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Soberania: o fim de uma premissa

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Agenda 13/01/2011 às 17:02

Resumo: O presente artigo versa sobre a atual crise do princípio da soberania frente às modificações do cenário mundial operadas nas últimas décadas, notadamente à proteção que vem sendo dispensada aos direitos humanos, e aos efeitos gerados pelo fenômeno da globalização, que muito enfraquecem a clássica noção de Estado soberano.


1. INTRODUÇÃO

Ao longo de séculos, o princípio da soberania estatal tem se firmado como uma premissa fundamental para a concepção do Estado Democrático de Direito. A prevalência deste princípio decorre de um gradativo processo histórico, alimentado principalmente pela necessidade de organização da sociedade política e de legitimação do exercício do Poder.

Muitos são os doutrinadores que tentam delimitar o conceito da soberania. Inúmeras são as controvérsias existentes acerca deste princípio e de sua real abrangência, de modo que o presente artigo não conseguiria exaurir todas as teorias sobre o assunto.

Busca-se, contudo, explicar as circunstâncias em que se originou este instituto tão conturbado, de forma que se possa analisar criticamente a sua criação e a sua atual concepção frente à realidade fática do mundo globalizado.

Para tanto, faz-se estritamente necessário discorrer acerca da origem da soberania estatal, apontando as características que marcaram o início deste instituto e, consequentemente, da própria noção originária do Estado.

Ainda, é muito delicada a relação entre o conteúdo deste princípio e a proteção proporcionada aos direitos humanos, seja em termos domésticos ou internacionais. Desta forma, também é importante tratar da difícil relação que permeia estes dois institutos.

Por fim, cabe salientar a repercussão que o processo de globalização opera no referido princípio do Estado soberano, concluindo por uma flagrante necessidade de mitigação do mesmo.


2. ORIGEM E EVOLUÇÃO DA CONCEPÇÃO CLÁSSICA DA SOBERANIA

A concepção clássica da soberania – com a devida ressalva às contribuições teóricas de alguns pensadores, a exemplo de Aristóteles – teve sua origem no contexto histórico da segunda fase do Direito Internacional. Também conhecido como fase de Westfalen, em clara alusão ao Tratado que pôs fim à Guerra dos Trinta Anos [01], este período inaugurou uma época de relativa paz mundial, possibilitando assim o próprio surgimento do Direito Internacional.

O Tratado de Westfália foi assinado sobre os auspícios doutrinários de Hugo Grócio, considerados por muitos como o pai do Direito Internacional, e que estabeleceu alguns dos princípios mais basilares deste ramo jurídico, a exemplo do princípio da igualdade jurídica entre os Estados.

Nesta época, marcada pela transição do feudalismo para o capitalismo, já era possível perceber um movimento de centralização do poder, que passava a se concentrar exclusivamente nas mãos do rei. Neste contexto, o absolutismo se mostrava como um meio eficaz de manutenção da paz social, na medida em que possibilitava uma maior segurança frente às indesejadas invasões estrangeiras.

Este movimento de centralização do poder é o que Thomas Hobbes alguns anos mais tarde chamaria de Contrato Social. De forma sucinta, neste pacto, os súditos, aspirando principalmente por proteção e desenvolvimento seguro, depositam a sua fração de poder nas mãos de uma única pessoa, de forma que ela possa garantir estas aspirações. Desta forma, os súditos que passam a ter o dever de obedecer às determinações do então soberano.

Para o filósofo inglês, devido à necessidade natural do homem de viver em segurança, ele precisou criar mecanismos que pudessem protegê-lo das invasões estrangeiras - tão comuns naquela época - e das injúrias cometidas entre os próprios conterrâneos, de modo que todos os indivíduos pudessem se desenvolver sem temor. Para tanto, o homem teria que outorgar todo o seu poder a uma só pessoa, ou até mesmo a uma assembléia de homens [02], para que estes pudessem reunir todas as vontades em uma.

Nos dizeres de Hobbes [03], "[...] é como se cada homem dissesse a cada homem: ‘Cedo e transfiro meu direito de governar-me a mim mesmo a este homem, ou a esta assembléia de homens, com a condição de transferires a ele teu direito, autorizando de maneira semelhante todas as suas ações’. [...]".

O primeiro autor pós-aristotélico a tratar da soberania de maneira técnica foi Jean Bodin. Com sua obra Os seis livros da República, publicadaem 1576, ele transformou a soberania em uma base de sustentação para a identificação do Estado com a idéia de Poder Público.

Fundamentada na lei divina e na lei natural, o poder soberano, na concepção de Bodin, possibilitaria a seu detentor o monopólio do uso da força para fazer valer as suas determinações dentro de um território específico.

A soberania concebida por Bodin é marcada por duas características básicas: a natureza absoluta e a perpetuidade no tempo. É absoluta, na medida em que não estaria subordinada a nenhum outro poder, de forma que o soberano só estaria limitado, ainda que teoricamente, pela lei divina e pela lei natural, podendo inclusive denegar as suas próprias determinações. No que se refere à perpetuidade, o doutrinador francês salienta que o poder soberano não se limita no tempo, sendo inconfundível com a pessoa de quem quer que o detenha.

Conforme salienta Sandra Aparecida Riscal [04] em trabalho específico sobre a concepção Bodiniana de soberania, aquele a quem o poder de mando é conferido temporariamente não detém o poder soberano de fato. Isto se dá pelo fato de que se tal poder foi concedido a alguém, a sua origem é exterior à vontade de quem o recebeu, de maneira que o poder soberano será exercido apenas precariamente, uma vez que o verdadeiro detentor da soberania é aquele que a delegou, e que em determinado momento, também poderá retomar-lhe. O caráter perpétuo do poder soberano, portanto, estaria diretamente relacionado com o princípio da continuidade do Estado, que não admite a confusão entre o Estado e a pessoa de seu governante.

Desta forma, Jean Bodin atenta para a necessidade racional de se ter uma autoridade suprema, munida de um poder tal que não possa ser destituída da sua condição de soberana por qualquer organização, interna ou externa. Começa aqui a noção de que o direito deve tutelar a esfera pública, pautando as formas de ação política.

A partir destas concepções, a soberania passou a compor um elemento fundamental do Estado, de forma que, sob a égide deste princípio, o rei ampliava seus poderes, passando a se responsabilizar pelas funções inerentes à administração do Estado, tais como emissão de moedas, manutenção de forças armadas, entre outros, assumindo verdadeira condição de autoridade política. O poder de fato exercido pelos monarcas transformou-se em poder de direito.

Com o declínio do absolutismo devido às revoluções burguesas, e o conseqüente enfraquecimento do poder do rei, a soberania sofreu alguns ajustes de maneira a se adaptar ao novo modelo de Estado que surgia: o Estado Constitucional Moderno. Se antes se pensava que a soberania consistiria em uma prerrogativa do rei, com o surgimento do Estado Constitucional Moderno, esta passou a ser vista como uma prerrogativa da nação como um todo.

A soberania passou então das mãos do monarca para as mãos do povo, que representado por uma assembléia, deveria exercê-la de forma conjunta, atentando não para os seus problemas pessoais, mas para os problemas de toda a nação. É o que Sieyès chamou de Soberania da Nação.

Para alguns doutrinadores, a exemplo de Hans Kelsen, o conceito de soberania seria incompatível com a co-existência de vários Estados soberanos. Adepto do monismo [05], Kelsen já conseguia antever a problemática em torno da soberania exercida por vários Estados ao mesmo tempo, de forma que ele percebeu que se todos os Estados se encontravam em relação de igualdade, não haveria como solucionar as antinomias que por ventura surgissem entre ordenamentos de Estados diferentes. [06]

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Mesmo sobre duras críticas, a verdade é que a soberania estatal continuou sendo amplamente invocada, vigorando de maneira a afastar qualquer possibilidade de intromissão nos assuntos internos de cada Estado, além de ser continuamente ressaltada pela Teoria Geral do Estado como uma característica fundamental do poder estatal.

No que se refere à clássica concepção de soberania, percebe-se que a abrangência deste princípio é invocada até hoje como uma premissa intocável e incontestável. Alguns sequer conseguem vislumbrar o funcionamento de um Estado sem esta prerrogativa histórica de que não pode haver interferência externa no "domínio reservado" deste Estado, fundamentando-se numa premissa que foi concebida em um contexto histórico próprio, e que não mais condiz com a realidade atual, como se pretende demonstrar.


3. O PRINCÍPIO DA SOBERANIA COMO ÓBICE À PROTEÇÃO EFETIVA DOS DIREITOS HUMANOS

Conforme pôde ser observado, apesar de figurar como alvo de críticas contundentes de muitos doutrinadores renomados, desde a sua concepção, a soberania tem prosperado como uma premissa fundamental para o funcionamento do Estado. No que tange aos interesses dos Estados, há de se admitir a importância que o princípio da soberania operou no desenvolvimento e evolução da economia. No que tange aos interesses da humanidade, contudo, o princípio da soberania, em sua concepção clássica, tem se mostrado um verdadeiro óbice a ser superado.

De fato, foi com base na soberania que muitos Estados se julgaram imunes quanto a quaisquer ações externas de intromissão em seu domínio reservado, sentindo-se confortáveis o suficiente para lidarem com seus nacionais da maneira que lhes aprouvesse.

Os governos ditatoriais do século XIX - notadamente os adeptos do regime fascista - utilizaram-se desta justificativa de forma macabra para não se intimidar diante da desaprovação dos demais Estados do globo – principalmente os do ocidente – e assim conseguiram sobrepor valores vitais da humanidade, sem que ninguém pudesse intervir. Esta política predominou até que uma guerra de âmbito mundial se fez necessária para pôr fim a tantas atrocidades que eram cometidas sob a proteção do princípio absoluto da soberania estatal.

A partir de então, era inegável que o aludido princípio entrava em choque direto com a proteção do indivíduo tal como integrante da humanidade. A força da soberania estatal atingiu um nível tal, que os Estados proclamavam-se verdadeiros donos de seus nacionais, concebendo ou restringindo-lhes direitos de acordo com as suas vontades.

Fábio Konder Comparato critica esta discricionariedade Estatal no reconhecimento dos direitos humanos:

Por outro lado, se se admite que o Estado nacional pode criar direitos humanos, e não apenas reconhecer a sua existência, é irrecusável admitir que o mesmo Estado também pode suprimi-los, ou alterar de tal maneira o seu conteúdo a ponto de torná-los irreconhecíveis. Ademais, a criação dos direitos humanos pelo Estado nacional conduziria à impossibilidade de se lhes atribuir o caráter de exigências postas por normas universais, sem as quais, como salientou Kant, não há ética racionalmente justificável. Não se trataria, logicamente falando, de atributos inerentes à condição humana, mas unicamente a determinada nacionalidade. [07]

O princípio da soberania na sua forma absoluta mostrou-se, portanto, inapto a proporcionar uma efetiva proteção dos direitos humanos, na medida em que não admite qualquer tipo de cobrança externa para que promova o devido respeito pelos direitos fundamentais da pessoa humana. Esta dicotomia entre direitos humanos e soberania estatal não passou despercebida pela doutrina.

Luigi Ferrajoli [08] entende que a soberania não se reduz a uma simples constatação da realidade internacional por parte da doutrina. Para ele, mais do que isso, esta fundamenta a própria independência dos Estados sem, contudo, excluir a possibilidade de um Direito Internacional que volte a sua atenção para a humanidade, em detrimento dos Estados. O referido autor defende, então, uma espécie de constitucionalismo mundial, com garantias jurisdicionais globais, no posto ou ao lado dos constitucionalismos nacionais.

Com um posicionamento semelhante, Valerio de Oliveira Mazzuoli [09] ensina que "não existem direitos humanos globais, internacionais e universais, sem uma soberania flexibilizada, o que impediria a projeção desses direitos na agenda internacional.".

Mazzuoli entende, ainda, que os direitos humanos não podem ser inclusos no campo de domínio exclusivo de um ou outro Estado, mas de toda a comunidade internacional, devendo-se aplicar uma interpretação mais restritiva do princípio da não-ingerência.

Também neste sentido manifesta-se Antônio Augusto Cançado Trindade [10], para quem a soberania é uma noção completamente alheia à proteção internacional dos direitos humanos. Entende o renomado doutrinador que soberania e direitos humanos são dois institutos irreconciliáveis, devendo-se abdicar do primeiro em prol do segundo.

A dicotomia entre o princípio da soberania estatal e a proteção internacional dos direitos humanos foi, aos poucos, sedimentando a idéia de que seria preciso mitigar, ou até mesmo negar a soberania para que o Direito Internacional pudesse penetrar, cada vez mais, na esfera interna de cada Estado que não consiga garantir a preservação da dignidade humana em seu território.

Desta forma, surge a idéia de que a afronta aos direitos humanos seria um problema de toda a humanidade, e não de cada Estado individualmente.

Neste compasso, o caráter absoluto do conceito tradicional de soberania chega, inclusive, a ser negado pelo então Secretário Geral das Nações Unidas em 1992, Boutros Boutros-Ghali, conforme se observa das afirmações do Secretário dada na Agenda para a Paz, ocorrida neste mesmo ano, citada por Flávia Piovesan:

Ainda que o respeito pela soberania e integridade do Estado seja uma questão central, é inegável que a antiga doutrina da soberania exclusiva e absoluta não mais se aplica e que esta soberania jamais foi absoluta, como era então concebida teoricamente. Uma das maiores exigência intelectuais de nosso tempo é a de repensar a questão da soberania [...]. Enfatizar os direitos dos indivíduos e os direitos dos povos é uma dimensão da soberania universal, que reside em toda a humanidade e que permite aos povos um envolvimento legítimo em questões que afetam o mundo como um todo. É um movimento que, cada vez mais, encontra expressão na gradual expansão do Direito Internacional. [11]

A Lei Fundamental Alemã de 1949 é um perfeito exemplo ilustrativo desta tendência. Em seu Art. 19, inciso II ela afirma que, em nenhuma hipótese, o conteúdo essencial dos direitos fundamentais pode ser alterado, ainda que sua limitação decorra de autorização legal interna [12]. Percebe-se que a própria constituição alemã de 1949, posteriormente à Segunda Guerra Mundial, já dispensava aos direitos humanos um caráter de superioridade hierárquica em relação às demais normas internas.

Assim como a Alemanha, outros países também passaram a considerar a prevalência dos direitos humanos face ao direito interno, a exemplo da Itália, Chile, Brasil, que assim como muitos outros, reconhecem o respeito aos direitos fundamentais humanos como um limite à soberania estatal.

Com relação ao Brasil em específico, Fábio Comparato [13] explica que o país considera a questão da proteção dos direitos humanos como sendo de interesse internacional. Desta forma, ao prever em sua Carta Magna o princípio da prevalência dos direitos humanos [14], além de expressamente reconhecer as garantias decorrentes dos tratados internacionais celebrados pela República Federativa do Brasil [15], o legislador brasileiro deixou claro que, no Brasil, o princípio da não-ingerência é inaplicável no que tange à proteção dos direitos humanos.

Conforme explica Valério de Oliveira Mazzuoli [16], neste contexto de ampliação da proteção dos direitos humanos, houve necessariamente um enfraquecimento da não-ingerência. Contudo, mesmo após a Declaração Universal dos Direitos do Homem e deste movimento gradativo de internacionalização da proteção dos direitos humanos, inúmeros países - a exemplo da França, África do Sul, Polônia, União Soviética, Iugoslávia, Irã, Paraguai, Romênia, etc. - continuaram se utilizando deste corolário do princípio da soberania como forma de se esquivar de uma possível responsabilização internacional por não garantir a efetiva proteção dos direitos fundamentais de seus nacionais.

Em que pese existir, ainda hoje, certa relutância por parte de alguns Países em admitir uma mitigação - ou flexibilização - da soberania em favor da proteção dos direitos humanos, muitos já entendem ser esta necessária, em virtude de uma completa incompatibilidade do conceito clássico de soberania com a proteção dos direitos fundamentais dos seres humanos.


4. A GLOBALIZAÇÃO E SUA REPERCUSSÃO NO ESTADO CONSTITUCIONAL MODERNO

Aliado à idéia de difícil convivência entre o princípio da soberania e a concreta proteção dos direitos humanos, surge ainda um fenômeno que põe em cheque a atual concepção que se tem do Estado nacional. Este fenômeno é a globalização, que desde as últimas décadas do século XX vem preocupando aqueles que prezam por um desenvolvimento Estatal nacionalista e fechado.

Neste contexto, cabe aqui discutir a repercussão que este fenômeno causa no Estado Constitucional Moderno, atentando principalmente para os seus efeitos no que tangem a soberania estatal, realçando a necessidade já defendida anteriormente de mitigação ou flexibilização da soberania estatal. Ainda, busca-se alertar para os riscos que a globalização traz para a população mundial

Com o aumento e surgimento de novas tecnologias, acompanhado da massificação dos meios de comunicação e da difusão da língua inglesa por todo o planeta, acompanha-se hoje o desenvolvimento de um fenômeno tido como irreversível e que, paulatinamente, reduz a importância dos limites territoriais dos Estados na medida em que se transnacionalizam as relações econômicas, culturais e sociais, como se tendesse a uma homogeneidade econômica global.

Com a globalização, as distâncias do planeta foram encurtadas e os mercados ampliados. Com efeito, tamanha é a velocidade com que os bens produzidos são postos à disposição, que hoje já é possível que um produto seja inventado e consumido por boa parta da população terrestre num mesmo dia. [17]

Em estudo sobre o tema, Nilton José de Souza Ferreira explica que a globalização caracteriza-se principalmente pela "mundialização da produção, da circulação e do consumo, vale dizer, de todo o ciclo de reprodução do capital. [...]". [18]

O conceito de globalização está, sem dúvida, atrelado à noção de neoliberalismo. Isto significa dizer que o fenômeno em questão está relacionado com a competitividade, o lucro, e a produção em escala global, características eminentemente neoliberais, que se espalharam por todo o mundo notadamente quando do esgotamento do dirigismo Estatal, em que o Estado-social se viu incapaz de atender às demandas assumidas com a política do bem-estar social.

Contudo, a origem do fenômeno ora discutido não é tão recente quanto se pensa. Manoel Jorge e Silva Neto [19] vislumbra a concepção da globalização em quatro ondas distintas.

A primeira onda globalizadora, para o autor, remonta à política expansionista do Império Romano da Antigüidade, e que perdurou até o fim do Império Romano ocidental no século IV d.C. A segunda onda globalizadora teria se dado com o colonialismo, marcado pelas expansões marítimas do século XV. A terceira onda globalizadora, assim definida pelo autor supramencionado, se deu com a Revolução Industrial do século XVIII. A quarta e mais recente onda da globalização é a que se vive hoje, que se originou com a crise dos países socialistas, iniciada na década de 70, e que possui forte ligação histórica com a queda do muro de Berlim, em 1989.

Utilizando-se da classificação do autor supracitado, percebe-se que esta onda mais recente da globalização, sem dúvidas, é a que mais repercute na esfera da soberania Estatal, tendo em vista que, com o surgimento dos conglomerados econômicos, o Estado deixa de ser o único centro de poder. Este, por sua vez, passa a ser exercido por aqueles que detêm grande poder econômico, à exemplo das transnacionais, empresas de porte mundial que exercem influência direta na economia do planeta como um todo, e na dos Estados, individualmente.

O que se vê hoje, de fato, é uma luta incessante dos Estados para não perder o seu poder político, e consequentemente, sua soberania face às pressões econômicas emanadas por estes conglomerados.

Nesse sentido, Nilton José de Souza Ferreira [20] alerta que no cenário internacional, o Estado democrático está deixando de exercer as funções que antes exercia. Isto se deve ao fato de que a globalização provoca a degradação das instituições e da vida política. Pouco a pouco o Estado perde os meios que detém para o exercício de seu poder soberano em decorrência da lógica de mercado e das aspirações econômicas. Criam-se por todo o planeta zonas alheias ao Direito, em que os grandes investidores financeiros detêm um enorme poder, em detrimento da força estatal.

Uma das formas encontradas pelos Estados para tentar mitigar os efeitos que a globalização e o neoliberalismo operam em seu poder político foi o de promover o alinhamento em blocos transnacionais. Com efeito, é possível notar certa tendência mundial de agrupamento de Estados, no intuito de se fortalecerem perante o mercado global econômico e com isso minimizar as dificuldades impostas por esta nova fase do capitalismo.

Contudo, o fato de que os Estados passam hoje a se agrupar em blocos transnacionais não significa que, com isso, eles estejam resguardando a sua soberania. Ao contrário, no momento em que integram um destes blocos, abdicam da competência para gerir determinadas situações, que passam a ser reguladas universalmente pelo bloco.

Desta forma, o que ocorre, em verdade, é uma espécie de cessão de determinadas competências dos Estados, para que passem a ser exercidas pelo bloco que integram. A nova ordem mundial que se instaura demonstra - mais uma vez - que o princípio da soberania estatal, tal como originariamente concebido, não pode prosperar.

Conforme os ensinamentos de Marcos Sampaio [21], o planeta ganhou uma nova complexidade, sobretudo diante de uma concepção de Estado soberano que data do século passado. Em sua explanação, o referido professor cita também o advogado francês e ex-Secretário Geral da ONU para Operações de Paz, Jean-Marie Guéhenno [22], que em obra intitulada "O Fim da Democracia", critica veementemente o conceito de soberania e da sua real importância para o indivíduo.

Para Jean-Marie Guéhenno, o cidadão não pertence mais a uma nação em específico, ele hoje se tornou cidadão do mundo como um todo, não reconhecendo, por muitas vezes, os limites territoriais e políticos que lhe são impostos.

Ao se afirmar que a globalização é irreversível, diz-se em verdade que nem os Estados e nem qualquer outra organização de que se tenha conhecimento possuem meios para barrar o referido fenômeno. Isto se deve ao fato de a globalização ser regida por forças anônimas, alheias ao raio de ação de forças contrárias.

Cada vez mais o Estado se enfraquece, principalmente por não mais poder ditar as regras e normas que tenham por objetivo direcionar os rumos da sua nação. O tripé que antes fundamentava a soberania estatal (capacidade militar, auto-suficiência econômica e especificidade cultural) frente ao processo de globalização, não mais se mostra capaz de sustentar o Estado Contemporâneo tal como este foi concebido.

Daniel Sarmento, em estudo sobre o tema, assim dispõe:

Enfim, a globalização vem alimentando o processo de esfacelamento do Estado-Providência, na medida em que vai corroendo o seu poder de efetivamente subordinar, de modo soberano, os fatores econômicos e sociais que condicionam a vida de cada comunidade política. Cada vez mais avulta a importância de variáveis exógenas sobre a economia nacional, sobre as quais o Estado-nação não exerce nenhum poder. [24]

As conseqüências que a globalização traz para a conjuntura mundial não se restringem apenas à seara econômica. Com efeito, as facilidades tecnológicas e o intenso aprimoramento dos meios de comunicações e transportes acabam por intensificar o contato entre culturas distintas, expondo certa tendência à homogeneização de padrões de comportamento, além de proporcionar a aproximação entre o Direito das nações diversas.

Neste aspecto, é possível notar que a globalização também possibilitou o surgimento de um ânimo global por uma regulação cada vez mais abrangente das relações internacionais. As crescentes demandas surgidas com os diversos choques culturais ocasionados pela aproximação entre nações fortalecem a necessidade de flexibilização da soberania estatal, de forma que o Direito das Gentes possa gerir as questões atinentes ao fenômeno da globalização.

Antônio Celso Alves Pereira [25] afirma que no atual estágio em que a sociedade internacional se encontra, definido pela interação cultural decorrente das facilidades ocasionadas pela globalização, como a evolução dos meios de comunicação e de transporte, a soberania não pode mais ser considerada em sua forma absoluta.

A proteção internacional dos direitos humanos é uma questão central desta tendência por uma melhor regulação das relações internacionais. É facilmente perceptível que a globalização também causa impactos na seara dos direitos humanos. Como forma desta interferência pode-se tomar como exemplo a discussão que emergiu a respeito da relativização dos direitos trabalhistas em prol de uma constante otimização concorrencial que se instaurou com a globalização.

Ainda, poder-se-ia fazer referência à globalização da criminalidade, notadamente do narcotráfico e do terrorismo, que indubitavelmente trazem inúmeras mazelas aos direitos humanos.

Com a globalização, sem prejuízo do quanto preconizado pelos adeptos do relativismo cultural [26], difundiu-se a idéia de que a proteção dos direitos humanos deve transcender as fronteiras políticas dos Estados, adotando-se uma postura claramente universalista. Foi este o objetivo da Declaração e Programa de Ação de Viena, adotada em 1993, ao prever em seu parágrafo 5º que:

Todos os direitos humanos são universais, indivisíveis, interdependentes e inter-relacionados. A comunidade internacional deve tratar os direitos humanos globalmente, de maneira justa e equânime, com os mesmos parâmetros e com a mesma ênfase. As particularidades nacionais e regionais e bases históricas, culturais e religiosas devem ser consideradas, mas é obrigação dos Estados, independente de seu sistema político, econômico e cultural, promover e proteger todos os direitos humanos e liberdades fundamentais. [27]

Como se percebe, a globalização interfere diretamente no funcionamento do Estado Constitucional Moderno, além de ter contribuído fortemente para a valorização do tema dos direitos humanos. Dia após dia, o Estado perde a força que possui frente às mudanças ocasionadas por este fenômeno tão atrelado ao neoliberalismo. Mais uma vez, resta claro que a atual configuração do Estado não mais condiz com a atual conjuntura global.

Reitera-se, portanto, a idéia de que não se pode mais partir da premissa de que o Estado goza de soberania, entendida esta como uma espécie de qualidade suprema, para que não lhe seja imputado o dever de proteção dos direitos fundamentais de seus nacionais.

Sobre o autor
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FONSÊCA, Victor Albuquerque Feijó. Soberania: o fim de uma premissa. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2752, 13 jan. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/18265. Acesso em: 5 nov. 2024.

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