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Comentários sobre a legitimidade ativa em ações de índole coletiva

Agenda 08/01/2011 às 16:31

O atual estágio de desenvolvimento da sociedade – apelidada, por alguns, como de massa – exige dos legisladores e operadores do direito a compreensão dos fenômenos sociais sob uma perspectiva ampla, coletiva.

Nesse diapasão, cresce em importância a figura da tutela coletiva (lato sensu) de interesses que, até bem pouco tempo atrás, eram defendidos judicialmente apenas de maneira individual, vale dizer, pelos seus titulares, singularmente considerados. A respeito do tema, válidas são as palavras de Hugo Nigro Mazzilli [01]:

Interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos sempre existiram; não são novidade de algumas poucas décadas. Nos últimos anos, apenas se acentuou a preocupação doutrinária e legislativa em identificá-los e protegê-los jurisdicionalmente, agora sob o processo coletivo. A razão consiste em que a defesa judicial de interesses transindividuais de origem comum tem peculiaridades: não só esses interesses são intrinsecamente transindividuais, como também sua defesa judicial deve ser coletiva, seja em benefício dos lesados, seja ainda em proveito da ordem jurídica. Dessa forma, o legislador estipulou regras próprias sobre a matéria, especialmente para solucionar problemas atinentes à economia processual, à legitimação ativa, à destinação do produto da indenização e aos efeitos de imutabilidade da coisa julgada.

Feito esse resumido intróito, passaremos a tecer alguns comentários com o intuito de responder a duas importantes questões. A primeira delas, a respeito da possibilidade do indivíduo/cidadão poder pleitear, sozinho, a tutela coletiva, e, a segunda, se a legitimação do Ministério Público para propor Ação Civil Pública - ACP impede a de terceiros e, em caso negativo, qual seria a explicação doutrinária para tanto.

Em primeiro lugar, é importante firmarmos o entendimento de que qualquer ação, seja individual ou coletiva, na acepção técnica do termo, é sempre pública, na medida em que instituto de direito público voltado à consecução da pacificação social. A propósito, a lição de Carlos Henrique Bezerra Leite [02], ao aduzir que:

a rigor, toda ação, como instituto de direito (público) processual, é pública. Aliás, a luz da moderna teoria geral do direito processual, a ação é considerada um instituto de direito público. É, pois, pleonástica a expressão ‘ação pública’, na medida em que qualquer ação, no sentido técnico, é sempre pública.

Sendo assim, fácil percebermos que a tutela coletiva lato sensu, por ser protegida mediante o manejo de uma ação, é, via de regra, e sem que este fato cause qualquer problema de ordem interpretativa, tomada como sinônimo de tutela de interesses público (coletivo em sentido amplo), ou seja, de um grupo determinado, determinável ou até mesmo indeterminado de pessoas.

Defendido tal ponto de vista e cientes do entendimento pacífico em sede doutrinária e jurisprudencial segundo o qual o atual modelo de organização e comportamento sociais necessita de uma visão abrangente, conglobante, massificada, podemos esperar de um estudioso mais astuto a seguinte formulação: seria possível que um indivíduo e apenas ele pleiteasse, sozinho, uma determinada tutela coletiva? Dito de outra forma: a um sujeito isolado é permitido à postulação em juízo em amparo a interesses que transcenda sua esfera jurídica singular?

Com a licença de quem pensa em sentido contrário, parece-nos que não seria vedada pela atual ordem jurídica que apenas uma pessoa natural pudesse tomar a iniciativa de defender, em um processo de cunho coletivo, a tutela de interesses também coletivos, senão vejamos.

A Ação Popular [03], sabemos, é um instrumento de envergadura constitucional (CF, art. 5º, inciso LXXIII) que visa à anulação de ato administrativo lesivo ao patrimônio público ou de entidade que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e artístico cultural. Vemos, desde logo, que o interesse que através de tal ação se defende não é o de uma determinada pessoa ou grupo de pessoas, mas o de toda a coletividade, porquanto em jogo a incolumidade dos atos praticados pelos agentes responsáveis pela administração da res publica, que, em último juízo, pertence ao povo. Como exemplo do que se alega, imaginemos a seguinte situação: uma administração pública municipal qualquer procede à contratação de agentes públicos, sob o regime da Consolidação das Leis do Trabalho - CLT, sem a realização do necessário concurso público prévio de provas ou provas e títulos. Indignado, um cidadão, que não necessita ser munícipe daquela localidade, propõe, com base na norma prevista no inciso II do art. 37 da Constituição Federal, Ação Popular visando à anulação do ato que nomeou tais servidores. Em nome de quem age referido cidadão: em seu próprio ou no de toda a coletividade que processualmente representa? Parece-nos que a segunda opção é mais condizente com o vigente ordenamento jurídico, mormente quando se leva em consideração o exposto no art. 5º, inciso LXXIII, da CF e na Lei nº. 4.717/1965.

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Destarte, vale dizer que a atuação processual em defesa de interesses coletivos – expressão aqui, diga-se uma vez mais, tomada em sentido amplo – que vise anular atos lesivos aos bens elencados no inciso LXXIII do art. 5º da Carta Magna, não depende apenas da movimentação dos entes arrolados na Lei nº. 7.347/1985 e no Código de Proteção e Defesa do Consumidor, Lei nº. 8.078/1990, razão pela qual se conclui que a tutela coletiva, quando considerada em sua acepção mais ampla e desde que com a finalidade de anular os atos prejudiciais aos valores elencados na norma constitucional referida, pode ser manejada, sozinha, por um indivíduo, desde que ostente a condição de cidadão [04].

De toda sorte, é bem verdade que a defesa dos interesses difusos, coletivos strictu sensu e individuais homogêneos não podem ser tutelados por um cidadão, pessoa natural individualmente considerada. Nesses casos, a interpretação sistemática do art. 129, § 1º, da CF, cumulado com os arts. 5º da Lei nº. 7.347/1985 e 81 e 82 do CDC, impõem o reconhecimento da legitimidade de entes que possuam robusta representatividade coletiva, bem como que a ação seja manejada para intentar, para além da eventual anulação do ato vergastado, principalmente a condenação do infrator no ressarcimento dos danos causados [05]. Pela importância dos dispositivos citados, pedimos vênia para transcrevê-los:

Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público:

[...]

§ 1º - A legitimação do Ministério Público para as ações civis previstas neste artigo não impede a de terceiros, nas mesmas hipóteses, segundo o disposto nesta Constituição e na lei.

Art. 5º - Têm legitimidade para propor a ação principal e a ação cautelar:

I - o Ministério Público;

II - a Defensoria Pública;

III - a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios;

IV - a autarquia, empresa pública, fundação ou sociedade de economia mista;

V - a associação que, concomitantemente:

a) esteja constituída há pelo menos 1 (um) ano nos termos da lei civil;

b) inclua, entre suas finalidades institucionais, a proteção ao meio ambiente, ao consumidor, à ordem econômica, à livre concorrência ou ao patrimônio artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico.

Art. 81. A defesa dos interesses e direitos dos consumidores e das vítimas poderá ser exercida em juízo individualmente, ou a título coletivo.

Parágrafo único. A defesa coletiva será exercida quando se tratar de:

I - interesses ou direitos difusos, assim entendidos, para efeitos deste código, os transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato;

II - interesses ou direitos coletivos, assim entendidos, para efeitos deste código, os transindividuais, de natureza indivisível de que seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base;

III - interesses ou direitos individuais homogêneos, assim entendidos os decorrentes de origem comum

Art. 82. Para os fins do art. 81, parágrafo único, são legitimados concorrentemente:

I - o Ministério Público,

II - a União, os Estados, os Municípios e o Distrito Federal;

III - as entidades e órgãos da Administração Pública, direta ou indireta, ainda que sem personalidade jurídica, especificamente destinados à defesa dos interesses e direitos protegidos por este código;

IV - as associações legalmente constituídas há pelo menos um ano e que incluam entre seus fins institucionais a defesa dos interesses e direitos protegidos por este código, dispensada a autorização assemblear. (grifo nosso)

Com efeito, a leitura dos dispositivos elencados deixa assente que a representatividade dos postulantes é um dos requisitos que foi considerado pelo legislador no momento da edição das normas. Vale dizer que somente podem propor ações coletivas em defesa dos direitos coletivos específicos (interesses difusos, coletivos stricto sensu e individuais homogêneos) aqueles órgãos ou entidades que literalmente ajam em defesa de interesses que suplantem a individualidade presente em demandas singulares, desde que estejam expressamente arrolados nos dispositivos legais que regem a matéria. Significa afirmar que o legislador se utilizou de um rol taxativo, posto que a legislação tenha se utilizado da expressão associação.

No que toca à segunda pergunta, ou seja, se a legitimidade do Ministério Público para promover a Ação Civil Pública impediria a de terceiros, temos que a doutrina com a qual concordamos é uníssona em defender a negatividade da resposta para a formulação posta, haja vista que tal legitimidade é disjuntiva concorrente (tese doutrinária explicativa).

Diz-se que a legitimidade é concorrente porque não existe ordem de preferência para movimentação da máquina judicial entre os co-legitimados. Assim, tanto o Ministério Público, como a Defensoria Pública ou a União Federal ou, ainda, quaisquer outros entes legitimados não necessitam estabelecer espécie alguma de acordo prévio para promoverem a Ação Civil Pública.

Por sua vez, o caráter disjuntivo reside na constatação de que a propositura da Ação Popular por um dos legitimados previne o agir dos demais legitimados sempre que a outra ação possua os mesmos elementos constitutivos (causa de pedir e pedido) da anteriormente proposta [06]. A respeito do tema, observem-se as palavras de Hugo Nigro Mazzilli [07]:

É concorrente e disjuntiva a legitimação para a propositura de ações civis públicas ou coletivas em defesa de interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos, pois cada uma dos co-legitimados pode ajuizar essas ações, quer litisconsorciando-se com outros, quer fazendo-o isoladamente. É concorrente, porque todos os co-legitimados do art. 5º da LACP ou do art. 82 do CDC podem agir em defesa de interesses transidividuais; é disjuntiva porque não precisam comparecer em litisconsórcio. (grifo nosso)

Tendo em vista o exposto, podemos concluir que: (i) em resposta a primeira indagação acima suscitada, é correto afirmar que, quando falamos em tutela coletiva em termos genéricos, acepção que engloba os direitos protegidos pela Ação Popular, com o intuito de anular ato lesivo aos bens coletivos tutelados, deve-se admitir a legitimidade de um indivíduo cidadão para pleitear, sozinho, a tutela coletiva; e, (ii) com relação a segunda proposição, podemos afirmar que a legitimação do órgão ministerial não inviabiliza a legitimidade de terceiros, se esta for prevista em lei (caráter concorrente) e desde que não haja demanda em pendência de julgamento que possua a mesma causa de pedir e pedido (caráter disjuntivo).


Referências bibliográficas

LEITE, Carlos Henrique Bezerra. Ação Civil Pública na perspectiva dos direitos humanos, 2ª edição, LTR, São Paulo: 2008, pág. 96 a 121. Material da 1ª aula da Disciplina Tutela Coletiva e Direito do Trabalho, ministrada no Curso de Pós-Graduação Lato Sensu TeleVirtual em Direito e Processo do Trabalho – UNIDERP/REDE LFG.

MAIA, Juliana. Aulas de direito constitucional de Vicente Paulo / org. Juliana Maia. – 9ª ed. – Rio de Janeiro: Impetus, 2007, p. 204/205.

MAZZILLI, Hugo Nigro. A Defesa dos Interesses Difusos em Juízo, 16ª edição, Saraiva, São Paulo: 2003, pág 45 a 55. Material da 1ª aula da Disciplina Tutela Coletiva e Direito do Trabalho, ministrada no Curso de Pós-Graduação Lato Sensu TeleVirtual em Direito e Processo do Trabalho – UNIDERP/REDE LFG.

MAZZILLI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em juízo: meio ambiente, consumidor, patrimônio cultural, patrimônio público e outros interesses. 17ª ed., São Paulo: Saraiva, 2004, pág. 289.

Meirelles, Hely Lopes. Mandado de Segurança. 28ª ed. Atualizada e complementada de acordo com as Emendas Constitucionais, a legislação vigente e a mais recente jurisprudÊncia do STF e do STJ por Arnoldo Wald e Gilmar Ferreira Mendes. São Paulo: Ed. Malheiros Editores, p. 129/130.


Notas

  1. MAZZILLI, Hugo Nigro. A Defesa dos Interesses Difusos em Juízo, 16ª edição. Saraiva, São Paulo: 2003, pág 45 a 55. Material da 1ª aula da Disciplina Tutela Coletiva e Direito do Trabalho, ministrada no Curso de Pós-Graduação Lato Sensu TeleVirtual em Direito e Processo do Trabalho – UNIDERP/REDE LFG.
  2. LEITE, Carlos Henrique Bezerra. Ação Civil Pública na perspectiva dos direitos humanos, 2ª edição, LTR, São Paulo: 2008, pág. 96 a 121. Material da 1ª aula da Disciplina Tutela Coletiva e Direito do Trabalho, ministrada no Curso de Pós-Graduação Lato Sensu TeleVirtual em Direito e Processo do Trabalho – UNIDERP/REDE LFG.
  3. De acordo com Hely Lopes Meirelles, "Ação popular é o meio constitucional posto a disposição de qualquer cidadão para obter a invalidação de atos ou contratos administrativos – ou a estes equiparados – ilegais e lesivos do patrimônio federal, estadual ou municipal, ou de suas autarquias, entidades paraestatais e pessoas jurídicas subvencionadas com dinheiro público. [...] É um instrumento de defesa dos interesses da coletividade, utilizada por qualquer de seus membros. Por ela não se ampara direitos individuais próprios, mas sim interesses da comunidade". (grifo nosso). In: Meirelles, Hely Lopes. Mandado de Segurança. 28ª ed. Atualizada e complementada de acordo com as Emendas Constitucionais, a legislação vigente e a mais recente jurisprudência do STF e do STJ por Arnoldo Wald e Gilmar Ferreira Mendes. São Paulo: Malheiros Editores, 2005, p. 129-130.
  4. Vicente Paulo e Marcelo Alexandrino afirmam que, "o autor da ação popular é a pessoa humana, no gozo dos seus direitos políticos, ou seja, que seja eleitor. Somente a pessoa natural munida de seu título de eleitor poderá propor ação popular. Poderá ser brasileiro – nato ou naturalizado, inclusive aquele entre dezesseis e vinte e um anos (pois se pode votar a partir dos dezesseis anos) – ou o português equiparado, no gozo dos seus direitos políticos". In:MAIA, Juliana. Aulas de direito constitucional de Vicente Paulo. 9ª ed. Rio de Janeiro: Editora Impetus, 2007, p. 204-205.
  5. O art. 3º da Lei nº. 7.347/1985 é assente em afirmar que "A ação civil poderá ter por objeto a condenação em dinheiro ou o cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer".
  6. A propósito, a redação do parágrafo único do art. 2º da Lei nº. 7.347/1985 aduz que "A propositura da ação prevenirá a jurisdição do juízo para todas as ações posteriormente intentadas que possuam a mesma causa de pedir ou o mesmo objeto".
  7. MAZZILLI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em juízo: meio ambiente, consumidor, patrimônio cultural, patrimônio público e outros interesses. 17ª ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 289.
Sobre o autor
Diogo Souza Moraes

Procurador Federal em exercício na Agência Nacional de Transportes Terretres - ANTT

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MORAES, Diogo Souza. Comentários sobre a legitimidade ativa em ações de índole coletiva. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2747, 8 jan. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/18214. Acesso em: 28 dez. 2024.

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