4. Das funções institucionais do Advogado Público: consultiva e contenciosa
No exercício gerencial da coisa pública, é comum que o Administrador se depare com situações que suscitam dúvidas jurídicas quanto à forma e, até mesmo, quanto ao conteúdo dos atos que pretende praticar.
É justamente nesse contexto que se insere a atividade consultiva do advogado público. Por ela, o advogado público orienta juridicamente o Administrador para que o mesmo aja em sintonia com a legislação, os princípios que norteiam a atividade administrativa e, principalmente, com a Constituição da República.
Contudo, no esteio do que já foi dito, o advogado público, no Estado Democrático de Direito, não deve atuar como mero legitimador jurídico dos atos praticados pelo governante. No atual paradigma, a atividade consultiva se transmudou em uma autêntica forma de controle de legalidade e legitimidade da atuação da Administração Pública [54].
Aliás, ao menos potencialmente, o controle exercido pela Advocacia Pública é a mais eficiente e aconselhável forma de exercício do controle, já que possui feições essencialmente preventivas. Nesse sentido:
É possível afirmar, sem dúvidas ou receios: o mais eficiente controle de juridicidade da Administração Pública pode estar, se provida de meios necessários, na Advocacia Pública. Indaga-se, quem, além da Advocacia Pública, consegue, por exemplo, evitar ou se antecipar ao desvio ou abuso administrativo? [55]
Mas, para isso, é preciso amparar o advogado público de uma série de garantias e prerrogativas que lhe permitam exercer sua atividade livre de constrangimentos ou pressões, de forma a se submeter unicamente às leis e à Constituição. Mais uma vez, oportuna a transcrição do que disse o professor Aldemário Araújo Castro a respeito:
A fixação de garantias e prerrogativas para o exercício das atividades da Advocacia Pública não surge como uma outorga de favores ou privilégios inaceitáveis, particularmente quando se observa a sua nobre missão de sustentar e aperfeiçoar o Estado Democrático de Direito, zelando pela incolumidade dos interesses públicos primários.
Afinal, a possibilidade efetiva de contrariar interesses os mais diversos, desde aqueles dos governantes do momento até poderosas manifestações econômicas privadas, reclama a existência de proteções institucionais ao desempenho retilíneo das atribuições da Advocacia Pública.
Assim, as garantias e as prerrogativas dos membros da Advocacia Pública revelam-se meios ou instrumentos de realização plena do interesse público submetido, de uma forma ou de outra, ao crivo de análise dos vários segmentos da Advocacia Pública. [56]
Afinal, sem essas garantias e prerrogativas, pode o advogado público ver-se obrigado, como às vezes ocorre, a apenas chancelar o ato administrativo ilegal, dando-lhe as vestes de aparente legalidade com o seu parecer.
Todavia, para bem exercer sua função, que é essencial à justiça, o advogado público deve ser protegido contra o direcionamento que o governante tende a querer dar a sua atividade consultiva.
É verdade que essa função de controle de legalidade dos atos administrativos não é, como sabido, exclusiva da Advocacia Pública. O Ministério Público e o cidadão em geral, por meio de ação popular, também possuem tal legitimidade.
Contudo, a atuação desses últimos é exercida de forma muito mais repressiva do que preventiva. Vale dizer, é um controle que se exerce, normalmente, após a prática do ato, e não antes, evitando-o, como seria aconselhável.
É justamente essa a diferença que torna o controle exercido pela Advocacia Pública especial – o fato de ser, na maioria das vezes, preventivo, impedindo que o ato ilegal venha a ser implementado.
Com isso, previnem-se ilegalidades e, como corolário lógico, diminuem-se litígios judiciais impugnando o ato que, sem esse controle, seria praticado.
A isso se some mais uma característica que torna o controle exercido pela Advocacia Pública especial. Normalmente, quando o Ministério Público ou o cidadão impugnam um ato administrativo ilegal, eles apenas pedem que o ato seja anulado, com as conseqüências jurídicas que disso advirão. E só.
O advogado público, no entanto, deve ir além.
Para exercer em sua totalidade sua função institucional, o advogado público, após dizer que o ato, na forma como pretendido, é ilegal, deve orientar o Administrador acerca da forma como conseguirá, lícita e legitimamente, alcançar seu escopo.
Afinal, não é o advogado público quem define as políticas públicas a serem adotadas pelo governo. Quem o faz é o cidadão, diretamente ou por meio dos seus representantes eleitos.
Nesse contexto, se o governante intenta implementar determinada política pública, mas pretende fazê-lo de uma forma ilegal, o advogado público deve orientá-lo quanto à forma como poderá, licitamente, atingir seu objetivo.
Conforme já dito, é dizer, ao invés de simplesmente "não pode", que "dessa forma não é possível, mas, dessa outra, sim, o é".
Isso, é claro, se a meta a ser atingida estiver em conformidade com o interesse público plasmado na Constituição da República e na legislação. Se, ao contrário, o Administrador pretender apenas beneficiar-se, em interesse próprio, com o ato que pretende praticar, ao advogado público incumbe a missão de rejeitá-lo sumariamente.
Se, contudo, a despeito do filtro exercido pela atuação consultiva, determinado ato administrativo vier a ser impugnado judicialmente, cumpre ao advogado público presentar, em juízo, o ente que o praticou.
Trata-se, aqui, da chamada atuação contenciosa da Advocacia Pública.
Por ela, efetivam-se os princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa, indispensáveis para a formação legítima das decisões judiciais. Como ensina Aroldo Plínio Gonçalves:
(...) destinatários já não precisam recear pelas preferências ideológicas dos juízes, porque, participando do iter da formação do ato final, terão sua dignidade e sua liberdade reconhecidas e poderão compreender que um direito é assegurado, uma condenação é imposta, ou um pretenso direito é negado não em nome de quaisquer nomes, mas apenas em nome do Direito, construído pela própria sociedade ou que tenha sua existência por ela consentida. [57]
Quanto à importância do contraditório na formação do provimento judicial, ensina Dhenis Cruz Madeira:
Após o magistério de Elio Fazzalari e Aroldo Plínio Gonçalves, já se pode afirmar que o destinatário do provimento, ou seja, aquele que sofre os efeitos da decisão, deve se reconhecer, também, como co-autor do ato decisional, sendo certo que o contraditório, aferido na esfera procedimental, deve ser referente lógico do provimento. Nesse sentido, o provimento não é fruto da vontade de uma autoridade ancoreta, eis que o julgador se sujeita, tal como as partes, às imposições normativas que regem a função jurisdicional. A função jurisdicional deve sempre propiciar às partes a possibilidade de fiscalização irrestrita dos atos processuais que a alicerça, eis que, como precitado, todo poder emana do povo, e os destinatários devem também se apresentar como co-autores do provimento [58].
Nesse mesmo sentido, arremata Lênio Luiz Streck:
(...) além de outros princípios (devido processo legal e igualdade, por exemplo), a garantia que cada cidadão tem de que a decisão estará devidamente fundamentada – porque cada ato de aplicação judicial é um ato de jurisdição constitucional – está umbilicalmente ligada (e dependente) à garantia do contraditório, que assume uma especificidade radical nesta quadra da história, isto é, o contraditório passa a ser a garantia da possibilidade de influência (e efetiva participação) das partes na formação da resposta judicial, questão que se refletirá na fundamentação da decisão, que deve explicitar o iter percorrido no processo, tornando a decisão visível e apta ao controle social-jurisdicional (inclusive, a toda evidência, transparente à apreciação que a doutrina deve fazer sobre as decisões judiciais). [59]
É nesse contexto que se insere a atividade contenciosa do advogado público. Ao propor uma pessoa uma demanda em face do Estado, deve ele apresentar todos os argumentos jurídicos, se existentes, contrários à pretensão deduzida. E é dessa discussão dialógica entre autor e réu que nascerá o provimento judicial.
O Estado, ao se manifestar, em nome do povo, portanto, deve traduzir pronunciamento jurisdicional intrinsecamente ajustado à estrutura principiológica do devido processo constitucional, agindo, sempre, de acordo com a estrutura do devido processo legal, como pronunciamento que se realiza em contraditório entre as partes, garantindo, assim, a adequada participação dos destinatários da norma na formação do ato estatal. [60]
Daí a importância de o advogado público, mesmo que pessoalmente não concorde com o mérito [61] do ato impugnado, se for ele juridicamente válido e legítimo, apresentar todos os argumentos para defendê-lo em juízo. Primeiro porque não é o advogado público quem define as políticas públicas do Estado, mas, sim, a Constituição e o povo. Segundo porque, assim agindo, estará ele efetivando os princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa na formação do provimento jurisdicional.
Contudo, no Estado Democrático de Direito, tal defesa não pode ser cega e irrestrita. Aquela velha noção de que o advogado público recorre, até as últimas instâncias, contra qualquer decisão que for contrária ao ente presentado, ou que defende qualquer ato administrativo, por mais ilegal que seja, não se ajusta ao paradigma vigente [62].
Ao contrário, é dever do advogado público, ao se deparar com ato manifestamente ilegal, reconhecer tal vício, mesmo que tal atitude implique deixar a parte contrária ver julgado procedente seu pleito deduzido em juízo. Aliás, nesse caso, o advogado público deve, até mesmo, reconhecer a procedência do pedido contrário.
Tal atitude decorre não só do Estado Democrático de Direito, mas também dos princípios da moralidade administrativa e da boa-fé que devem nortear a atuação estatal. Nesse sentido, adverte Maurício Ferreira Cunha:
O que não se pode, aliás, não se deve, é possibilitar ao mesmo Estado que, na qualidade de único responsável pelo exercício da dita soberania, assim agindo em nome do povo, extrapole suas determinações, de forma arbitrária, deixando de perceber as linhas mestras que devem direcionar seu papel de órgão controlador e feitor do bem-estar social. [63]
Segundo tal raciocínio, é preciso que se abandone, imediatamente, aquela concepção, tão conhecida e criticada pelos advogados privados, muitas vezes, infelizmente, com razão, de que o advogado público é um procrastinador nato, que recorre por recorrer. Tal postura afigura-se, a par de um gravame ao erário, absolutamente inconstitucional.
Assim se afirma porque os interesses meramente patrimoniais do Estado são secundários, e não primários. A distinção, feita pela doutrina administrativista italiana, é lembrada por Celso Antônio Bandeira de Mello, que ensina:
Também assim melhor se compreenderá a distinção corrente na doutrina italiana entre interesses públicos ou interesses primários – que são interesses da coletividade como um todo – e interesses secundários, que o Estado (pelo só fato de ser sujeito de direitos) poderia ter como qualquer outra pessoa, isto é, independentemente de sua qualidade de servidor de interesses de terceiros: os das coletividades. Poderia, portanto, ter o interesse secundário de resistir ao pagamento de indenizações, ainda que precedentes, ou de denegar pretensões bem fundadas que os administrados lhe fizessem, ou de cobrar tributos ou tarifas por valores exagerados. Não estaria, entretanto, atendendo ao interesse público, ao interesse primário, isto é, àquele que a lei aponta como sendo o interesse da coletividade: o da observância da ordem jurídica estabelecida a título de bem curar o interesse de todos. [64]
Destaque-se, neste ponto, que os interesses secundários da Administração somente podem ser atendidos na medida em que coincidam com os primários. São, como o próprio nomen iuris indica, secundários. Nesse sentido, poder-se-ia, inclusive, abandonar a distinção entre os interesses primários e secundários, porquanto, na verdade, há apenas um interesse a ser visado pelo Estado – o público.
Nessa linha de raciocínio, a interposição de recursos meramente procrastinatórios, para adiar pagamento certo, buscando preservar interesse secundário da Administração (patrimonial), em detrimento do interesse primário de respeito às normas determinadoras do adimplemento da indenização, é inconstitucional, ainda que reflexamente, uma vez que viola o princípio constitucional-administrativo implícito da finalidade [65] e, porque não dizer, da moralidade administrativa.
Tal conduta é, ainda, gravosa ao erário, na medida em que o Advogado Público poderia usar seu tempo para se concentrar em teses que têm chance real de êxito, fazendo-o de forma mais eficiente e satisfatória. Além disso, os juros e eventuais condenações por litigância de má-fé acabam por tornar a condenação imposta ainda mais gravosa do que se tivesse sido paga já no início da demanda.
Ademais, conforme já dito, o advogado público é, antes de tudo, um servidor público e, como tal, deve reportar-se sempre ao seu verdadeiro "patrão" – o povo.
Ao se sustentar, contudo, que o papel do advogado público, no atual paradigma, é defender o interesse público não se quer dizer que deve ele, sempre, reconhecer a procedência do pedido deduzido pela parte adversa. Afinal, se o interesse público não mais se identifica com o do Estado, igualmente não se confunde com o interesse individual da parte contrária. É o interesse genérica e coletivamente considerado. E quem define esse interesse é a Constituição e a população em geral.
Em síntese, o advogado público deve, em sua atuação contenciosa, defender a legalidade, mesmo que isso implique contrariar os interesses dos governantes.
Por fim, cumpre explicitar a atuação da Advocacia Pública na defesa dos interesses difusos e coletivos.
A Lei n.º 7.347/85, que disciplina a ação civil pública, dispõe que:
Art. 1º Regem-se pelas disposições desta Lei, sem prejuízo da ação popular, as ações de responsabilidade por danos morais e patrimoniais causados:
I- ao meio-ambiente;
II- ao consumidor;
III- aos bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico;
IV- à ordem urbanística;
V- a qualquer outro interesse difuso ou coletivo;
VI- por infração da ordem econômica e da economia popular; (...)
Art. 5º A ação principal e a cautelar poderão ser propostas pelo Ministério Público, pela União, pelos Estados e Municípios. Poderão também ser propostas por autarquia, empresa pública, fundação, sociedade de economia mista ou por associação (...)
§2º Fica facultado ao Poder Público e a outras associações legitimadas nos termos deste artigo habilitar-se como litisconsortes de qualquer das partes.
Vê-se, pois, que a Administração Pública Direta e Indireta, presentada pela Advocacia Pública, é legitimada ativa para propor ação civil pública para a tutela de direitos e interesses difusos e coletivos.
Nada mais lógico e coerente com o papel do poder público no Estado Democrático de Direito.
Afinal, se o Estado existe justamente para garantir e efetivar os direitos conquistados historicamente pelo cidadão, bem como para facilitar e permitir a sua efetiva e permanente participação nesse processo, em perfeita sintonia com tal paradigma está a legitimidade de o Estado poder propor demandas com o escopo de alcançar satisfatoriamente tal objetivo.
É claro que, nessa hipótese, deve-se averiguar se, no caso concreto, há a chamada adequada representação, também conhecida como pertinência temática. Vale dizer, a entidade pública deverá ter sido criada com o escopo específico de defender e resguardar os direitos e interesses que busca, com a ação civil pública, ver satisfeitos. Nesse sentido:
(...) entendemos que também os entes públicos legitimados (administração direta e indireta) deverão igualmente sujeitar-se a essa averiguação [quanto ao cumprimento do requisito da adequada representação ou da pertinência temática], quando pertinente. Esse é o magistério de Hugo Nigro Mazzilli: "a) as entidades e órgãos da administração pública direta ou indireta, ainda que sem personalidade jurídica, devem estar especificamente destinados à defesa dos interesses transindividuais, objetivados na ação civil pública ou coletiva que, como legitimados ativos, pretendem propor". [66]
Nesse sentido, o IBAMA, por exemplo, tem legitimidade ativa para propor ação civil pública em defesa do direito difuso a um meio ambiente saudável, mas não para defender o patrimônio histórico e urbanístico nacional. Para isso, quem tem legitimidade é o IPHAN.
Entendemos que, quando não há um órgão ou pessoa jurídica de direito público que tenha sido criada com o fim específico de proteger determinado bem de interesse difuso ou coletivo, é a Administração Direta (União, Estados, Municípios e Distrito Federal) legitimada a propor a respectiva ação civil pública para resguardá-lo. Isso, é claro, concorrentemente com os demais legitimados ativos (Ministério Público, cidadão etc).
Por fim, cumpre esclarecer que não é só por meio de ações civis públicas que o poder público pode defender interesses difusos e coletivos. Afinal, ao fiscalizar e impor penalidades àqueles que descumprem normas de ordem ambiental ou urbanística, por exemplo, nada mais está o Estado do que defendendo aqueles direitos.
E, quando a parte não cumpre voluntariamente sua obrigação, pagando a multa fixada ou fazendo a obra determinada, incumbe à Advocacia Pública tomar as medidas judiciais cabíveis para impor seu adimplemento.