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A valorização do trabalho humano como pilar do Estado Democrático de Direito

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Agenda 10/02/2011 às 13:27

Nas últimas décadas, o avanço da tecnologia, a velocidade da comunicação e da informação, a globalização, o neoliberalismo, as alterações nas relações laborais, a degradação do meio ambiente, a prevalência das regras de mercado, tudo nos faz refletir a respeito das promessas da modernidade, que, de certa forma, não restaram cumpridas. O aumento da desigualdade social, a escassez de recursos, a percepção da limitação da ciência indicam o que Boaventura de Sousa Santos ousou chamar de crise epistemológica e social e falência do projeto da modernidade [01]. Tais aspectos estão a implicar uma reformulação intelectual, um repensar sociológico e, sobretudo, uma procura por uma justificação para o atual contexto sócio-econômico mundial [02].

O Estado Democrático de Direito surge como resultado das angústias da modernidade, como uma forma de representação de como a sociedade gostaria de se ver. No entanto, este novo paradigma não se limita a expressar uma vontade ou a manifestar uma utopia. Ele nasce com o propósito de ser implantado; nasce com ideais sonhados e desejados pela comunidade de homens e mulheres que esperam a efetivação material da igualdade, da liberdade e da participação. É nesse novo contexto - de explicitação de conflitos, de crise de instituições e de modelos e de anseios por uma outra realidade - que se deve analisar a questão do princípio do valor social do trabalho, o qual fora erigido pela Constituição de 1988 como fundamento do Estado Democrático brasileiro.

O significado da valorização do trabalho humano, em contraposição à permanência e reprodução de práticas de superexploração do trabalho, incita-nos, então, a refletir acerca das possibilidades de concretização desses novos elementos paradigmáticos. Fala-se isso porque se sabe que os dois paradigmas anteriores, o Liberal e o de Bem-Estar Social, nasceram também com a proposta de solucionar problemas preexistentes, sem, contudo, lograrem êxito. Ambos fracassaram em seu projeto, especialmente, quanto ao primeiro, em relação à dificuldade de se realizarem materialmente as promessas de igualdade e de liberdade idealizadas pelo liberalismo ético; e, quanto ao segundo, em relação ao tratamento conferido aos cidadãos, que se tornaram, a bem da verdade, clientes do Estado, solapando-se a legítima ideia de cidadania.

Portanto, o aprofundamento da ideia de valorização do trabalho humano como fundamento do Estado Democrático deve-nos conduzir à convicção de que tal valorização envolve um amadurecimento histórico desse princípio, que se consubstancia num aprendizado adquirido mediante frustrações passadas, expectativas insatisfeitas e, principalmente, na esperança de sua concretização e superação. Com esse olhar para trás, buscando soluções para o presente, pode-se concluir que, hoje, a busca pelo atual significado desse princípio deve envolver uma análise acurada do passado recente e de uma pesquisa consciente do hodierno contexto mundial.

Nesse sentido, não se pode desconsiderar que o valor social do trabalho abrange, em especial, a ideia de dar ao homem a oportunidade de, exercendo a sua liberdade, optar por um projeto de vida e, por meio do seu trabalho, poder concretizá-lo. Assim, o princípio do valor social do trabalho tem como núcleo também a ideia de liberdade, que é o anseio mais profundo do homem moderno. Não há como se admitir respeitado esse princípio se o homem não é verdadeiramente livre. Porém, o que comumente ocorre nos dias atuais é a real redução do homem a mero fator de produção, que é ainda mais extremada quando se está em face da contemporânea escravidão, descaracterizando o trabalho como efetiva via de acesso à cidadania.

Os dias atuais estão a mostrar a força que o mercado detém para controlar todas as esferas da vida do indivíduo. O mercado, na atual fase do capitalismo, acaba por fazer valer seus princípios como os únicos existentes, os mais coerentes, eficientes e, pior, os únicos possíveis. Diante dessa conjuntura, urge que o Direito assuma seu novo papel: além de organizar e regular as relações econômicas, deve ele também refletir os anseios da sociedade, ou seja, inserir no seio das relações econômicas valores que o mercado, por si só, não os introduziria. Assim, a economia não pode permanecer trabalhando apenas com a lógica da lucratividade e de eficiência. A esta se deve somar o questionamento a respeito de se tais ganhos estão, efetivamente, trazendo benefícios à sociedade.

Essas são apenas algumas das reflexões a que se ousará proceder nas próximas linhas. A fim de melhor embasar tal estudo, será necessária a perquirição acerca do amadurecimento da ideia de sujeito de direitos, o qual ocupa, no Estado Democrático, posição de destaque. Paralelamente a essa pesquisa, será importante que nos aprofundemos na noção de trabalho, traçando uma evolução sobre o seu entendimento, desde a Antiguidade até os dias atuais.

Partindo-se desses conceitos, que são de suma importância para a pesquisa que ora se desenvolve, analisar-se-á a relação do modo de produção capitalista com o bem "força de trabalho", para que, então, se tenham subsídios para a confrontação entre os ideais emancipatórios da atualidade e o regime de superexploração do trabalho no país.

1) O amadurecimento da concepção de sujeito de direitos

O aprofundamento do estudo a respeito do princípio da valorização do trabalho humano não pode estar desvinculado da pesquisa sobre quem titulariza esse direito. Daí a importância de singrarmos nesta seara, partindo-se da evolução do conceito de sujeito de direitos, ou seja, do indivíduo que tem, como parte integrante de seu patrimônio pessoal, um rol de direitos a ele dirigidos e que, sob o atual paradigma de Direito, tem também como correspondente um rol de deveres.

Na realidade, a formação desse rol de direitos passou por um processo histórico complexo, envolvendo, por vezes, a afirmação de certos direitos e, por outras, a sua negação [03]. A construção da noção de direitos fundamentais foi uma aquisição requerida pelo aumento cada vez mais intenso da complexidade e da diferenciação da sociedade. Ou seja, tal teorização foi fruto de uma exigência social, que a depender da época, teve uma diferente formulação e continua, permanentemente, a ser reformulada.

A concepção de sujeito de direitos só foi efetivamente teorizada com o fim da Idade Média e com a construção do primeiro paradigma considerado moderno - o Estado de Direito ou Estado Liberal -, e se fixa durante os outros dois paradigmas que ao primeiro se sucedem: o Estado do Bem-Estar Social e o Democrático de Direito. Na verdade, segundo Menelick de Carvalho Netto [04], a construção dessa ideia só foi possível a partir do desenvolvimento de intuições da moral individual racionalista.

Contudo, anteriormente a essas formulações filosóficas modernas, há um período que Carvalho Netto optou por agrupar em um único paradigma de direito e de organização política, correspondente à Antiguidade [05] e à Idade Média. Durante esse longo período, pode-se generalizar ao afirmar que o direito correspondia a um "amálgama normativo indiferenciado de religião, direito, moral, tradição e costumes transcendentalmente justificados e que essencialmente não se discerniam" [06].

Ademais, quanto à Idade Antiga, é importante fazer algumas observações a respeito do regime, à época, legítimo de escravidão. Seja por motivos de guerra, seja por motivos de dívida ou mesmo de estrato social, a escravidão foi permitida em muitas civilizações da Antiguidade. Essa situação vincula-se com o fato de o direito e a política deste período ter um caráter de revelação ou, no caso da Grécia e de Roma, com o fato de estarem bastante ligados ao critério do nascimento. Neste período, como já salientado, a ideia de indivíduo ainda não existia. Cada estrato social, cada camada da sociedade tinha o seu papel bem definido. A distinção entre ser humano e mercadoria, como categoriais opostas, inexistia. A depender do seu status civilitatis, o homem poderia ser identificado como mais uma mercadoria de comércio, com um valor economicamente estimado e avaliado. Ou, nas civilizações em que o comércio não exercia um papel central – como na Grécia-, o escravo era necessário para o desempenho do trabalho, que era visto como uma atividade menor, que não cabia aos nobres.

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Já quanto ao período medieval, continuou-se a identificar o indivíduo a partir do estrato social a que pertencia. Nesse período histórico, o termo "estrato" é substituído pela palavra "ordem", que visava a justificar a divisão da sociedade mediante explicações religiosas. O historiador Hilário Franco Júnior esclarece que os bispos Adalberon de Laon e Eadmer de Canterbury propugnavam a existência da desigualdade entre os homens, que já nasciam no seu devido lugar. Para tanto, defendiam a divisão da sociedade em três ordens "naturais": a dos oratores (os clérigos), os bellatores (guerreiros, cavaleiros, que se pode traduzir também pelos nobres) e os laboratores (os trabalhadores) [07]. Assim, nessas justificações "divinas", a estratificação social era embasada e, portanto, tornada intransponível. De maneira semelhante ao que ocorria na Idade Antiga, a noção de indivíduo era mitigada em relação ao todo de uma ordem. Conforme ressalta Cristiano Paixão Araújo Pinto, "O que é interessante, nessa explicação, é a submissão da pessoa à ordem, ou seja, a diluição da ideia de indivíduo (que ainda não existia no sentido moderno da expressão, no período medieval) numa camada da sociedade" [08].

Esse quadro medieval pôde ser modificado com as inovações dos novos tempos: a quebra da unidade espiritual do Ocidente, a revolução científica e o renascimento florentino, que ocorreram entre os séculos XV e XVII [09]. Apesar de neste período ainda não ter surgido a ideia moderna de indivíduo, essas mudanças significaram posteriormente (século XVIII) substrato importante para a reformulação filosófica da modernidade incipiente, que passou a enquadrar o homem como centro de referência e de onde deveriam partir as inspirações para um refletir sobre o alvorecer dos novos tempos.

Menelick de Carvalho Netto cita também alguns fatores que impeliram a mudança paradigmática, que vão desde

a ação dissolvente do capital, a diluir os laços e os entraves feudais e a fazer que cada vez mais indivíduos livres e possessivos participem do crescente mercado como proprietários, no mínimo, do próprio corpo, ou seja, da força de trabalho que lhes possibilita o comparecimento cotidiano ao mercado como proprietários de uma mercadoria a ser vendida (Marx); passando pelo desenvolvimento das práticas de investigação policial (Foucault, Umberto Eco); pela destruição da cosmologia feudal fechada e hierarquizada, substituída pela isonômica estrutura matemática de átomos que constitui o universo infinito da física de Galileu (Koyré); pelas lutas pela liberdade de confissão religiosa e pela consequente distinção e separação das esferas normativas da religião, da moral, da ética social e do direito (Weber), etc [10].

Com a formulação do novo paradigma, o direito deixa de ter a característica antiga de manter os privilégios de certas castas. Agora, ele passa a ter o intuito de ser geral e abstrato, devendo ser aplicado a todos os homens, que, na modernidade insurgente, são formalmente considerados iguais, "porque proprietários, sujeitos de direitos, devendo-se pôr fim aos odiosos privilégios de nascimento" [11].

Surge, pois, a partir da luta contra o Absolutismo, o movimento constitucionalista, que marcará toda a modernidade. Com isso, e levando-se em conta a diferenciação funcional [12] por qual passou a sociedade do século XVIII, surge o primeiro paradigma moderno: o Estado Liberal, ao qual sucedeu o de Bem-Estar Social e o presente, Estado Democrático de Direito. Considerando-se que as características de cada paradigma já tenham sido bem debatidas e, portanto, já assentadas nos meios acadêmicos, não convém que aqui se repitam essas ideias, por ora, bastante sedimentadas. Assim, urge apenas que destaquemos os aspectos de cada paradigma no que diz respeito à concepção de sujeito de direitos.

No primeiro paradigma moderno, os direitos assumiram uma perspectiva liberal e, portanto, representaram uma evolução quanto à garantia de liberdades negativas, especialmente relativas ao direito à liberdade, à propriedade e à igualdade de tratamento pela lei. Ao Estado restou apenas o papel de regular o respeito a tais garantias, sendo-lhe vedada a indevida interferência nas relações sociais, as quais deveriam ser equilibradas tão-somente pelo mercado. Aqui, portanto, reconhece-se cada indivíduo como sujeito de direitos, mas ignora-se a existência de um grande desequilíbrio nas relações quanto ao poder.

A liberdade, então, transforma-se em real possibilidade de exploração do mais fraco pelo mais forte, solapando-se a ideia inicial de igualdade, já que o Estado não poderia intervir nessas relações. Assim, esse desequilíbrio gerou uma série de conflitos e revoltas sociais, acentuadaspela Revolução Industrial inglesa, tais como o surgimento de movimentos socialistas e anarquistas e a organização da sociedade, especialmente dos trabalhadores, em associações e sindicatos [13]. Essa série de elementos acabou por desencadear a crise do modelo do Estado Liberal.

Visando a corrigir as discrepâncias e os abusos proporcionados pelo modelo paradigmático até então vigente – que permitiu "a maior exploração do homem pelo homem de que se tem notícia na história" [14] –, emergira a necessidade de uma reformulação de pensamento, que deu ensejo às constituições sociais do século XX, inauguradoras do Estado do Bem-Estar Social.

A novel concepção de mundo e de Estado propalava a efetivação material do direito à igualdade, que antes havia sido garantida apenas formalmente. Isso porque se buscava corrigir os erros do recente passado, que permitiram a omissão do Estado em face do cometimento de abusos, sob o manto do respeito ao direito à liberdade. Assim, o novo paradigma demandou a intervenção direta do Estado na vida dos indivíduos, a fim de que ele corrigisse, mediante proteções legais e políticas públicas, a desigualdade de poder e de riqueza entre os indivíduos. Essa nova ideologia foi fruto, segundo Menelick de Carvalho Netto, de um processo difuso do doloroso aprendizado histórico [15], que, se de um lado representou uma evolução de conquistas, de outro demonstrou haver um lado bastante perverso, que implicou a espoliação da dignidade de vários seres humanos.

O novo modelo requeria, então, como medidas de compensação pelos abusos anteriores, direitos coletivos e sociais, como o acesso à saúde, à educação, o direito a uma jornada máxima de trabalho, à greve, à organização sindical, à previdência, demonstrando a conformação de uma nova sociedade de massas.

Contudo, tal experiência também falhou. O processo de materialização de direitos que tanto se ansiava acabou por acarretar a supressão de procedimentos formais, excluindo a participação dos indivíduos e possibilitando a emergência de governos autoritários. A isso se soma o fato de que a absorção pelo Estado de um rol quase infindável de atribuições não produziu o desenvolvimento social esperado e tampouco foi suficiente para reduzir, na medida necessária, as desigualdades sociais. Ainda, como elemento que contribuiu para a derrocada da legitimidade desse paradigma e como consequência da surpreendente burocratização do Estado, pode-se citar a crise de recursos e a eclosão de casos de corrupção no poder [16]. Tudo isso acabou por gerar, ao contrário do esperado, um grande déficit de cidadania e a necessidade de superação desse paradigma.

Com a falência desse projeto social, que, conforme salienta Menelick Carvalho Netto, foi "capaz de produzir, no máximo, clientes e nunca cidadãos como prometera" [17], perceberam-se movimentos idealizadores de um novo paradigma – o Estado Democrático de Direito -, que ainda está em fase de construção e efetivação. A ênfase do novo modelo está, especialmente, na promoção de cidadania e de participação ativa, buscando a compatibilização entre as conquistas materiais do Estado Liberal e as do Estado Social.

A ideia é a de que o fracasso dos paradigmas anteriores, mormente no que tange à garantia efetiva de direitos básicos dos indivíduos, não é suficiente para uma descrença total na possibilidade de se os verem efetivados. Como já mencionado linhas atrás por Carvalho Netto, a História nos ensina a compreender que o caminho traçado pelos homens importa um aprendizado bastante complexo. É percebendo as dificuldades, reconhecendo os erros e se comprometendo com um futuro mais justo e digno que o novo paradigma emerge, demandando uma reflexão profunda a respeito de que mundo gostaríamos de construir. São os anseios por cidadania, dignidade, justiça e equidade que balizam a nova concepção paradigmática. Retira-se também do Estado a responsabilidade exclusiva pela realização desses ideais, uma vez que toda a sociedade deve ser responsável pela construção da solidariedade (o que Boaventura de Sousa Santos denomina de solidariedade a partir do princípio da comunidade [18]).

Dentro dessa perspectiva, o direito assume uma função essencial para a concretização e realização dessas necessidades. Ele deixa de significar um mero conjunto de regras e princípios cujo escopo é regular, coercitivamente, as relações sociais, para se transformar em via de acesso à cidadania.

Na realidade, o direito, sob o novo paradigma, só tem legitimidade se for encarado como "modelo avançado de legítima organização social da liberdade" [19]. Assim, o direito deve corresponder às expectativas dessa nova sociedade solidária que, sob o novo paradigma (e também para a sua efetiva concretização), deve servir de instrumento de inclusão social.

Dentro dessa perspectiva paradigmática, os direitos fundamentais assumem um novo papel que nos desafia a todos. Compreender, consoante adverte Carvalho Netto, que esses direitos, de um lado, promovem a inclusão social, mas, de outro, também promovem a exclusão, é um importante passo para se concretizarem as novas promessas de uma interpretação constitucional cada vez mais aberta [20].

É nesse contexto que se insere o princípio da valorização do trabalho humano. O trabalho, como se verá a seguir, tem um papel de suma relevância para a realização da cidadania, motivo pelo qual a sua exploração e seu comprometimento implicam séria afronta aos princípios do Estado Democrático de Direito e inviabilizam a concretização de suas metas.


2.O trabalho como um bem de significado social

O trabalho humano consubstancia um tema cujo estudo foi e continua sendo realizado por muitos sociólogos, antropólogos, filósofos, juristas e outros estudiosos das ciências sociais, de modo que ele não é concebido de forma uniforme pelos autores. Luigi Bagolini adverte que o estudo da natureza do trabalho é bastante suscetível à contaminação pela ideologia de quem o analisa [21]. Daí a necessidade de se tomar cada conceito a ele dado de maneira cuidadosa.

Pode-se afirmar que foi apenas com pensadores do liberalismo ético que a concepção do trabalho começou a afeiçoar-se, ainda que paulatinamente, à concepção atual. Locke, por exemplo, ao defender a liberdade como direito natural por excelência, e a propriedade como seu sucedâneo máximo, asseverava que esta somente se justificaria se representasse um bem útil à sociedade, que somente poderia ser alcançado mediante o trabalho. O trabalho então passa a ter um sentido, um valor social, consubstanciado na reversão da propriedade em utilidades fruíveis pela comunidade. Dessa sorte, a terra poderia ser acumulada até o limite de seu uso, que representaria o limite da propriedade.

Kant também refletiu a esse respeito, tendo como base de sua teoria a ideia de autonomia: é o homem que dá limites a si próprio, exercendo sua liberdade em sociedade. Assim, cada homem deveria ter a liberdade para desenvolver seu projeto de vida e ajudaria os outros a desenvolverem os seus. Isso estaria no plano dos fins, em que, para ser tornado real, haveria a necessidade da intermediação do direito, o qual garantiria a autonomia dos homens.

A propriedade, então, para Kant, tem um sentido semelhante ao concebido por Locke, reconhecendo-a como expressão da liberdade. No entanto, a propriedade não poderia ser utilizada apenas para a satisfação de necessidades, as quais integrariam a esfera da animalidade do homem. Portanto, para ele, nenhuma atividade humana deveria estar voltada apenas à satisfação de necessidades, mas deveria ela suplantá-las, a fim de que o homem alcançasse a sua liberdade. O trabalho, então, teria essa noção de libertação, como um dos instrumentos de atingimento da autonomia e, por conseguinte, consubstanciaria um dever moral.

Kant, na realidade, é considerado pelo professor Luigi Bagolini como um expoente da "absolutização ativista do trabalho", para o qual há uma certa identificação de conhecimento e atividade, de atividade e trabalho [22].

Ocorre, no entanto, que a conjuntura econômica e a política dos séculos XVIII e XIX implicaram uma reviravolta no âmbito social. Com a construção do constitucionalismo e com a consequente garantia de direitos subjetivos formais aos indivíduos (causando uma grande indeterminação), com a Revolução Industrial e com um grande número de ex-servos dirigindo-se às cidades para trabalhar nas novas indústrias, muitas dessas ideias do liberalismo ético foram incoerentemente absorvidas pelo liberalismo econômico, gerando, conforme já ressaltado linhas acima, a maior exploração do homem pelo homem. O homem seria tão livre que poderia até mesmo contratar a utilização de seu próprio corpo e, por conseguinte, a venda de sua força de trabalho em troca de uma remuneração, ainda que tal atividade fosse desempenhada em condições laborais precárias e degradantes, sem qualquer interferência estatal.

No entanto, com o sofrido aprendizado histórico, pôde-se descobrir a omissão do Estado nessa esfera, pois seria necessária a existência de um contra-peso que visasse a equilibrar as relações de poder tão desiguais como as estabelecidas entre trabalhadores e empregadores. A partir da constatação da existência de sérios conflitos sociais, surge o direito do trabalho que, além de regular as relações laborais, assumiu a proteção ao trabalhador, garantindo-lhe direitos mínimos, e, precipuamente, defendendo o valor social do trabalho.

Não obstante, o desenvolvimento dessa nova disciplina jurídica não significou a pacificação do entendimento a respeito da natureza do trabalho. Ainda hoje persistem divergências, especialmente ideológicas, sobre ela. Exemplar é a concepção desenvolvida pelo italiano Luigi Bagolini que, amparado em Scheler, aduz a inexistência de um valor ou de uma racionalidade no trabalho. Para ele, o trabalho nunca é um fim em si mesmo, mas sim um meio para o atingimento de outras finalidades. Para ele, o trabalho é neutro; e somente terá uma carga moral (qualidade moral) a depender "dos sistemas de fins e de organização moral e jurídica nos quais o trabalho está inserido. Somente quando esses sistemas sejam de alguma forma estáveis e reconhecidos se poderá falar em qualidade moral do trabalho" [23].

Ao contrário dessa concepção, Bagolini cita outro autor, Croce, que, assim como Kant, é considerado pelo professor italiano um outro expoente da "absolutização ativista do trabalho". Para Croce, "não trabalhar é enfastiar-se, definhar, morrer" [24]. A identificação realizada por Kant entre trabalho e atividade encontra sua expressão máxima em Croce. Para ele, se existe um trabalho penoso ou fatigoso, é porque não houve uma perfeita identificação do trabalhador com o seu trabalho. Bagolini critica fortemente essa ideia, por reputar que o trabalho não pode ser considerado pura alegria de viver, pois ele, conforme acima ressaltado, não produziria valores.

Percebe-se, então, que foram apresentadas teorias extremadas a respeito da natureza do trabalho. Acreditamos que, efetivamente, nem todo trabalho é reprodutor de valores sociais e éticos, pois o termo "trabalho" pode designar uma série de atividades, inclusive aquelas classificadas como ilegais. Portanto, não se há de afirmar peremptoriamente que todo trabalho dignifica o ser humano. Acreditamos que o simples fato de o homem exercer uma atividade não é suficiente para, por si só, engrandecer a sua existência. A superexploração do trabalho obviamente não pode ser classificada como uma forma de se dignificar a vida humana. A atividade laboral que verdadeiramente enobrece o homem é aquela denominada por José Cláudio Monteiro de Brito Filho de "trabalho decente". Sem proporcionar ao homem o exercício de seu trabalho em condições decentes é o mesmo que lhe impedir viver com dignidade [25]. Ademais, entenda-se por trabalho decente – no plano individual - aquele de que se destacam as seguintes características: liberdade de escolha do trabalho, igualdade de oportunidades para e no exercício do trabalho, direito de exercer o trabalho em condições que preservem a saúde do trabalhador, direito a uma justa remuneração, direito a justas condições de trabalho (especialmente no que tange à limitação da jornada de trabalho e à existência de períodos de repouso) e a proibição do trabalho infantil [26].

Contudo, também não concordamos com a assertiva segundo a qual o trabalho não é produtor de nenhum valor. Ao contrário, ele consubstancia uma atividade por intermédio da qual o homem almeja ultrapassar a esfera da sobrevivência, das puras necessidades, podendo dedicar-se à participação, que é um dos corolários do Estado Democrático de Direito. Isso, obviamente, não significa que a atividade laboral seja a única produtora de valores sociais, mas é certamente um importante elemento de dignificação da existência humana. Miguel Reale bem se manifestou a esse respeito no prefácio do livro de Luigi Bagolini:

Não entendo como se possa dizer que o trabalho não seja um "criador de valores". Ele já é, por si mesmo, um valor, como uma das formas fundamentais de objetivação do espírito enquanto transformador da realidade física e social, visto como o homem não trabalha porque quer, mas sim por ser essa uma exigência indeclinável de seu ser social, que é um "ser pessoal de relação" [27].

Mais adiante, Reale destaca que, ultrapassadas as ideias de apologia extremada da livre iniciativa - como ocorreu no Estado Liberal -, ou de endeusamento da socialização dos meios de produção, acarretando Estados totalitários, pode-se partir para a consideração de que "O trabalho, com tudo o que dele se origina, passa a significar o patamar donde o homem se valora a si mesmo e se transcende, voltando às suas raízes universais constitutivas" [28].

Ainda na perspectiva da compreensão do significado contemporâneo do termo "trabalho", vale citar a conceituação da antropóloga francesa Marie-Noëlle Chamoux, para quem

O trabalho, no sentido moderno, seria então a ação deliberada do homem sobre a natureza, com o objetivo de satisfazer suas necessidades humanas, as quais não se reduzem às necessidades vitais, mas também incluem todas as coisas valorizadas por uma sociedade determinada, em um momento determinado de sua história (TRADUÇÃO LIVRE) [29].

A questão da introdução, pela antropóloga, do elemento "reconhecimento social do trabalho" é muito importante para a percepção desse fenômeno, na medida em que, quando se fala em valorização do trabalho, pressupõe-se a existência de uma relação complexa estabelecida entre 1) o trabalhador – que desempenha as atividades e a quem se reflete a valorização – e uma coletividade que reconhece a importância do papel exercido por esse trabalhador; 2) o trabalhador consigo mesmo. Quanto a este último, premente é o fato de tal trabalho representar para o próprio trabalhador o exercício de uma atividade que dá, entre outras coisas, sentido à sua existência, ou seja, o trabalho, além de ter significado para a coletividade, tem-no primeiramente para quem o executa.

Outro elemento relevante destacado pela antropóloga refere-se à importância que o trabalho tem não só de suplantação das necessidades vitais do homem. Se o trabalho se restringisse apenas a esse aspecto, a sua relevância restringir-se-ia também ao âmbito individual, no máximo familiar. No entanto, trabalho representa um bem de que, ainda que indiretamente, toda a sociedade pode usufruir. Dentro dessa perspectiva, ressalte-se o pensamento de Hannah Arendt [30] a esse respeito. Para essa autora, as palavras "trabalho" e "labor" não mantêm relação de sinonímia. Em sua visão, o labor é a atividade que se restringe apenas à sobrevivência, a vitória sobre as necessidades, sem implicar um verdadeiro engrandecimento do homem. Já o trabalho seria aquela atividade de criação, de transformação da natureza em prol de toda a sociedade, não importando a atividade exercida, mas o reconhecimento que o trabalhador e toda a sociedade dão à atividade.

Porém, para Arendt, na verdade, a contemporaneidade convive muito mais com o labor que com o trabalho, pois este pressupõe a conscientização, enquanto aquele se refere mais ao desempenho mecânico de uma atividade. Aduz a autora que a redução do trabalho a mero meio acarreta o desempenho de uma atividade restrita ao âmbito do labor. Ademais, ressalta ela que não só a atividade transforma-se em meio, mas também o próprio homem. Já o trabalho seria aquele esforço que basta por si próprio, que é um fim em si mesmo, pois não se limita à vitória sobre as necessidades, mas dirige-se à permanência, à estabilidade.

Com essa análise, podemos agora melhor compreender o papel, insculpido pela Constituição Brasileira de 1988, reservado ao trabalho humano, em conformidade com alguns de seus artigos. Poderemos, assim, apreender como o Estado Democrático brasileiro o considera e, então, perceber as incompatibilidades existentes entre a teoria constitucional e a realidade em que estamos emergidos.

Sobre a autora
Daniella Ribeiro de Pinho

Procuradora Federal, pós graduada em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PINHO, Daniella Ribeiro. A valorização do trabalho humano como pilar do Estado Democrático de Direito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2780, 10 fev. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/18466. Acesso em: 19 nov. 2024.

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