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Eficácia do trespasse e tutela de credores

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Agenda 10/02/2011 às 16:56

5.Função Social da Empresa e o Princípio da Preservação na Lei de Falências - Lei 11.101 de 2005

Até chegar à elaboração da atual lei de falência e recuperação de empresas, o direito concursal passou por alguns momentos históricos de suma importância para sua evolução. De maneira resumida serão tratados os períodos históricos e seus aspectos fundamentais.

Devido à inexistência de lei que tratasse especificamente do direito concursal, no período romano, o direito concursal era aplicado a todo e qualquer devedor. No direito romano primitivo, o devedor chegava a ser submetido a cárcere privado e trabalhos escravos, até que cumprisse com a sua obrigação. Nessa época o Estado não atuava na autonomia privada, cabendo ao credor a cobrança do débito pela maneira que melhor lhe aprouvesse.

Com o início da intervenção do Estado na economia, foram surgindo institutos a serviço da cobrança: assembléia de credores, administração da massa, classificação dos créditos, etc.

No período da Idade Média, surge o instituto da falência em algumas cidades, principalmente na Itália. Por volta do Séc. XV aparece a chamada concordata mediada pela autoridade estatal, a qual homologava um acordo feito de forma consensual com os credores.

Foi como liquidação do ativo do devedor comerciante insolvente que o direito concursal teve seu ingresso na Idade Contemporânea. No período marcado pelas duas maiores guerras mundiais, em meio a uma crise econômico financeira, a concordata ganhou relevância. Devido à forte presença estatal na economia, ganhou também destaque o lado social da empresa, com a valorização e desenvolvimento dos ramos do direito do consumidor, direito financeiro (atual direito tributário) e direito previdenciário.

Nos Estados Unidos surgiu o primeiro procedimento de recuperação de empresa, no ano de 1867: a chamada Lei de Companhias Ferroviárias. Porém foi no ano de 1934 que foi criado o primeiro diploma de direito estatutário que tratava a respeito da recuperação judicial das empresas.

Na França, o instituto só foi introduzido no ano de 1967 e na Itália apenas nos fins do ano de 1970. Em 1976, em Portugal, foi criado um instituto denominado de "Declaração da empresa em situação economicamente difícil".

Diversos países também no final do século XX buscaram aprimorar suas legislações falimentares para assegurar a continuidade das grandes empresas, para que, ao passar por dificuldades, conseguissem superá-las.

No Brasil, apenas em 9 de fevereiro de 2005, com a Lei 11.101, a antiga concordata foi substituída pelo processo de recuperação. Sebastião José Roque (2005, p. 88-89) comenta em seu livro a mudança de paradigma no Direito Falimentar à época:

"Esse ramo do Direito Empresarial não é olhado com simpatia pelos acadêmicos e mesmo operadores do Direito, sendo raros os especialistas e evitado pela maioria dos advogados. Alegam alguns ser o direito ‘mortuário’, por ser o direito da morte das empresas. Todavia, tanto o direito e como nos seus ramos, há no Direito da Recuperação Judicial muita vibração escondida; ele é pujante, apaixonante. Há nele, por outro lado, profundo conteúdo científico. Acreditamos que a nova impressão deverá causar doravante; não é mais o direito da morte, mas da vida empresas, da recuperação econômica delas ante o estado de crise econômico-financeira." Grifamos.

Muitos são os princípios fundados direta ou indiretamente na Nova Lei de Falências. Um deles é o Princípio da Preservação da Empresa, que se encontra expresso no artigo 47 do diploma:

Art. 47. A recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica.

A preservação da empresa referida no dispositivo é em sentido amplo, alcançando não apenas aos empresários, administradores, credores e devedores, mas principalmente aos interesses de toda comunidade dependente direta ou indiretamente da empresa.

O autor Waldo Fazzio Júnior (2006, p. 89), bem dissertou em sua obra sobre o objetivo econômico da preservação da empresa, considerando a importância da empresa para toda uma sociedade:

"O objetivo econômico da preservação da empresa deve preponderar, em regra, sobre o objetivo jurídico da satisfação do título executivo, se este for considerado apenas como a realização de pretensão singular. O regime jurídico de insolvência não deve ficar preso ao maniqueísmo provado que se revela no embate entre a pretensão dos credores e o interesse do devedor. A empresa não é mero elemento da propriedade privada."

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A função social da empresa fundamenta o novo regime concursal desde as discussões a respeito do projeto de Lei 4.376, de 1993 que precede a nova Lei de Falências. A Mensagem de nº 1.014 de 27/07/2007 em nome do então presidente da República justificava a urgência na reformulação do direito falimentar.

O discurso escrito enviado à Câmara dos Deputados, juntamente com o projeto inicial da Lei de Falências, teve como relator o Deputado Osvaldo Biolchi. As manifestações foram quanto ao mérito e à admissibilidade das 136 emendas de Plenário feitas ao citado projeto.

Inicialmente, na Mensagem 1.014/2007, foi relatada a ineficácia do Decreto-Lei nº 7.661/45 na recuperação de empresas em crise em meio à recessão econômica pela qual passava o país:

Assim, preliminarmente, faz-se necessário destacar a importância que a reformulação de nossa atual Lei de Quebras - que data de junho de 1945 - tem para o momento presente por que passa o País, diante da previsão de baixos índices de crescimento para o nosso PIB nos próximos anos, motivado pela crescente desaceleração da economia brasileira. Este processo recessivo tem inflado as estatísticas de empresas que têm requerido concordata e/ou falência, nos últimos meses, nas principais capitais do Brasil. Assim, o Decreto-Lei nº 7.661/45 já não se mostra tão satisfatório ante às exigências de uma economia extremamente competitiva e sujeita às pressões da globalização dos mercados, onde as antigas fórmulas se apresentam ineficazes e absolutamente anacrônicas.

Juristas de todo o Brasil, como Jorge Lobo, Jorge Canto, Humberto Theodoro Júnior, Cláudio Alvarenga, Cézar Bitencourt e João Teixeira Grande, enviaram suas sugestões, as quais foram posteriormente comentadas no parecer. Afirmou-se que a empresa é a base da economia e sua continuidade é de sobremaneira importante para a sociedade.

Já é consenso em legislações de importantes países a noção de que é a própria empresa que rege a atividade econômica, e sua preservação se constitui na idéia básica, diante de um panorama de crise econômica. Tanto é assim que os autores mais avançados na matéria, como os franceses, cuja Lei recente data de 1985 e já conta com várias modificações, não falam mais nos termos falência e concordata. A nova versão da Lei Francesa fala simplesmente em recuperação ou liquidação de empresas.

Mais adiante, o relator da citada Mensagem, o Deputado Osvaldo Biolchi, destaca o interesse coletivo na perpetuação da empresa:

Com efeito, paralelamente à concretização dos objetivos e aspirações de seus proprietários, a empresa moderna reflete um interesse social maior, pois que ela é agente do desenvolvimento e da estabilidade econômica. Por isso é que convém ao Estado sua sobrevivência e prosperidade, se não por interesse imediato, no mínimo pela sua responsabilidade quanto à proteção do interesse coletivo, representado pelas oportunidades de trabalho, distribuição da riqueza, estabilidade econômica e garantia do adequado fluxo econômico-financeiro, consubstanciado nas inter-relações entre produtores, intermediários, financiadores e consumidores. (Grifos da autora)

Assim, o diploma consagrou a função social da empresa, intimamente ligada ao princípio da continuidade da atividade. A lei criou mecanismos de recuperação, saudavelmente balanceados com a tutela de credores.

Uma vez recuperada de eventual crise, a empresa termina por beneficiar toda a sociedade, política, econômica e, sobretudo, socialmente. Propicia-se a mantença dos postos de trabalho, mercado de consumidores e circulação de riquezas.


6.Conclusões

O Código Civil, ao regular a alienação de estabelecimento empresarial reserva dispositivos que primam pela tutela de credores, combatendo as eventuais e nocivas fraudes, como se verifica com a submissão legal da eficácia do negócio jurídico à prévia publicidade da negociação, bem como a anuência de credores em caso de insolvência. Outro exemplo da tutela são as regras quanto à responsabilidade solidária do alienante com o adquirente, pelo prazo de um ano da celebração do trespasse.

O instituto ganha peculiaridades com a Lei de Falência e Recuperação de Empresas, para os casos em que o empresário ou sociedade empresária alienante se submetem a processo concursal. Nesses casos excepcionais a anuência dos credores é dispensada tendo em vista a função social da empresa.

Outra novidade do diploma da falência é a irresponsabilidade do arrematante em caso de alienação de estabelecimento ou filial de empresa sujeita ao regime de recuperação judicial ou processo falimentar.

Os mecanismos criados pela lei compatibilizam a função social da empresa com a tutela de credores, objetivando ao máximo recuperar as empresas em crise, de modo a impactar o mais brandamente possível a sociedade como um todo.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

HAYNE, Carolina Bittencourt. Eficácia do trespasse e tutela de credores. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2780, 10 fev. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/18429. Acesso em: 27 dez. 2024.

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