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A aplicação de sanções administrativas no Direito de Trânsito.

A multa de trânsito e sua eficácia

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Agenda 30/12/2010 às 14:33

3. A "INDÚSTRIA" DE MULTAS

3.1. A multa de trânsito como aplicação do direito administrativo sancionatório

A multa é uma sanção. Sendo uma sanção, ela naturalmente decorre da infração de uma norma primária que é aplicada aos cidadãos para que a vida em comum e em sociedade seja a mais harmônica possível, a luz dos princípios constitucionais. Na legislação de trânsito, uma das formas encontrada pelo legislador para sancionar aquele que infringe uma norma é a aplicação de uma multa pecuniária, escolhida por ter na simplicidade e celeridade de sua execução uma grande vantagem. [15]

O fato de uma multa de trânsito ser uma penalidade pecuniária em nada muda sua natureza de sanção. Assim, o crédito que o estado passa a ter perante o infrator não é um débito comum, oriundo de uma contraprestação de serviço ou algo do gênero, mas sim a exigência do cumprimento de uma sanção. Analisando por esse prisma, temos que uma sanção não pode ser parcelada: deve ser cumprida de forma uniforme.

3.2. Educar pela sanção – a "indústria" de multas

A sanção existe para ser "sentida" pelo infrator, de maneira que ele não a cometa novamente, sendo portanto educado nesse sentido. Não é por outro motivo que o Código de Trânsito Brasileiro de 1998 trouxe uma expressiva elevação de valores, há muito defasados na legislação anterior. Esse aspecto da educação pela sanção é antevisto no Código de Trânsito Brasileiro. Do contrário, só ficaria evidente o desvirtuamento do instituto da multa, já que de norma sancionatória educativa ela se tornaria apenas um instrumento de arrecadação.

Esta questão é controversa. A imprensa noticia e denuncia regularmente a aplicação de multas com mero cunho arrecadatório, a criação da "indústria de multas". Alguns exemplos estão listados abaixo:

Correio Web

Veículo: Correio Web - 21/09/2006

Seção: Distrito Federal

MP acusa Detran de faturar com multas sem investir em prevenção

Bárbara Renault

O elevado número de acidentes envolvendo ciclistas no Distrito Federal leva o Ministério Público (MPDF) a crer que a fiscalização do Departamento de Trânsito (Detran-DF) tem um único objetivo: o financeiro. "O Detran atua hoje só para arrecadar multas e não educar, fiscalizar", afirma a promotora dos Direitos dos Cidadãos, Ruth Kicis. A discussão foi o principal tema da primeira reunião da Comissão de Segurança dos Ciclistas, criada na última semana pelo órgão de justiça, para diminuir os acidentes e mortes nas vias da capital federal.

(...) fiscais têm a importante missão de educar, informar e, assim, evitar mais mortes, mais negligência", argumenta a promotora.

Além da educação na rua, o Ministério Público propõe que a 'boa informação' comece na escola. "O Código Brasileiro de Trânsito (CBT) prevê aulas de educação no trânsito nas escolas primárias. Temos que começar a colocar isso em prática", complementa Kicis [16].

Folha de Londrina

Veículo: Folha de Londrina – PR – 26/09/2006

Seção: Editorial

Boas normas do Contran para poder público

O poder público não pode instalar equipamentos de fiscalização eletrônica de trânsito nas cidades antes de um estudo técnico que comprove essa necessidade. O fundamento da nova ordem é que o motorista deve ser informado sempre que existirem os pardais, e a cobrança de multa só terá validade onde houver a sinalização indicativa na rua. Com efeito, esse equipamento não pode converter-se num captador de multas e sim prevenir o condutor de veículo, de forma a evitar acidentes. Assim, contempla-se a segurança dos cidadãos ao invés do propósito de arrecadação.

O próprio ministro das Cidades faz menção às queixas dos motoristas sobre a indústria de multas, daí a determinação agora baixada, que inibe a eventualidade de esse abuso oficial ocorrer - e quanto a isto há forte indicativo de que ocorra, porque as reclamações são generalizadas, em todas as cidades, a ponto de preocupar o Ministério das Cidades. Mais que isto, a medida impõe um freio na predisposição do poder público para instalar pardais a torto e a direito, quando um bom sistema de sinalização seria suficiente. O ministro Márcio Fortes vai direto ao ponto ao declarar que o objetivo é ''reprimir a ocorrência de infrações'', por meio da inibição que os mecanismos preventivos criam, e não instalá-los como armadilhas para multar infratores. O Ministério informa que está investindo em campanhas educativas do trânsito e demonstra que, se o condutor deve ser conscientizado, também os órgãos públicos pertinentes precisam fazer a sua parte. E essa parte é fundamental, porque se o motorista comete infrações, o sistema regulador do trânsito não tem ficado atrás em negligências [17].

Medina Osório ressalta que as infrações de excesso de velocidade cada vez mais são autuadas por controladores eletrônicos. Segundo o autor, o controle automático é eficaz, em grande medida, nas sociedades massificadas, mas pode gerar a sensação de que a multa administrativa será uma lucrativa fonte de arrecadação estatal, desviando-se de suas funções originárias e primordiais. Nesse passo, cabe questionar a eficácia social destas medidas, visto que podem não ostentar efeitos realmente pedagógicos [18].

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3.3. Política de Segurança no Trânsito

A literatura mundial na área traz, com poucas variações, quatro elementos principais que devem ser observados para se construir uma política permanente na direção de um trânsito seguro. São eles:

1.Educação

2.Engenharia

3.Reforço

4.Fiscalização [19]

Sob a esteira da educação se pode elencar principalmente os conhecimentos teóricos e práticos exigidos a fim de se obter uma licença para dirigir veículos automotores. Estas habilidades podem ser ensinadas desde a infância até a idade adulta. Dentre elas estão os conhecimentos das normas gerais de circulação, as habilidades manuais de condução e também a educação no sentido da formação das pessoas. Ático Dotta diz que o "trânsito é um reflexo da nossa sociedade atual, que procura, a duras penas, viver sem normas, sem mandamentos, sem princípios, sem leis, sem moral e sem documentos" [20].

A engenharia de trânsito se encarrega tanto das rodovias como dos veículos. As rodovias devem ser planejadas para oferecer uma circulação segura, com adequada visualização dos sinais de trânsito, piso estável, espaços suficientes entre as pistas, correta sinalização. Os veículos devem possuir todos os equipamentos obrigatórios em boas condições, acrescidos dos avanços tecnológicos (air-bag, freios ABS, GPS) que auxiliem a condução segura.

O reforço nada mais é que motivações positivas que premiem os condutores que mantiverem um comportamento seguro no trânsito. O reforço é um elemento novo que vem sendo destacado como importante na elaboração de políticas de trânsito. Um exemplo da manifestação deste elemento em nosso meio foi a edição da lei estadual 11.644/2001 que concede descontos no imposto de propriedade de veículos automotores – IPVA aos bons motoristas, considerados por esta lei como aqueles que não cometeram infrações de trânsito nos últimos 2 anos.

Por fim, a fiscalização é o elemento tratado neste estudo. É ela que garante e monitora o cumprimento do que está prescrito no Código de Trânsito Brasileiro. É exercida pelos agentes de fiscalização municipais (uma novidade trazida pela lei 9503/97), estaduais e federais, dependendo de quem é a competência sobre a via. A aplicação de multas administrativas de trânsito se insere no elemento fiscalização.


4. METODOLOGIA

4.1. Considerações Preliminares

O presente trabalho visa a discutir a aplicação de penalidades administrativas de trânsito, mais especificamente da penalidade de multa, no âmbito do chamado direito administrativo sancionatório, e a sua eficácia para mudança ou regulação da ordem social, como seria uma conseqüência esperada da aplicação da sanção.

Para iluminar estas questões, além de fazer uma revisão bibliográfica sobre o assunto, este trabalho pretende também se utilizar de técnicas de pesquisa quantitativas para enriquecer o estudo e esclarecer um pouco mais sobre o alcance das normas jurídicas no âmbito da Administração Pública.

Como servidor público atuante no Detran e técnico na área de trânsito há mais de 20 anos, pude constatar o quanto nosso país é carente em estudos científicos neste campo, que possam direcionar uma política sólida, permanente e eficaz. Na prática, o assunto é rotina nos jornais, várias opiniões são emitidas, mas pouco embasamento teórico sustentam estas controvérsias.

4.2 Hipóteses criadas

Para fazer uma análise objetiva quanto à relação entre a aplicação de multas de trânsito e a mudança de comportamento dos condutores, ou ainda, entre a aplicação coativa da sanção jurídica e o resultado obtido na ordem social, foram criadas três circunstâncias, oriundas de situações reais, em que se procurou contemplar a ocorrência de ambas as variáveis, a saber:

1.A aplicação de multas de trânsito.

2.A mudança de comportamento nos condutores

Cabe ressaltar que não é objetivo desta monografia um estudo matemático e estatístico aprofundado do tema, mas o uso destes recursos para ilustrar a questão principal do estudo. Assim, presume-se que a mudança de comportamento dos condutores, que é um dado subjetivo, está evidenciada pelo curto lapso temporal após aplicação da multa. Entende-se que caso o condutor tenha regularizado a situação infracional num curto espaço de tempo após a aplicação da multa, esta deva ser considerada como determinante nesta nova postura.

Deste modo, as situações criadas para responder à pergunta são as seguintes:

Situação 1: Analisar o grupo de condutores multados por infração ao artigo 162-V do Código de Trânsito Brasileiro (dirigir veículo com validade da Carteira Nacional de Habilitação vencida há mais de trinta dias), no ano de 2008, no estado de São Paulo, e estabelecer o percentual deles que buscam a corrigir esta situação, ou seja, regularizar a validade de seu documento de habilitação no prazo de 1 mês após aplicação da multa. No Estado de São Paulo, todos os condutores são alertados a respeito do vencimento de sua Carteira Nacional de Habilitação, através de carta postal, 3 meses antes do vencimento.

Situação 2: Analisar o grupo de condutores multados por infração ao artigo 162-I do Código de Trânsito Brasileiro (dirigir veículo sem possuir a Carteira Nacional de Habilitação ou Permissão para Dirigir), no ano de 2008, no estado de São Paulo, e estabelecer o percentual de condutores que iniciaram o procedimento para habilitar-se até 3 meses após aplicação da multa.

Situação 3: Analisar o número de veículos autuados por infração ao artigo 230-V do CTB (Conduzir o veículo que não esteja registrado e devidamente licenciado), e estabelecer o percentual de regularização da situação do licenciamento até 3 meses após a autuação.

4.3. Quantificação dos dados

Criadas as situações de estudo, restava saber os números. Os dados foram obtidos junto à Próceres – Companhia de Processamento de Dados do Estado de São Paulo - que é a empresa responsável por todo o sistema informatizado do Detran-SP - Departamento Estadual de Trânsito do Estado de São Paulo - e os resultados obtidos foram os seguintes:

Situação 1:

Foram multados 5514 condutores por infração ao artigo 162-V do Código de Trânsito Brasileiro (dirigir veículo com validade da Carteira Nacional de Habilitação vencida há mais de trinta dias), no ano de 2008, no estado de São Paulo.

Destes, 2165 buscaram corrigir esta situação, ou seja, regularizar a validade de seu documento de habilitação no prazo de 1 mês após aplicação da multa.

Percentual de 39,26% de condutores mostraram-se afetados pela aplicação da sanção.

Situação 2:

Foram 2551 condutores multados por infração ao artigo 162-I do Código de Trânsito Brasileiro (dirigir veículo sem possuir a Carteira Nacional de Habilitação ou Permissão para Dirigir), no ano de 2005, no estado de São Paulo.

Destes, 645 condutores iniciaram o procedimento para habilitar-se até 3 meses após aplicação da multa.

Percentual de 25,28% de condutores mudaram a atitude após aplicação da multa.

Situação 3:

Foram 55937 veículos autuados por infração ao artigo 230-V do CTB (Conduzir o veículo que não esteja registrado e devidamente licenciado), dos quais 10709 tiveram seu licenciamento regularizado em até 3 meses após a autuação.

Percentual de 19,14% dos proprietários de veículos regularizaram a situação do licenciamento após recebimento da multa em decorrência desta infração.

4.4. Análise dos dados:

Através da análise destes números, algumas conclusões e novas indagações podem ser lançadas. Apesar dos diferentes de efetividade, de 19%, 25% ou 39%, em todos as situações testadas, a aplicação concreta da sanção administrativa gerou um movimento na direção da regularização da situação infracional, embora não o esgotasse, visto que a maioria dos condutores se manteve em situação infracional logo após a aplicação da multa.

Algumas hipóteses podem ser lançadas. A principal delas parece apontar para o fato que a aplicação da sanção administrativa não é a solução definitiva para a mudança do comportamento infracional, tendo que vir esta medida associada com outras para refinar seu alcance.

A primeira situação criada é a mais próxima da ideal, tendo em vista que havia uma notificação enviada para a residência dos condutores alertando-os para a necessidade de renovar seu documento de habilitação. Neste caso, exclui-se a alegação de desconhecimento da norma jurídica. Também foi, do ponto de vista da eficácia, a melhor, pois a simples aplicação da multa possibilitou a correção daquela situação por quase 40% dos sujeitos, o que é um número razoavelmente expressivo. Todos estes sujeitos já poderiam ter regularizado a sua situação antes da coação jurídica, mas somente o fizeram após aplicação da multa, demonstrando ser esta um instrumento eficiente na mudança de comportamento e ordenamento social. Não devemos esquecer que o grupo testado é diferente da maior parte dos condutores, que não cometeram este ato infracional.

O segundo grupo não regularizou a situação infracional na mesma medida do primeiro. Talvez aqui, pela natureza da infração (dirigir veículo sem possuir a Carteira Nacional de Habilitação ou Permissão para Dirigir), houvesse casos em que não fosse possível a regularização imediata. Um exemplo disto seria o caso de um menor que houvesse sido autuado por dirigir sem CNH. Se a idade deste menor fosse até o limite de 17 anos e 9 meses, não haveria possibilidade de ocorrer a regularização por absoluta impossibilidade jurídica pois um dos requisitos a ser preenchido pelo futuro condutor é a maioridade penal (18 anos), conforme o artigo 140 do Código de Trânsito Brasileiro [21]:

DA HABILITAÇÃO

Art. 140. A habilitação para conduzir veículo automotor e elétrico será apurada por meio de exames que deverão ser realizados junto ao órgão ou entidade executivos do Estado ou do Distrito Federal, do domicílio ou residência do candidato, ou na sede estadual ou distrital do próprio órgão, devendo o condutor preencher os seguintes requisitos:

I - ser penalmente imputável;

II - saber ler e escrever;

III - possuir Carteira de Identidade ou equivalente.

Parágrafo único. As informações do candidato à habilitação serão cadastradas no RENACH.

Assim, este fator pode ter influenciado no resultado de 25% de sujeitos que regularizaram a sua situação.

Quanto ao terceiro grupo estudado e o que obteve o menor índice de regularização após a aplicação da sanção administrativa, o fator econômico pode ter sido preponderante, visto que para regularizar a situação do licenciamento de um veículo é preciso quitar todas os débitos do mesmo, incluídos aí multas, seguro obrigatório, tributos e encargos, conforme dispõe o artigo 131, parágrafo 2º do Código de Trânsito Brasileiro:

Art. 131. O Certificado de Licenciamento Anual será expedido ao veículo licenciado, vinculado ao Certificado de Registro, no modelo e especificações estabelecidos pelo CONTRAN.

§ 1º ...

§ 2º O veículo somente será considerado licenciado estando quitados os débitos relativos a tributos, encargos e multas de trânsito e ambientais, vinculados ao veículo, independentemente da responsabilidade pelas infrações cometidas.

§ 3º ...

O fator financeiro muitas vezes é impossibilitante para além da vontade do sujeito de se regularizar. É bastante freqüente o abandono de veículos não-licenciados pois os débitos são superiores ao valor patrimonial do bem. Este fator pode ter influenciado no baixo percentual (19%) de regularização após a aplicação da multa.

Assim, a diferença de percentuais quantitativos obtidos nos diferentes grupos pode se dever a particularidade de cada infração, a sua natureza específica e os obstáculos colocados no processo de regularização de cada infração. Não por acaso, a situação número 1 é a que tem menores implicações financeiras, apenas o valor da multa. Já no segundo caso, o processo de habilitação é bastante oneroso, impossibilitando alguns sujeitos de obter a sua carteira de habilitação. Da mesma forma se procede com a regularização do veículo, conforme a situação número 3, que frequentemente é bastante mais dispendiosa do que o valor da multa aplicada.

4.5. Curva de Laffer

O obstáculo financeiro para regularização da situação infracional vêm ao encontro de uma conhecida tese no campo tributário, a teoria do americano Arthur Laffer. Pela Curva de Laffer, os indivíduos têm um limite a partir do qual estão dispostos a pagar tributos sobre suas receitas, pois, a partir de um ponto de ruptura representado por uma taxa de imposto máxima, eles preferem sonegar a contribuir mais ao governo [22]. Aqui também a carga tributária muito elevada funciona como uma sanção administrativa desproporcional, optando o indivíduo pela ilegalidade perante uma sanção draconiana. Portanto, o aspecto financeiro parece explicar a diferença dos percentuais de regularização da sanção infracional representada pela multa.

Sobre o autor
Omar Heni Sarraff

Consultor e Especialista de Legislação de Trânsito

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SARRAFF, Omar Heni. A aplicação de sanções administrativas no Direito de Trânsito.: A multa de trânsito e sua eficácia. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2738, 30 dez. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/18163. Acesso em: 18 dez. 2024.

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