3. A licitação como procedimento administrativo e como ato-condição
Grande parte dos doutrinadores brasileiros que tratam do Direito Administrativo, abordam o tema referente às licitações públicas. Pode-se encontrar na disciplina pertinente diversas definições para o termo licitação. Apesar de pequenas variações, elas preservam os elementos essenciais, como pode ser observado nos conceitos estabelecidos por alguns dos seus grandes estudiosos.
Segundo caracterização apresentada por Maria Sylvia Zanella Di Pietro, aproveitando-se, parcialmente, do conceito de José Roberto Dromi (1972:92),
pode-se definir licitação como o procedimento administrativo pelo qual um ente público, no exercício da função administrativa, abre a todos os interessados, que se sujeitem às condições fixadas no instrumento convocatório, a possibilidade de formularem propostas dentre as quais selecionará e aceitará a mais conveniente para a celebração de contrato. [10]
José Cretella Júnior proclama que licitação é "o processo geral, prévio e impessoal empregado pela Administração para selecionar, entre várias propostas apresentadas, a que mais atende ao interesse público." [11]
Já Adilson Abreu Dallari, citando Enrique Sayagues Laso, conceitua licitação como "procedimento relativo ao modo de celebrar determinados contratos, cuja finalidade é a determinação da pessoa que ofereça à Administração condições mais vantajosas, após um convite a eventuais interessados para que forneçam propostas, as quais serão submetidas a uma seleção." [12]
Definição detalhada do termo pode ser encontrada na obra de Hely Lopes Meirelles, qual seja,
procedimento administrativo mediante o qual a Administração Pública seleciona a proposta mais vantajosa para o contrato de seu interesse. Visa a propiciar iguais oportunidades aos que desejem contratar com o Poder Público, dentro dos padrões previamente estabelecidos pela Administração, e atua como fator de eficiência e moralidade nos negócios administrativos. É o meio técnico-legal de verificação das melhores condições para execução de obras e serviços, compra de materiais, e alienação de bens públicos. Realiza-se através de uma sucessão ordenada de atos vinculantes para a Administração e para os licitantes, sem a observância dos quais é nulo o procedimento licitatório e o contrato subseqüente. [13]
Observa-se, portanto, que a licitação, para os autores supracitados, consiste em procedimento administrativo, definido por Celso Antônio Bandeira de Mello como:
uma sucessão itinerária e encadeada de atos administrativos que tendem, todos, a um resultado final e conclusivo. Isto significa que para existir o procedimento cumpre que haja uma seqüência de atos conectados entre si, isto é, armados em uma ordenada sucessão visando a um ato derradeiro, em vista do qual se compôs esta cadeia, sem prejuízo, entretanto, de que cada um dos atos integrados neste todo conserve sua identidade funcional própria, que autoriza a neles reconhecer o que os autores qualificam como 'autonomia relativa'. Por conseguinte, cada ato cumpre uma função especificamente sua, a despeito de que todos co-participam do rumo tendencial que os encadeia: destinarem-se a compor o desenlace, em um ato final, pois estão ordenados a propiciar uma expressão decisiva a respeito de dado assunto, em torno do qual todos se polarizam. [14]
Pela leitura das definições apresentadas, observa-se que, para atingir seus fins, a licitação precisa concretizar uma série de atos impostos por lei, caracterizando-se como procedimento administrativo. O cumprimento dos atos e de todas as formalidades legais promove a instrução necessária à decisão final (escolha da melhor proposta), celebração do contrato e, finalmente, à execução da ação administrativa.
Há, porém, corrente doutrinária que defende a licitação como espécie de ato-condição [15].
José Cretella Júnior, distinguindo o ato preparatório da adjudicação do contrato, aduz que aquela compreenderia "uma operação preliminar, ato jurídico que condiciona a regularidade do exercício da competência da autoridade pública autorizada a concluir o contrato. Trata-se de um ato-condição. É uma operação complexa, constituída de vários atos jurídicos, todos da mesma natureza jurídica de atos-condições. São os atos preparatórios da adjudicação. Reserva-se a palavra adjudicação para o último ato desta operação, para a proclamação do adjudicatário". [16]
Por seu turno, Gaston Jéze, também pugnando pela distinção entre adjudicação e contrato, conclui resultar fácil determinar, de forma precisa:
la natureza jurídica de la operación administrativa da adjudicación. Es un acto-condición unilateral. En otros términos: la adjudicación es un acto jurídico que condiciona la regularidad del ejercicio de la competencia de la autoridad pública autorizada para concluir el contrato. La adjudicación no crea ninguna situación jurídica individual, ni general. Según las leyes y reglamentos, la competencia de los agentes públicos encargados de celebrar un contrato, sólo debe ejercese después de la operación de adjudicación, y ésta debe realizarse en determinada forma.
La adjudicación es la realización de esta condición de ejercicio de la competencia. Se trata de un acto-condición en el sentido técnico de la expresión. Este acto-condición es, por lo demás, una operación compleja, que comprende varios actos jurídicos que tienem todos la misma naturaleza jurídica de actos-condiciones: es lo que, en la prática, se llama los actos preparatorios de la adjudicación. Se reserva la palabra ‘adjudicación’, para el último acto de esta operación, para la proclamación del adjudicatario. [17]
Há de se lembrar, não obstante, que "o ato condição não cria situação subjetiva: tão só determina a incidência de uma situação geral e objetiva sobre alguém que destarte ingressa em regime comum aos demais indivíduos colhidos sobre essa situação geral. Por exemplo: o ato de aceitar cargo público acarreta a inserção do sujeito na situação geral de funcionário, situação que é a mesma para os funcionários em geral". [18]
Por essa razão, em que pese a notoriedade dos administrativistas antes citados, acredita-se que razão assiste a Adilson Abreu Dallari, para quem a classificação do instituto da licitação como espécie de ato-condição não representa o melhor entendimento sobre a matéria.
Segundo Dallari, o ato-condição seria um ato de atribuição, cuja alteração promovida na ordem jurídica seria colocar uma pessoa determinada dentro da esfera de abrangência de regras gerais que não a atingiriam se ele não fosse praticado, ao passo que, na licitação, ocorreria exatamente o contrário: ela não coloca um indivíduo em uma situação genérica, e sim atribui uma situação individual a alguém escolhido dentre um grupo de ofertantes. Ao iniciar-se a licitação temos uma categoria geral de licitantes, e após o seu término, como seu resultado jurídico, passamos a ter um determinado contratante com a Administração. [19]
Com efeito, no magistério de Lúcia Valle Figueiredo, "a Administração, ao adjudicar, apenas formaliza o julgamento, emite provimento administrativo ao declarar que o licitante ‘X’, ganhador da licitação, constituiu-se na situação de proponente único perante ela". [20]
Ou seja, depois da classificação, o licitante passa a gozar de posição individuada perante os demais licitantes e terá o direito de ser proclamado vencedor da licitação, caso tenha sido classificado em primeiro lugar. [21] Logo, ao contrário de fazer ingressar o interessado em uma situação geral e impessoal preexistente, o que se tem, por resultado de uma licitação, é justamente a individuação do licitante perante a Administração. (A não ser, naturalmente, que se conceba que todos os indivíduos inscritos no certame tenham o direito, ao final, de serem contratados pela a Administração – o que, no entanto, por força da legislação brasileira [22], não se faz possível) [23].
Por outro lado, cumpre gizar que a licitação não se resume só à adjudicação. Ao revés, como já se demonstrou, trata-se de um conjunto de atos ordenados e sucessórios que leva à satisfação de um determinado fim. No procedimento licitatório, cada ato detém importância fundamental para a realização do contrato pretendido pela Administração. Para tanto, basta observar que, no Brasil, a própria Lei 8.666/93, em seu art. 43, descreve o trâmite através do qual se desenvolve a licitação até a homologação e a adjudicação (inciso VI), destacando-se as fases de habilitação dos participantes (inciso I) e de julgamento das suas propostas (incisos III, IV e V). Outrossim, vale lembrar que o art. 41, § 4º, do diploma mencionado, refletindo o caráter procedimental da licitação, bem prescreve que a inabilitação do licitante importa preclusão do seu direito de participar das fases subseqüentes.
Daí porque pode-se dizer que a natureza jurídica da licitação é a de procedimento administrativo com fim seletivo consistente em um "conjunto ordenado de documentos e atuações que servem de antecedente e fundamento a uma decisão administrativa, assim como às providências necessárias para executá-la" [24].
Aliás, como tal procedimento se desenvolve em contraditório, pode-se dizer que se trata, em verdade, de um processo administrativo.
4. Conclusão
Antes da Constituição Federal de 1988, havia uma enorme controvérsia sobre a competência para legislar sobre licitação, o que culminou na formação de duas correntes doutrinárias: uma entendendo que licitação era matéria de direito financeiro, a respeito da qual cabia à União estabelecer normas gerais e, aos Estados, as normas supletivas; e outra vendo a licitação como matéria de direito administrativo, de competência legislativa de cada unidade da federação. A Constituição Federal de 1988 pôs fim à controvérsia, ao dar competência privativa à União para legislar sobre "normas gerais de licitação e contratação, em todas as modalidades, para a administração pública, nas diversas esferas de governo", conforme expressa o seu art. 22, XXVII, ao passo que no art. 24, I, afirma a competência da União para expedir normas gerais de direito financeiro. Em razão da importância do tema, o presente trabalho buscou discorrer sobre as principais correntes doutrinárias acerca da natureza jurídica da licitação.
No que tange à análise da Lei 8.666/93, editada pelo Congresso Nacional, concluímos que a União extrapolou a sua competência legislativa, eis que não se limitou a apenas estabelecer normas gerais de licitação. Assim, como bem frisou Adilson Abreu Dallari, os Estados e Municípios deveriam respeitar apenas as normas gerais contidas nesta Lei, tendo em vista possuírem diversas peculiaridades, devendo a mesma ser acatada, sem restrições, apenas pelos órgãos e entidades da Administração Federal.
Por fim, quanto à natureza jurídica do instituto da licitação, pode-se afirmar que se trata de processo administrativo, porquanto consistente em uma série de atos racionalmente organizados, durante o qual as partes envolvidas podem exercer livremente seu direito ao contraditório e à ampla defesa.
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Notas
- Direito Administrativo. 8ª ed. São Paulo. Ed. Atlas, 1997. p. 62
- Curso de Direito Administrativo. 14.ª ed. São Paulo. Ed. Malheiros, 2002. p. 45
- di Pietro, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 8ª ed. São Paulo. Ed. Atlas, 1997, p. 47
- DALLARI, Adilson Abreu. Aspectos Jurídicos da Licitação. 6.ª ed. Rio de Janeiro: Revista Forense, 1999. p. 20-21.
- DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella; RAMOS, Dora Maria de Oliveira; SANTOS, Márcia Walquíria Batista dos; D’ÁVILA, Vera Lúcia Machado. Temas Polêmicos sobre Licitações e Contratos. 5.ª ed. São Paulo: Malheiros, 2001. p. 21.
- Vide JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à lei de licitações e contratos administrativos. 9.ª ed. São Paulo: Dialética, 2002. p. 15.
- Vide ATALIBA, Geraldo. Normas gerais na Constituição – leis nacionais, leis federais e seu regime jurídico, in Estudos e pareceres de direito tributário. V. 3. p. 15. (apud DALLARI, Adilson Abreu. Op. cit. p. 22)
- CRETELLA JÚNIOR, José. Das licitações públicas: (comentários à Lei Federal n.º 8.666, de 21 de junho de 1993). Rio de Janeiro: Revista Forense, 1998. p. 47.
- Op. cit. p. 08.
- Ob. citada. p. 8.
- Curso de Direito Administrativo. 16ª ed. Rio de Janeiro. Revista Forense, 1999. p. 387.
- Aspectos Jurídicos da Licitação. 6.ª ed. São Paulo. Saraiva, 2003. p. 2
- Licitação e Contrato Administrativo. 13.ª ed. São Paulo. Ed. Malheiros, 2002. p. 25.
- Curso de Direito Administrativo. 14.ª ed. São Paulo. Ed. Malheiros, 2002, p. 429.
- Adilson Abreu Dallari, dentre os administrativistas nacionais, menciona José Cretella Júnior e Themístocles Cavalcanti. Do exterior, são citados Alcides Greca e Gaston Jéze (Aspectos jurídicos da licitação. 6. ed., Saraiva: São Paulo, 2003.p. 24-25).
- CRETELLA JÚNIOR, José. Tratado de direito administrativo. Rio de Janeiro: Forense, 1967. v. 3. p. 113.
- JÉZE, Gaston. Pincipios generales del derecho administrativo. Buenos Aires: Depalma, 1950. v. 4. p. 116.
- BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Ato administrativo e Direitos dos Administrados. RT, 1981. p. 106-111.
- 19 DALLARI, Adílson Abreu. Op. cit. p. 16
- FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Direitos dos licitantes. 4. ed., São Paulo: Malheiros, 1994. p. 64.
- Idem. p. 65.
- O art. 50 da Lei 8666/93 dispõe que "a Administração não poderá celebrar o contrato com preterição da ordem de classificação das propostas ou com terceiros estranhos ao procedimento licitatório, sob pena de nulidade".
- Decerto – e ainda com amparo na tese de corresponder a licitação a um procedimento administrativo – entende-se que seria somente na fase de habilitação que se poderiam vislumbrar efeitos correlatos aos de um ato-condição. Isso porque, como ensina Lúcia Valle Figueiredo, "a habilitação introduz o interessado em nova situação jurídica perante a Administração – passa a ter o direito de apresentação de propostas" (o que eqüivaleria, aí sim, a uma situação geral e impessoal). Ainda conforme a mesma autora, "é o ato habilitatório condição para que o interessado se converta em licitante". (Op. cit. p. 48). Mas, ao que se entende, ainda assim não se poderia concluir tratar a licitação, em si mesma, de ato-condição. Conforme analisado, ao seu final é escolhida apenas uma proposta, criando-se situação individualizada para o licitante "vencedor".
- RAFAEKA EBTREBA CUESTA, "Derecho Administrativo", vol. I, p. 249, apud CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 18ª edição. Revista, ampliada e atualizada. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 214.