Resumo: Após tentativas pontuais de se superar a histórica crise do recurso extraordinário, a Emenda Constitucional n.º 45/04 criou um novo pressuposto para sua admissão. Nela se determinou que tal apelo somente pode ser aceito se se restar comprovado a repercussão geral das questões constitucionais discutidas. Tal inovação, que ensejou regulamentação pelo legislador ordinário e pelo Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, se deu na esteira da experiência de diversos países que adotam institutos análogos. No Brasil, ainda que com pouco tempo de aplicação, a repercussão geral já apresenta resultados significativos, despontando-se como o grande semeador da racionalização do recurso extraordinário.
PALAVRAS-CHAVE: Emenda Constitucional n.º 45/04. Repercussão geral. Racionalização do recurso extraordinário.
1 – INTRODUÇÃO
O recurso extraordinário, recurso de singular importância no âmbito da jurisdição constitucional brasileira e que tem como finalidade "assegurar: a inteireza positiva; a validade; a autoridade e a uniformidade de interpretação da Constituição" [01], foi instituído através do Decreto n.º 848 de 1890 e introduzido na ordem constitucional nacional pela Constituição de 1891. [02]
Sua fonte de inspiração foi o writ of error do direito norte-americano. Não se levou em conta, porém, quando de sua criação, as notáveis diferenças de competência legislativa que se mostram entre os dois sistemas jurídicos. Nos Estados Unidos há uma substancial autonomia legislativa dos Estados federados, de modo que "é excepcional o caso em que tenham os Tribunais estaduais de aplicar leis federais" [03], ao passo que no Brasil a competência da União é mais ampla (já na Constituição de 1891 se estabelecia como sendo de competência do Congresso Nacional legislar sobre o direito civil, comercial e criminal), gerando, portanto, inúmeras demandas de competência dos tribunais estaduais que envolvem o direito federal.
Diz o processualista Liebman, que "dessas circunstâncias decorre que os tribunais estaduais aplicam direito federal com frequência muito maior, vale dizer, mais precisamente na imensa maioria dos casos" [04], logo as questões sujeitas a apreciação pela Corte suprema nacional para uniformizar o direito federal são de escala notavelmente superior às da Suprema Corte norte-americana.
Nasce dessa importação disforme a chamada crise do recurso extraordinário, pois como era ele o meio apto para se questionar qualquer causa que versasse sobre questão federal (sejam questões constitucionais ou questões federais propriamente ditas), o Supremo Tribunal Federal (STF) se abarrotou de processos.
Além da falha na importação do modelo federalista norte-americano, a existência de um grande número de recursos extraordinários é justificada por Bruno Dantas [05] pelo fato de a Constituição brasileira ser do tipo analítica – o que eleva sobremaneira o número de controvérsias constitucionais –, e por fatores institucionais, pois é comum, no Brasil, tentar se resolver graves crises econômicas mediante a edição de legislação intervencionista e emergencial de última hora, o que, via de regra, gera uma proliferação generalizada de demandas.
Calmon de Passos aponta as duas grandes consequências dessa crise: a) o acúmulo de processos sem decisão naquele órgão, já que a quantidade de processos ingressados na Corte é superior à dos julgados; b) a perda de substância dos julgados, "que deveriam ser os norteadores de toda a atividade jurisdicional do país, apresentam-se, em sua esmagadora maioria, como frutos modestos, às vezes nada convincentes, por força da pressão intolerável do volume de trabalho exigido dos senhores ministros." [06]
Com a crise posta, diversas foram as soluções vislumbradas. A Lei nº. 3.396/58 estabeleceu a triagem dos recursos extraordinários pela instância local; criaram-se as súmulas do STF em 1963; a Constituição de 1969 designou ao Regimento Interno do STF (RISTF) a indicação das causas que por ele seriam julgadas em recurso extraordinário em razão de sua natureza, espécie ou valor pecuniário (art. 119, III, parágrafo único / redação original da Constituição de 1969) etc. [07]
O RISTF de 1970 estabelecia (art. 308) inúmeros casos em que era excluída a apreciação de recurso extraordinário pela Corte. Ressalvava-se, contudo, os recursos que atacassem decisões em que, apesar de versarem sobre matérias descritas na referida enumeração, houvesse ofensa à Constituição ou discrepância manifesta com a jurisprudência do Tribunal.
A Emenda Regimental nº. 3 de 1975 substituiu esta última exceção (discrepância manifesta com a jurisprudência do Tribunal) pela "relevância da questão federal". Assim, quando houvesse ofensa à Constituição ou se demonstrasse em preliminar a existência de relevância da questão federal, o recurso poderia ser admitido pelo STF. [08]
A chamada arguição de relevância, cuja finalidade essencial era a restrição do número de casos levados ao Supremo Tribunal, possibilitou a promoção de um equilíbrio das taxativas hipóteses de interposição do recurso extraordinário existentes. Assim, poderia o STF conhecer de:
determinadas questões federais que, em princípio, não estariam albergadas pelas estritas hipóteses de cabimento do recurso extraordinário, mas a respeito das quais o julgamento daquela Corte interessaria à sociedade brasileira, considerando-se o papel modelar por ela exercido. [09]
A Emenda Regimental nº. 2 de 1985 promoveu uma notável alteração no instituto, já que "com a evolução e com o aumento das hipóteses excluídas – o sistema de excluir nominalmente as causas passou a ser não funcional, porque o número de exclusões foi aumentando –, a definição passou a ser positiva." [10] Assim, o RISTF passou a prever as hipóteses de cabimento do recurso e, se em determinado caso não contemplado no referido rol se reconhecesse a relevância da questão federal em debate, poderia ser ele admitido pelo Tribunal (art. 325, IX / RISTF, com redação dada pela Emenda Regimental nº. 2 de 1985).
Por ter se mostrado um critério eminentemente político, com votações secretas, decisões sem fundamentação e impassíveis de recurso, [11] a arguição de relevância foi severamente criticada, tida como antidemocrática, [12] e passou a ser considerada "um dos instrumentos mais controvertidos da história do STF." [13]
A promulgação de Constituição de 88 exerceu influência direta na crise do recurso extraordinário. Nela se retirou o caráter de norma primária do RISTF – eliminado-se automaticamente a arguição de relevância do ordenamento jurídico pátrio –, e se criou o Superior Tribunal de Justiça (STJ), cuja finalidade precípua seria uniformização do direito federal infraconstitucional.
Esta segunda inovação causou uma espécie de fracionamento do recurso extraordinário: os recursos das questões constitucionais mantiveram o nome de recurso extraordinário, sendo competente para seu julgamento o STF, e os recursos de questões infraconstitucionais adotaram o nome de recurso especial e passaram à competência do STJ.
A realidade, porém, se mostrou diversa do que fora pretendido. Ao invés de se solucionar um problema, criou-se mais um, pois, além de o número de recursos extraordinários ao STF não ter diminuído, o STJ "está avassalado, apesar dos seus trinta e três Ministros, com os recursos especiais e com a sua competência, que – não a competência específica do recurso especial – já anda por volta de mais ou menos uns cem mil recursos." [14]
Dados publicados pelo Supremo Tribunal Federal revelam que, a despeito da criação do STJ, o número de recursos extraordinários se manteve crescente. Em 1990, por exemplo, foram distribuídos 10.780 recursos extraordinários à Corte, já em 2006 (último ano sem a efetiva implantação do instituto da repercussão geral) esse número já ultrapassava os 54.000 processos. [15]
A explicação para essa explosão não é única. Diz Gilmar Ferreira Mendes que:
A massificação das demandas nas relações homogêneas é um fator decisivo para essa crise. As discussões que se encetaram em determinado período sobre planos econômicos, sistemas financeiros de habitação, Fundo de Garantia do Tempo de Serviço – FGTS, índices de reajuste do Instituto Nacional de Seguro Social – INSS, podem explicar com certa plausibilidade a multiplicação de demandas, especialmente em um modelo que trata cada controvérsia judicial instaurada como um processo singular. A falta de um mecanismo com caráter minimamente objetivo para solver essas causas de massa permite que uma avalanche de processos sobre um só tema chegue até o STF pela via do recurso extraordinário. [16]
Duas leis promulgadas na década de 90 atenuaram a quantidade de recursos extraordinários: a Lei n.º 8.038/90 previu a possibilidade de o relator deixar de admitir o recurso caso a matéria já estivesse pacificada pelo Tribunal, e a Lei nº 9.756/98 concedeu ao relator o poder de prover ou desprover o recurso por decisão monocrática, no caso de matéria pacificada. Apesar de eficientes, tais remédios não se mostraram suficientes para racionalizar o volume de demandas que chegam ao STF.
A Emenda Constitucional n.º 45/04, conhecida como a reforma do Poder Judiciário, encarou o problema ao alterar o art. 102 da Constituição Federal. In verbis:
§3º No recurso extraordinário o recorrente deverá demonstrar a repercussão geral das questões constitucionais discutidas no caso, nos termos da lei, a fim de que o Tribunal examine a admissão do recurso, somente podendo recusá-lo pela manifestação de dois terços de seus membros. (grifou-se)
Acolheu-se, enfim, a lição vaticinada por Calmon de Passos (já em meados da década de 70), ao afirmar que nem o simples aumento do número de ministros, nem a redução desarrazoada do campo de admissibilidade do recurso extraordinário são a solução para a crise, a "colocação certa do problema é partir-se do exame objetivo e sereno dos pressupostos de sua admissibilidade" [17].
2 – A Reforma do Poder Judiciário e a instituição da repercussão geral
A necessidade imperiosa da reforma do Judiciário brasileiro não é exclusividade da contemporaneidade, nem do sistema judicial pátrio. Contudo, sua ineficiência hodierna salta aos olhos de qualquer observador e, principalmente, de seus usuários. "Diante da inoperância e obsolescência do Estado-juiz, considerado, no Brasil, ‘lento, caro e ineficaz’, torna-se essencial repensar sua estrutura, corrigindo os desvios que o impedem de responder adequada e satisfatoriamente às mais diversas demandas sociais." [18]
A agilidade na tramitação dos processos é o ponto que mais interessa à população. [19]
Com vistas a atenuar esse problema crônico do Judiciário nacional, a Emenda Constitucional n.º 45 incorporou o princípio da razoável duração do processo no rol dos direitos fundamentais previstos no art. 5º da Constituição Federal (inc. LXXVIII). [20] É cediço, porém, que são necessários meios materiais para tornar a celeridade na tramitação dos processos uma realidade.
No que tange ao recurso extraordinário, a própria Emenda 45 tratou de implantá-los [21] ao instituir a repercussão geral como pressuposto de sua admissibilidade. [22] Buscou-se, com ela, enfrentar a crise do recurso extraordinário reduzindo a elevadíssima carga de trabalho da Corte – restringindo sua atuação a feitos de grande impacto – e, consequentemente, diminuindo o tempo de tramitação dos processos de sua alçada.
2.1 – Institutos afins no direito estrangeiro
A explosão no número de recursos dirigidos a mais alta corte do país não é um fenômeno exclusivamente brasileiro. Trata-se de um problema mundial causado pela confluência de três fatores: a estrutura econômica da sociedade da informação que, vinda de uma sociedade agropastoril, estimula o conflito de interesses; o distanciamento do liberalismo econômico e a aproximação do welfare state, com a crescente intervenção do Estado nas atividades econômicas e nas relações privadas; além do movimento mundial pelo acesso a justiça, capitaneado por Mauro Cappelletti, que tem como consequência imediata o aumento do número de recursos. [23]
Assim, cada país, de acordo com a singularidade de seu ordenamento jurídico e do contexto social em que se insere, busca inovações para reduzir a quantidade de processos em suas cortes supremas. A ideia de um filtro dos recursos, tal como a repercussão geral, não é originária do Brasil. Inúmeros países possuem institutos análogos, com destaque aos EUA, à Alemanha e Argentina, além da Áustria, Inglaterra, Japão [24] e Canadá. [25]
O writ of certiorari norte-americano (instituto paradigma para os outros países) é uma ordem dada por uma corte superior a uma corte inferior, no sentido de que lhe remeta um determinado caso, para que por ela seja revisto. [26] A Suprema Corte escolhe os casos que deseja julgar, podendo, também, escolher, dentro de um caso, as questões que deseja examinar. Tem ela um controle praticamente absoluto sobre os casos que serão julgados naquela instância.
Não há uma determinação legal que estabeleça critérios objetivos para a admissão do writ of certiorari. Trata-se de um exercício de discricionariedade realizado pela Corte, que, além dos fatores jurídicos, considera os fatores políticos envolvidos na demanda. Sua jurisprudência sinaliza alguns indícios utilizados para a concessão do certiorari, tais como a presença de amicus curiae, a existência de divergência jurisprudencial, a declaração de inconstitucionalidade de lei federal, além da relevância da questão em debate. [27]
No direito alemão, o recurso de revisão dirigido à Corte Federal de Justiça (Bundesgerichtshof – BGH) somente é concedido "quando a questão jurídica for dotada de significação fundamental ou quando o aperfeiçoamento do direito ou a uniformização da jurisprudência requer o pronunciamento da BGH." [28] Tal regulamentação é resultado de uma reforma processual na qual se aperfeiçoou o instituto da revisão de modo a voltar-lhe, fundamentalmente, para a uniformização e a racionalização do direito alemão em casos cíveis. [29]
O certiorari argentino, que exerceu influência direta na criação da repercussão geral brasileira, [30] foi implementado pela Lei n.º 23.774 de 1990, e determina que a Corte Suprema, segundo sua "discricionariedade sã", poderá rechaçar o recurso extraordinário por falta de lesão federal suficiente ou quando as questões discutidas carecerem de substancialidade ou de transcendência. [31]
Cabe destacar que o critério da transcendência, identificado com a gravidade institucional, sofreu uma reviravolta em sua aplicação a partir da referida lei, já que antes de seu advento:
a gravidade institucional serviu para incluir recursos extraordinários, inclusive quando carentes de alguns requisitos de cabimento, ao passo que, sucessivamente à edição da Lei 23.774, a ausência de gravidade institucional passa a ser meio ou critério para não admitir recursos extraordinários. [32]
Nota-se, também, que a Corte Suprema argentina já "firmou o entendimento de que todas as causas que envolvam a declaração de inconstitucionalidade de uma norma jurídica são dotadas de transcendência." [33]
Tais exemplos trazidos do Direito Comparado – um dos campos de pesquisa de maior importância na ciência jurídica atual, pois tem o condão de "esclarecer o Direito vigente e oferecer indicações úteis e fecundas ao direito que está em elaboração" [34] –, corroboram com a visão de que o Brasil andou bem, apesar de atrasado, ao introduzir o instituto da repercussão geral como um requisito de admissibilidade do recurso extraordinário. [35]
3 – A aplicação dA repercussão geral
A repercussão geral é uma expressão que – como diversas outras no mundo jurídico – não comporta uma definição. Quem se atreve a fazê-lo está fadado a reduzir ilegitimamente a sua aplicação ou a cair em abstrações que em pouco acrescentarão. [36] Trata-se de um conceito vago (ou indeterminado) que "deve ser objeto de decantação permanente, de que resultará com o tempo, mosaico rico e variegado de matizes." [37]
A opção legislativa por um conceito indeterminado se mostra louvável por ser operacional – a despeito de mitigar o grau certeza e, consequentemente, de segurança jurídica. Sua utilização "consiste numa técnica legislativa marcadamente afeiçoada à realidade em que hoje vivemos, que se caracteriza justamente pela sua instabilidade, pela imensa velocidade com que [...] se alteram as ‘verdades’ sociais." [38] Assim, uma situação que hodiernamente poderia ser caracterizada como destituída de repercussão geral, pode, sem o menor constrangimento, com o passar do tempo e com a mudança/ampliação dos reflexos que essa mesma situação possa gerar na sociedade, vir a ser considerada como detentora de repercussão geral.
A repercussão geral é identificada com o critério de transcendência, de modo a tornar imprescindível que todos os recursos extraordinários versem sobre interesses que vão além do interesse das partes litigantes. Disto surgem duas consequências de extrema relevância: a) o Supremo Tribunal Federal deixa de ser uma instância revisora de conflitos cuja solução trata somente de interesses subjetivos das partes e passa a "dedicar-se mais acentuada e qualificadamente ao desempenho da sua alta missão de tribunal de estrito direito, nas questões constitucionais fundamentais para o País" [39]; b) a maximização da feição objetiva do recurso extraordinário, que, embora instrumento de controle difuso de constitucionalidade das leis, tem servido, também, ao controle abstrato – onde a análise da constitucionalidade do ato é feita em tese. [40]
Rodolfo Camargo Mancuso, ao tratar dos contornos que tal conceito vago deve ensejar, clarifica que:
parece razoável entender-se que um tema jurídico [...] apresentará repercussão geral quando sua resolução for além do interesse direto e imediato das partes, assim, transcendendo-o, para alcançar, em maior ou menor dimensão ou intensidade, um expressivo segmento da coletividade (v.g., oferta gratuita de medicação, pela rede pública, aos HIV soro-positivos pobres); ou um dado setor produtivo (v.g., proibição de exportação de carne por suspeita de febre aftosa); ou, mesmo, a inteira coletividade (v.g., comercialização de produto geneticamente modificado). [41]
Muitos casos serão, desde logo, identificados como portadores de repercussão geral, sem que seja necessária sua demonstração exaustiva. Sua percepção não terá sido submetida a um processo científico consciente, senão que predominantemente de modo intuitivo – sendo que intuitiva é aquela realidade que prescinde de uma demonstração minuciosa. [42]
É notável a importância do papel a ser desenvolvido pelo Supremo Tribunal Federal, já que somente ele é competente para dizer o que tem ou não repercussão geral. Suas decisões fornecerão parâmetros fundamentais à compreensão do instituto, de modo que o seu uso "durante um espaço de tempo razoavelmente longo, pode fazer com que ele deixe de ser vago, ou, pelo menos, que diminua o grau de sua indeterminação" [43], sem, contudo, dar "uma pretendida solução acabada e hermética de ulteriores desenvolvimentos". [44]
Fato é que a decisão a ser dada pelo Tribunal, a despeito de ter um caráter eminentemente político [45] – o que vai ao encontro da tendência de um Poder Judiciário mais ativo e garantidor de direitos fundamentais [46] –, não pode ser caracterizada como sendo um ato discricionário. Não o é, pois ao se indagar sobre a existência de repercussão geral em determinado caso, ao STF não é dada a possibilidade de escolher entre duas alternativas possíveis [47] (como se dá em um ato discricionário de direito público, em que são consideradas a conveniência e a oportunidade para a realização de determinado ato), cabendo-lhe, sim, encontrar a melhor solução [48] para o caso, através do exercício da lógica do razoável [49].
Esse amplo poder decisório concedido ao STF – agravado pela possibilidade de seu controle ser restrita (sendo aptos, apenas, os embargos declaratórios e a ação rescisória [50] para atacarem a decisão) – é extremamente delicado, pois admitir que ele "adote uma conduta inescrupulosa na definição daquilo que deva, ou não, ser considerado questão de repercussão geral é negar a própria ideia de direito." [51]
3.1 – Aspectos processuais
A norma instituidora da repercussão geral (art. 102, § 3º/CF) é clara ao determinar, de forma cogente, que todos os recursos extraordinários devem apresentar tal requisito. Tem ela o condão de reduzir a elevadíssima carga de trabalho do STF ao atuar como um filtro indispensável à admissão do referido recurso.
Sua averiguação se dá através de uma deliberação preliminar "inconfundível com a admissibilidade propriamente dita (com a verificação de cabimento/enquadramento do recurso nas hipóteses do art. 102 da CF e legislação ordinária)" [52],queé juízo preambular já dentro do procedimento do julgamento do recurso.Aquela não influencia na admissão propriamente dita, nem no julgamento de mérito do recurso.
O constituinte derivado estabeleceu que o STF somente poderá recusar a admissão do recurso extraordinário ao negar a existência de repercussão geral pela manifestação de dois terços de seus membros. Tem-se, portanto, que o Tribunal manifesta-se pela recusa, não pela existência de repercussão geral, sendo que sua omissão acarreta a superação automática do filtro. [53] Além disso, o referido quorum da decisão denegatória (dois terços), caracterizado por Arruda Alvim como prudencial, foi estabelecido "com vistas a ser mais firme a legitimidade da recusa". [54]
Ao mandamento constitucional, contudo, não foi conferido aplicabilidade – trata-se de norma de eficácia limitada [55] – enquanto não sobreveio legislação regulamentadora do instituto. Tal só se deu com o advento da Lei n.º 11.418 de 19 de dezembro de 2006, que acrescentou os arts. 543-A e 543-B ao Código de Processo Civil (CPC) [56], e com a adaptação do RISTF através da Emenda Regimental nº 21, publicada em 3 de maio de 2007. [57]
O receio de o legislador ordinário esvaziar o instituto não se concretizou. Muito pelo contrário. Ressalta-se, de início, que, ao discipliná-lo, não o conceituou, nem mesmo enumerou as hipóteses de existência de repercussão geral [58], "dado que, se o fizesse, sem deixar espaço para o STF, certamente acabaria por engessar o sentido do Texto Constitucional." [59] Apenas estabeleceu que "para efeito da repercussão geral, será considerada a existência, ou não, de questões relevantes do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico, que ultrapassem os interesses subjetivos da causa" (art. 543-A, §1º / CPC).
Seguindo o mandamento constitucional de que a análise da preliminar deve ser objeto de apreciação exclusivamente pelo STF, o legislador clarificou a exigência ao determinar que "o Supremo Tribunal Federal, em decisão irrecorrível, não conhecerá do recurso extraordinário, quando a questão constitucional nele versada não oferecer repercussão geral" e que "o recorrente deverá demonstrar, em preliminar do recurso, para apreciação exclusiva do Supremo Tribunal Federal, a existência da repercussão geral" (respectivamente: art. 543-A, caput e 543-A, §1º / CPC). Claro está que ao órgão emitente da decisão recorrida, onde o recurso extraordinário deve ser interposto, não cabe a análise de existência ou não de repercussão geral na causa, mas simplesmente verificar a formalidade de ter ou não ter sido argüida a referida preliminar e, em sendo positivo, deixar a análise de sua pertinência ao STF.
A regulamentação trouxe valorosa contribuição para a racionalização do sistema. Para evitar a multiplicação de julgamentos sobre matéria idêntica, da qual já se tenha estabelecido em decisão anterior a inexistência de repercussão geral, autorizou-se ao STF indeferir liminarmente tais recursos (art. 543-A, §5º / CPC). Algo que em muito contribui para a diminuição do volume de trabalho na Corte, mas que, por outro lado, pode tornar o instituto hermético e inapto a evoluções indispensáveis à aplicação de conceitos indeterminados. É certo que tal dispositivo legal faz uma ressalva sobre a chamada "revisão de tese", mecanismo que deveria ser utilizado para alterar o entendimento do STF sobre a inexistência de repercussão geral em determinada matéria. Sabe-se, porém, que ele ainda carece de regulamentação regimental e, consequentemente, possui tímida aplicabilidade.
A multiplicidade de recursos com fundamento em idêntica controvérsia mereceu atenção privilegiada do legislador ordinário. Aos tribunais de origem foi confiado um importante papel de contenção desses recursos. Dispõe o art. 543-B do CPC, in verbis:
§ 1º Caberá ao Tribunal de origem selecionar um ou mais recursos representativos da controvérsia e encaminhá-los ao Supremo Tribunal Federal, sobrestando os demais até o pronunciamento definitivo da Corte.
§ 2º Negada a existência de repercussão geral, os recursos sobrestados considerar-se-ão automaticamente não admitidos.
§ 3º Julgado o mérito do recurso extraordinário, os recursos sobrestados serão apreciados pelos Tribunais, Turmas de Uniformização ou Turmas Recursais, que poderão declará-los prejudicados ou retratar-se.
§ 4º Mantida a decisão e admitido o recurso, poderá o Supremo Tribunal Federal, nos termos do Regimento Interno, cassar ou reformar, liminarmente, o acórdão contrário à orientação firmada.
Vislumbra-se, portanto, duas possibilidades quanto ao(s) recurso(s) paradigma selecionado(s) e enviado(s) à Corte: a) que não seja reconhecida a repercussão geral; b) e, por óbvio, que o STF reconheça a existência de repercussão geral. Na primeira hipótese, os recursos sobrestados – por versarem sobre matéria idêntica à do(s) paradigma(s) – serão considerados automaticamente não admitidos (§ 2º, art. 543-B / CPC), sem que seja necessária a sua remessa ao STF. O próprio Tribunal de origem está autorizado a fazê-lo.
Já no caso de o STF reconhecer a existência de repercussão geral, admitir, e julgar o mérito do(s) recurso(s) paradigma, a decisão exarada pode ser no mesmo sentido ou contrária à dos recursos sobrestados. Estando em consonância, os sobrestados deverão ser declarados prejudicados (§ 3º, art. 543-B / CPC). Caso elas se divirjam, os tribunais a quo poderão acatar a decisão da Suprema Corte e se retratarem (§ 3º, art. 543-B / CPC), ou poderão manter a sua decisão divergente e admitir o recurso, para que o próprio STF se pronuncie (§ 4º, art. 543-B / CPC). Neste caso o STF "poderá cassar ou reformar, liminarmente, o acórdão contrário à orientação firmada" (§ 4º, art. 543-B / CPC), ou, se assim entender, reformar o entendimento por ele apresentado e não acolhido pelo tribunal a quo.
Esse sistema elaborado pelo legislador ordinário deixa claro que as decisões de mérito exaradas pelo STF em recurso extraordinário – em causas que, obviamente, são reconhecidas a repercussão geral – não possuem caráter vinculante, [60] já que é permitido ao órgão prolator da decisão recorrida manter a sua orientação divergente. Possibilitando-se, por óbvio, que o STF dê a palavra final e, possivelmente, reafirme o seu posicionamento.
Confirma-se uma tendência verificada no direito processual pátrio que busca a valorização da jurisprudência dos tribunais superiores, com a elevação de meios concedidos aos seus membros para barrarem recursos em confronto com súmula ou jurisprudência dominante do respectivo órgão. [61]
Cabe destaque, também, ao § 6º do art. 543-A do CPC, que é revelador da atenção do legislador ordinário às evoluções do direito processual constitucional. Nele se dispõe que o relator poderá admitir a manifestação de terceiros na análise da repercussão geral. Algo que denota a nova dimensão assumida pelo recuso extraordinário – que deixa de ser um recurso que interessa somente as partes envolvidas no processo para reverberar nacionalmente –, aliado à abertura da Corte às ideias de diversos segmentos sociais na defesa de seus interesses, que, atuando como amicus curiae, promovem uma verdadeira democratização nas decisões do STF.
3.2 – O Supremo Tribunal Federal e a racionalização do recurso extraordinário
A regulamentação da repercussão geral pela Lei nº 11.418/07 estabeleceu, em seu art. 3º, a competência para o STF dispor em seu Regimento Interno as normas necessárias à sua execução.
Essa menção expressa ao RISTF foi feita pelo mesmo diploma normativo em outras cinco oportunidades. O que, de início, já apresenta a importância conferida à regulamentação a ser feita pelo Tribunal. Regulamentação de tamanha relevância que ensejou a determinação de que a preliminar formal de repercussão geral só poderia ser exigida nos recursos extraordinários contra decisões cuja intimação tivesse ocorrido a partir do dia 3 de maio de 2007, data da publicação da Emenda Regimental n.º 21. [62]
Tal emenda veio estabelecer o procedimento do exame da repercussão geral no âmbito do Supremo Tribunal Federal. Instituiu-se, com ela, o salutar Plenário Virtual. Alternativa encontrada ante a inviabilidade de se submeter ao já abarrotado plenário do Tribunal a análise de todas as preliminares de repercussão geral que chegassem à Corte. Com o Plenário Virtual o Relator submete aos demais Ministros, por meio eletrônico, uma cópia de sua manifestação sobre a existência, ou não, de repercussão geral (art. 323/RISTF). Pares que devem encaminhar-lhe, no prazo de 20 dias, suas manifestações sobre tal requisito – prazo que, se for decorrido sem manifestações suficientes para a recusa do recurso, 8 votos, acarreta o reconhecimento da repercussão geral (art. 324/RISTF). [63]
Essa inovação prestou contribuição inestimável para o sucesso do instituto, pois a racionalização por ele buscada não se viu travada pela necessidade de reunião pessoal dos Ministros para a apreciação da repercussão geral.
O Plenário Virtual foi desenvolvido em harmonia com o que estabelece o art. 93, IX da Constituição Federal: a necessidade de os julgamentos do Poder Judiciário serem públicos e suas decisões fundamentadas. [64] No sítio [65] do Supremo Tribunal Federal fica disponibilizado, em tempo real, o posicionamento de cada Ministro sobre as votações em curso. Local onde também são disponibilizadas as fundamentações dadas às suas respectivas manifestações.
No tocante à fundamentação, destaca-se a sistemática do Plenário Virtual que impinge haver fundamentação de ao menos um Ministro para cada posicionamento referente à questão em análise. Assim, o Relator já submete o caso ao Plenário Virtual com a fundamentação do seu voto, sendo que os Ministros que o acompanham estão dispensados de fundamentarem os seus. Já o primeiro que divergir do posicionamento original está compelido a fundamentar sua decisão, sendo que os próximos que o acompanharem estão dispensados de novas fundamentações. Com isso, qualquer que seja o resultado vencedor, será ele fundamentado [66] – garantia que visa possibilitar à comunidade perscrutar o grau de imparcialidade e o conhecimento de causa [67] que geraram a decisão. Afinal:
A grandeza do Poder Judiciário e a efetividade de sua atuação em defesa do Estado de Direito estão diretamente relacionados com a aceitação e respeito de suas decisões pela opinião pública e por seu reconhecimento como guardião supremo da Constituição e dos direitos fundamentais. [68]
Além de se poder acompanhar em tempo real o que está sendo julgado e qual o resultado parcial do Plenário Virtual, o sítio do Supremo Tribunal Federal – acolhendo o disposto no art. 329 do RISTF – contém banco de dados que reúne todas as decisões já tomadas pela Corte sobre repercussão geral – tanto as matérias que tiveram a repercussão geral reconhecida [69], como as demais, as sem repercussão. [70]
Das 297 matérias submetidas ao exame da repercussão geral até 1 de setembro de 2010, somente em 87 casos ela não foi reconhecida – aproximadamente 29,3% do total. [71] Neste montante encontram-se diversos processos que, a despeito de tratarem sobre matéria que potencialmente transcenda aos interesses subjetivos das partes, versam sobre matéria infraconstitucional – onde eventual ofensa à Constituição Federal se dá somente de maneira indireta ou reflexa –, e como a repercussão geral a ser demonstrada no recurso extraordinário deve ser da questão constitucional discutida no caso (art. 102, §3°/CF), tais recursos, além de não poderem ser admitidos por não se enquadrarem nos requisitos do art. 102, III/CF, não podem nem mesmo ter a repercussão geral reconhecida. [72]
Das matérias em que se reconheceu a repercussão geral, incluem-se: os recursos que impugnam decisões contrárias a súmula ou jurisprudência dominante do STF, que, de acordo com o art. 543-A, §3º/CPC, possuem, ipso facto, repercussão geral; [73] recursos em que a decisão recorrida se coaduna com o entendimento pacificado pelo STF, mas que, tendo a repercussão geral reconhecida e reafirmando-se a jurisprudência, possibilita que a eles sejam aplicados os efeitos do novel instituto; [74] além de casos diversos que anseiam por um pronunciamento do Tribunal. [75]
O fato de em 210 matérias ter se reconhecido o pressuposto da repercussão geral – aproximadamente 70,7% do total analisado – é revelador de que tem sido relativamente pequeno o índice de recursos inadmitidos pela ausência de tal pressuposto. Supor que isso poderia representar o fracasso do instituto é um equívoco sem tamanho. Tal dado demonstra que, ao invés de ser uma barreira, a repercussão geral veio racionalizar os julgamentos do recurso extraordinário, possibilitando que o Tribunal não tenha que se pronunciar diversas vezes sobre matérias idênticas, bastando que sejam selecionados alguns casos representativos da controvérsia para que se emita um único pronunciamento.
O reflexo imediato da inclusão da repercussão geral como pressuposto de admissibilidade do recurso extraordinário pode ser notado nas estatísticas processuais do Supremo Tribunal Federal. No ano de 2006 (último ano sem a efetiva implantação da sistemática da repercussão geral) o número de recursos extraordinários distribuídos foi, como dito alhures, superior a 54.000, próximo dos 56.141 agravos de instrumento. [76][77] Já no ano de 2008 (ano em cujo todo transcurso houve a aplicação da repercussão geral, já que em 2007 tal só se deu a partir de maio) esses números caíram, respectivamente, para 21.531 e 37.783 – praticamente a metade dos de dois anos antes. E em 2009 – último ano já transcorrido em que houve a aplicação do instituto – tais números caíram ainda mais: 8.348 recursos extraordinário e 24.301 agravos de instrumento. [78]
Esse decréscimo vertiginoso nos números do Tribunal se deve fundamentalmente à aplicação da repercussão geral como pressuposto do recurso extraordinário, e de toda a sistemática que ela trouxe consigo. As consequências dessa diminuição são as mais benéficas possíveis: o STF deixa de ser uma instância revisora de conflitos que interessam somente as partes envolvidas no processo e passa a cumprir o papel de verdadeira Corte Suprema, com decisões de grande impacto e que se tornam verdadeiros paradigmas; humaniza-se os trabalhos no Tribunal, dando-se aos Ministros mais tempo para se debruçarem em questões que realmente necessitam do seu pronunciamento; e, por fim, diminui-se a enormidade de processos acumulados no Tribunal, reduzindo-se o tempo de tramitação dos mesmos e encerrando-se a histórica tradição de o STF julgar menos causas que recebe. [79]