da Advocacia Pública deve restringir-se à defesa da entidade estatal, cuja criação e funcionamento só se justifica tendo em vista o interesse público, que não se confunde com o interesse do governante, Administrador ou gestor.

Afinal, o advogado público, em última análise, defende o Estado, e não o governante. É tendo em vista tal pressuposto que o mesmo deve pautar sua atuação, a qual, conforme sabido, é dividida em consultiva e contenciosa, como se passa a explicitar.

Sobre o autor
Danilo Cruz Madeira

Procurador Federal / PGF / AGU. Graduado em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG. Especialista em Direito Público pela Universidade de Brasília - UnB

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MADEIRA, Danilo Cruz. O papel da advocacia pública no Estado Democrático de Direito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2744, 5 jan. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/18128. Acesso em: 24 nov. 2024.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!