V. A Infidelidade Feminina na Literatura e no Direito da Idade Moderna.
"Todas as famílias felizes são iguais. As infelizes o são cada uma à sua maneira".
Com essa instigante frase inicia-se um dos mais belos e profundos romances da literatura mundial escrito pelo russo Leon Tolstoi: Ana Karenina. A personagem-título é uma aristocrata da Rússia Czarista que apesar de estar totalmente adequada aos valores da época e ter um comportamento moral inabalado, põe o seu modus vivendi em questão ao apaixonar-se pelo impetuoso oficial Conde Vronski. A nossa heroína propõe o divórtcio ao marido que o nega. Decidida a honrar os seus desejos, parte com o amante para a Itália, ficando impedida pelo marido de levar o filho e, inclusive, de visitá-lo. Ao retornar da longa viagem, Ana depara-se com uma San Petersburgo raivosa, virulenta, impermeável a ela. O Conde Vronski também defrontar-se-á com os limites de ascenção social em decorrência de seu envolvimento amoroso transgressor. Em face do alheamento do amante e do desprezo social, Ana atira-se para baixo de um trem. No direito antigo, do Código de Hamurabi, passando pelo direito assírio, dos hititas, deuteronômio e pelo direito romano, a infidelidade feminina é legalmente e efetivamente punida com a morte. No século XIX, quando eram vigentes entre nós as ordenações portuguesas, a morte tinha um encontro marcado com a esposa infiel, havendo a sua previsão em caso de infidelidade feminina. O interessante é perceber o quanto desses discursos foram interiorizados pelas mulheres a ponto de, mesmo sem terem as suas vidas subtraídas pelo Estado, elas mesmas a subtraem de si mesmas, não tanto, aparentemente, pela culpa, mas pela dor da impossibilidade de realizar plenamente o seu desejo e ser aceita pela sociedade a qual pertence. É o que também se passa com Madame Bovary, romance do francês Gustave Flaubert, escrito no séc. XIX e inspirado no suicídio da mulher de um funcionário da área de saúde que suicidou-se após a infidelidade ao marido. Flaubert chegou a ser processado por ter escrito a obra que trata de uma mulher reiteradamente infiel ao seu marido, um médico provinciano, e sem limites para a realização de seus desejos. Por fim, ao ter que enfrentar o abandono do amante e as dívidas decorrentes dos gastos feitos para sustentar as frivolidades de seus romances, Emma Bovary suicida-se bebendo arsênico. O seu marido morre de tristeza diante da perda da esposa amada. Esse roteiro subverte absolutamente o texto legal vigente à época onde a morte da mulher infiel torna insuportável o existir para o marido traído. Mas, atentemo-nos para a vida daquele que promulgou a lei civil na França no século XIX, o famoso Código Civil de Napoleão de 1804, enveredemos, aqui abaixo por entre as sílabas ecoadas de sua voz:
...Enfim, minha incomparável mãezinha, dir-lhe-ei meu segredo: zombe de mim, fique em Paris, tenha seus amantes, que todo o mundo o saiba, não me escreva, nunca mais, e olha o que acontece! Eu lhe amarei dez vezes mais. "..." Estaremos amanhã em Livourne, e, o mais cedo que eu puder, nos teus braços, aos teus pés, sobre o teu seio. Napoleão Bonaparte. [06]
Essas são as palavras epistoladas de um Napoleão apaixonado, em campanha de guerras e conquistas à sua amada esposa Josefina. Napoleão integrava o exército francês e teve em Josefina uma grande aliada para ascender politicamente. Bem articulada entre os generais, Josefina introduziu Napoleão à elite parisiense. Napoleão casou-se com a bela e lépida viúva, fazendo-a imperatriz de França e de sua alma. No entanto, como as campanhas de guerra levavam meses, os boatos sobre a intrepidez carnal de Josefina grassava os salões e era a esses boatos que Napoleão respondia em carta, nos campos de batalha a sua efusiva amada. E foi esse mesmo Napoleão que ordenou fosse elaborado o primeiro Código Civil da modernidade, o Código Civil de Napoleão de 1804. Napoleão tinha como umas de suas grandes preocupações, além da separação do Estado e da Igreja através da elaboração de um Código laico, a limitação dos privilégios da nobreza detentora de terras, herdeira do absolutismo e a proteção dos direitos e dos interesses da burguesia ascendente. Partiu dos princípios da secularização do matrimônio e da independência da lei e da religião, tendo em vista a liberdade de consciência. Os formuladores do Codex deveriam seguir à risca a tradução dos textos romanos, o Corpus Juris Civilis e o Digesto, de forma que pouco restasse à exegese. A propriedade e a família são as instituições basilares de um Direito Civil pós-Revolução Francesa, onde os interesses individuais são preponderantes. Protege-se a família burguesa e a propriedade nos limites dessa família. O Código de Napoleão é rígido quanto à prestação do débito conjugal, os deveres de coabitação e a fidelidade. O jurista francês Planiol (1926) chega a afirmar Au fond, lê mariage n’est pas autre chose que l’ union sexuelle de l’ homme e de la femme. Ou seja, chega-se, inclusive a reduzir-se o escopo do casamento para tão somente o cumprimento do débito conjugal.
Durante a cerimônia matrimonial entre Napoleão e Josefina, Napoleão impede que o papa coroe Josefina, tirando-lhe a coroa das mãos, fazendo-o ele mesmo, demonstrando, assim, a separação entre o poder temporal e o poder espiritual, sendo que o temporal emanaria dele e não do poder divino. Este ato "napoleônico" pode ser contemplado na tela do pintor Jacques-Louis David "A Sagração de Napoleão". Por Josefina não mais poder ter filhos, havendo se casado com Napoleão já viúva, Napoleão dela se separa vindo a contrair segundas núpcias com Maria Luísa de Áustria, irmã da Imperatriz do Brasil, Maria Leopoldina. O que ocorreu depois, todos sabem, Napoleão teve um filho com Maria Luísa e Josefina retirou-se para uma vida reclusa no campo.
O que estava previsto no Código de Napoleão é o que até hoje influencia os diplomas civis ocidentais, neles incluídos os deveres de débito conjugal e de fidelidade no casamento. O que estava na boca de Napoleão ao pronunciar as últimas palavras em seu leito de morte na Ilha de Santa Helena, era o nome de sua amada infiel: "Josefina, Josefina...".
VI. A Infidelidade Feminina na Literatura e no Direito Brasileiro
Se a resposta ao grande enigma literário brasileiro "Capitu, capitulou?" nunca será dada, estando Capitu condenada a rolar pedras perpetuamente para o alto de uma montanha tal qual um Sísifo, Virgília, traiu, gozou e se lambuzou, e muito. Estamos nos referindo a dois dos mais ricos e complexos personagens femininos criados pelo nosso grande escritor Machado de Assis: Capitolina, a Capitu de Dom Casmurro e Virgília, a grande e eterna amante de nosso escritor defunto Brás Cubas na obra que leva o seu nome no título (Memórias Póstumas de Brás Cubas). Em pleno século XIX, estando vigente as Ordenações Portuguesas, o nosso querido Machado traz à baila a ventura e a desventura de mulheres que não conseguem aplacar os seus instintos e desafiam abertamente os valores, as regras sociais e as leis, como é o caso de Virgília e, ainda mais, o fazem sem culpas. Capitu pode ter sido vítima de um marido realmente casmurro e doente, invadido pelo ciúme delirante, só tendo lhe restado passar o fim de seus dias triste e sozinha, esquecida na Suíça, enquanto o Casmurro aqui ficava em terras tupiniquins aproveitando a vida entre amigas e o teatro. Mas é certo que Capitu não se suicidou, podendo, no entanto, ter sido morta, na diagonal, por seu marido, Bentinho. Assim como, muito menos, Virgília, que, inclusive, sobreviveu ao amante. As heroínas brasileiras estão longe dos trilhos dos trens ou do arsênico, esses tão íntimos das protagonistas européias. Por que seria? Ao analisarmos as quatro obras, verificamos que as infidelidades de Capitu, se houve, ou a de Virgília, não foram socializadas. No último caso, o marido fica sabendo, mas procura abafar a estripulia da esposa para evitar a sua própria humilhação. Anna Karenina e Emma são estigmatizadas e excluídas o que pode levar, naturalmente, qualquer pessoa a auto-exclusão da vida. Isso revelaria uma maior permissividade dos costumes da sociedade brasilis? Não é o que mostra a crônica da época, crônica que, ainda mais além, invadiu o século XX e que nos revela o quanto se derramou de sangue feminino para lavar-se a honra de maridos traídos ou supostamente traídos, o quanto ainda se derrama, a despeito de toda a obra literária rodrigueana [07] e quantos mais tenham feito apologia ao livre gozo dos desejos pelas mulheres.
Ao folhearmos o Código Civil brasileiro, publicado no dia 10 de janeiro de 2002 e que entrou em vigor no dia 10 de janeiro de 2003, logo nos deparamos com uma sorte de inovações no que tange aos sujeitos de direito, que são legitimados pelo atual Diploma não apenas como titular de direitos de propriedade, mas também de direitos subjetivos como os da personalidade, que incluem a imagem, a honra e a privacidade. Esses direitos de fundamentos humanísticos sempre foram tutelados pelo Direito Penal, restringindo-se a essa esfera a resolução das contendas provenientes do ferimento de quaisquer deles. Caberia, então, ao Direito Penal, o humano, demasiado humano, como nos falou Nietzsche, e ao Direito Civil, o patrimonial, demasiado, patrimonial, parodiando o Mestre alemão. No entanto, mesmo no Direito Penal, no que concerne à honra masculina que é correspondente não ao comportamento do homem, mas ao das mulheres que com ele estabeleçam uma relação jurídica (esposas e filhas), este atributo da personalidade não é isonômico em relação aos sujeitos de direito, dele titulares. Esta assertiva evidencia-se no famoso livro V das Ordenações Filipinas [08], promulgado em 1603 e vigente até 1830 no Brasil. Neste Diploma Legal, quanto mais alto o nível social do titular do direito à honra, maior a sua faculdade de, inclusive, praticar crimes em defesa desta, portanto, a própria honra como conceito filosófico muda de acordo com o patrimônio e o status social de quem a detém. Debrucemo-nos sobre o seu artigo 38:
38. DO QUE MATOU SUA MULHER POR A ACHAR EM ADULTÉRIO
Achando o homem casado sua mulher em adultério, licitamente poderá matar assim ela como o adúltero, salvo se o marido for peão e o adúltero fidalgo ou nosso desembargador, ou pessoa de maior qualidade. Porém, quando matar alguma das sobreditas pessoas, achando-a com sua mulher em adultério, não morrerá por isso, mas será degredado para África com pregão na audiência pelo tempo que aos julgadores bem parecer, segundo a pessoa que matar, não passando de três anos. (grifos nossos)
1 – E não somente poderá o marido matar a sua mulher e o adúltero que se achar com ela em adultério, mas ainda os pode licitamente matar sendo certo que lhe cometeram adultério; e entendendo assim provar, e provando depois o adultério por prova lícita e bastante conforme o direito, será livre sem pena alguma, salvo nos casos sobreditos, onde serão punidos segundo acima dito é. (PIERANGELI, 2004)
Logo, a honra, como direito da personalidade não é universal, mas restrito aos seres do sexo masculino e, ainda mais, aos que mais forem privilegiados e detiverem a propriedade privada. E o que é mais interessante, a honra de um homem não estaria na personalidade do homem, mas na da sua esposa e filhas.
A asserção de que o Direito Continental Europeu é essencialmente patrimonialista, inclusive no que toca ao casamento é válida pelo que já narramos neste presente trabalho ao examinarmos a família romana, base de nosso Direito de Família. Imperioso salientar, que tendo por base o direito romano-germânico, o direito continental traz, consideravelmente, em seu bojo a influência dos institutos jurídicos germânicos. O matrimônio legítimo entre os germanos era o matrimônio com mundium. Mundium, entre os germanos é o equivalente a manus entre os romanos e simboliza o poder (IHERING, 1999). Segundo Brunner-Schwerin [09], o matrimônio com mundium realizava-se uno actu, mediante a prestação do preço pelo noivo e a entrega da noiva. Posteriormente, a celebração do matrimônio foi separada em dois atos: os esponsais (verlobung, desponsatio) e a traditio (traditio puellae). A desponsatio era contrato de alienação, concluído em forma de contrato real entre o noivo e a Sippe ou o tutor da noiva, mediante o qual esta era vendida em matrimônio, pouco importando a vontade da noiva. O preço de compra (Wittum, wittemo, wetma, weotuma, widemo, meta; em latim: pretium nupciale, pretium emtionis, dos) era rigorosamente disciplinado. Com o tempo, o preço era pago mediante arras e, mais tarde, tornou-se simbólico. A evolução transformou o objeto da compra: já não era mais a mulher. O mundium e a própria idéia de compra desapareceu, transformando-se o preço em dote (wittum). O patrimônio aperfeiçoava-se com a traditio, ato simbólico que transferia o mundium ao marido. Ou seja, mais uma vez explicitamos que remonta às origens do nosso Direito ser a mulher uma propriedade privada de seu marido e não um sujeito de vontades. Mas, voltemos e continuemos a abordar a honra como um direito da personalidade.
Com a Constituição Brasileira de 1988, Constituição democrática, cidadã, pós-ditadura militar brasileira e, porque não dizer, pós-ditadura em quase todos os países latino-americanos, consolidaram-se os direitos e as garantias individuais no artigo 5º e nos seus, inicialmente, 77 [10] incisos. No inciso X, vislumbramos ali, protegidos, tutelados e garantidos os direitos da personalidade: a honra, a imagem e a privacidade, IN VERBIS:
(...)
X – são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;
(...) (grifo nosso)
Eugenio Cuello Calón (1975), classifica a honra como um bem jurídico que apresenta dois aspectos, um subjetivo e outro objetivo. O aspecto subjetivo designaria o sentimento da própria dignidade moral, nascido da consciência de nossas virtudes ou de nosso valor moral, ou seja, a honra stricto sensu. Já o aspecto objetivo representar-se-ia pela estimação que outrem faria de nossas qualidades morais e de nosso valor social, indicando a boa reputação moral e profissional, que pode ser afetada pela injúria (ofensa à dignidade ou ao decoro), calúnia (falsa imputação ou denúncia de fato definido como crime), ou difamação (imputação de fato ofensivo à reputação de pessoa física ou jurídica, atingindo-a no conceito ou na consideração a que tem direito). O que nos salta aos olhos é que este bem jurídico transitou da esfera penal para a esfera civil, no sentido de que ao ofensor caberá não apenas uma sanção penal de ordem pública, mas uma indenização pecuniária, ou seja, de ordem privada. Pois bem, o que há pouco tempo poderia ser um escândalo: mensurar a honra em dinheiro, hoje o é através da lei positivada e pela sua consagração pelos usos e costumes. No entanto, no que tange à honra feminina, o Código Civil de 1916, já reparava o seu ferimento com compensações pecuniárias nos casos em que a mulher fosse virgem e menor e houvesse sido deflorada; no caso de ser mulher "honesta", fosse ameaçada ou violentada; caso fosse seduzida com promessas de casamento e, finalmente, se fosse raptada. (Código Civil de 1916, art. 1.548, I a IV). O objetivo da norma era a reinserção social da mulher ferida em sua honra, e não apenas dela, mas também a do seu genitor. No caso de desvirginamento de menor, a responsabilidade do ofensor era objetiva, independente de culpa. Vemos, então, que o instituto da responsabilidade civil, mesmo que de forma tímida e assistemática, já rondava as nossas leis civis. Não obstante, na prática, a maculação da honra masculina em casos de adultério ou de violação de suas filhas e esposas era sancionada com sangue.
Diversamente do Direito Anglo-Saxônico, o nosso Direito Civil de fundamentos romano-germânicos, não tinha a tradição de tutelar os danos não patrimoniais na esfera civil, ou seja, os danos morais, esses intangíveis e de difícil mensuração pecuniária. Até bem recentemente, as ações de Responsabilidade Civil apresentavam caráter fortemente patrimonialista, o que se contabilizava era unicamente as perdas materiais e não as imateriais de fundo moral. Portanto, a honra, a imagem, direitos protegidos tão apenas no âmbito filosófico-penal, vai para a nossa nova Constituição Federal e desembarca em um Capítulo próprio em nosso Código Civil de 2002 (Livro I, Título I, Capítulo II), assim como nas decisões de nossos tribunais. O dano moral, onde se incluiria o dano à honra, ocorre quando se trata apenas da reparação da dor causada à vítima, sem reflexo em seu patrimônio. É a dor, a mágoa, a tristeza infligida injustamente a outrem (Rodrigues, 2002). No entanto, já que se preza tanto a honra em nosso Documento Civil, onde está aquele artigo, aquele que tratava da anulação do casamento no prazo de dez dias ao descobrir-se a mulher, anteriormente ao matrimônio, já deflorada? Foi revogado. Mais adiante, seguimos rumo às regras do Direito de Família, essas tão arraigadas nos porões e nas salas de visita sociais. De tão difíceis modificações, essas que envolvem as crenças, as vontades e os desejos mais profundos dos entes sociais, os seres humanos. É apenas lembrarmo-nos do esforço hercúleo daqueles que lutaram pela aprovação da Lei do Divórcio (Lei 6.515/1977) e pelo Estatuto da Mulher Casada (Lei 4.121/62) . É preciso lembrarmo-nos que a mulher casada, antes dessa nova Lei, era considerada como relativamente incapaz para a prática de determinados atos da vida civil. Relativamente incapaz como os pródigos e os silvícolas. Relativamente incapaz como no atual Código Civil o são os ébrios. Portanto, se solteira e maior, seria absolutamente capaz; se casada e maior, relativamente incapaz. O casamento, então, levava a uma diminuição da capacidade jurídica, mas aumentava o status social feminino. Por conseqüência, trocava-se a autonomia e a capacidade plena pelo casamento para que a mulher não se tornasse um "aleijão" social. Mas a situação poderia ser pior, pois, se por acaso a mulher fosse diagnosticada como histérica, então seria a possibilidade de interditá-la e diminuir a sua capacidade jurídica para a incapacidade absoluta, podendo ser enquadrada no que previa o inciso II do art. 5º do Código Civil de 1916, IN VERBIS:
Art. 5º . São absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil:
...
II – os loucos de todo o gênero.
...
No entanto, ao deitarmos os olhos sobre as normas civis publicadas em 10 de janeiro de 2002, podemos verificar grandes mudanças no que tange às relações de gênero. Este galgar foi iniciado com, como já o dissemos, a Constituição Federal de 1988, no seu art. 5º , I, IN VERBIS:
I – homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição.
No que tange à fidelidade recíproca, esta continua a constituir um dos deveres matrimoniais arrolados no Código Civil de 2002, art. 1.566, juntamente à vida em comum no domicílio conjugal, mútua assistência, sustento, guarda e educação dos filhos, respeito e consideração mútuos. A honra dos cônjuges continua depositada no comportamento de seu consorte tanto que, como nos ensina a civilista Maria Helena Diniz (2002), o adultério constitui uma ofensa à honra conjugal [11]. A mudança (e esta é de interesse tanto para o Direito como para a Sociologia Jurídica) é que a honra ao passar a ser tutelada pelo Direito Privado, em sendo ferida, esta violação é considerada um ilícito civil. Logo, ao ser o titular desse bem desonrado, no caso de adultério, terá este o direito subjetivo de demandar por uma indenização pecuniária por dano moral. Se o adultério constitui delito contra a honestidade, a ofensa conjugal é, então, ato ilícito civil, como preceitua o Código Civil de 2002 em seu Livro III, Título III:
Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.
Portanto, o adultério, assim como a honra do cônjuge ofendido, passeia da esfera penal para a esfera da Responsabilidade Civil sistematizada no mesmo Diploma Legal pré-falado, senão vejamos:
Art.927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.
O direito à indenização pela violação da honra, que é um direito da personalidade está positivado tanto no artigo supra como no art. 12 do Livro I, Capítulo II, do mesmo Código:
Art. 12. Pode-se exigir que cesse a ameaça, ou a lesão, a direito da personalidade, e reclamar perdas e danos, sem prejuízo de outras sanções previstas em lei.
E este direito subjetivo se refere não apenas ao marido ofendido, mas também, à esposa traída.
Enquanto isso, o Direito Penal, descriminou o adultério. O que pode parecer um contra-senso, afinal, mais do que nunca a honra é tutelada pelo Direito Civil, na verdade trata-se tão apenas de um deslocamento da honra, principalmente, a dos homens da esfera penal para a esfera civil. Infelizmente a honra dos maridos, para o Direito, continua à mercê do comportamento sexual e amoroso de suas esposas, ou seja, mesmo sendo um direito personalíssimo e intransmissível, a honra não diz respeito tão apenas ao homem em si, assim como a sua imagem. O que se constata é, inclusive, que, apesar de todas as mudanças sociais e legais, não há um movimento de independência dos homens em relação às mulheres, já que, tal como nos tempos em que a honra masculina era lavada com sangue, a própria inserção positiva ou negativa do homem em sociedade continua sendo diretamente proporcional à preservação de sua honra, não por ele mesmo, mas por suas esposas e filhas. Apesar do adultério, legalmente, ofender a honra de ambos os cônjuges, socialmente e historicamente, sempre foi o homem que se sentiu mais ofendido. Quantas e quantas filhas foram enviadas para conventos ou, pior, expulsas do lar por terem maculado a honra de seus pais? A desonra trazida pelo adultério das mulheres era tamanha que levava até mesmo à exclusão social e humilhação eterna do marido traído. Vide o caso do personagem histórico brasileiro Antônio Conselheiro, um marido traído e marginalizado socialmente e que, apenas, conseguiu reinserir-se na sociedade ao comandar a Revolta de Canudos [12]. Portanto, não há como se fazer uma análise dogmática pura quanto às alterações históricas dadas ao instituto do casamento como temos visto até aqui neste pequeno trabalho.
No caso brasileiro, imperativo se faz perscrutar os motivos psico-sociológicos e econômicos que levaram às transformações no tratamento dado ao adultério e à honra nos diplomas legais que estão em vigor no Brasil, se acaso foram esses fatores que influenciaram a dinâmica normativa. Pois, como nos ensina Batalha (1986) "O Direito é abstração e concreticidade. Como abstração, o Direito é forma eterna. Como real-concreto, o Direito é substância mutável."
O pai da psicanálise, Sigmund Freud em seu Moral sexual civilizada e doença moderna (1980), comentou que a moral sexual civilizada necessitava de reformas, visto que o cumprimento de seus preceitos, freqüentemente, produzia sérias neuroses. As mulheres, mais que os homens, seriam vítimas potenciais do estado neurótico pela admissão de uma dupla moral social. As sanções impostas às mulheres, portanto eram (e são) muito mais severas que as impostas ao sexo masculino:
Essa moral dupla que é válida em nossa sociedade para os homens é a melhor confissão de que a própria sociedade não acredita que os seus preceitos possam ser obedecidos. (Freud, 1980)
Segundo o psicanalista Luiz Alberto Pinheiro de Freitas (2001), a lei existe exatamente para reprimir aquilo que o ser humano deseja fazer e, como tal, surgem as contestações, as quais são, naturalmente, mais aceitas no universo masculino. Já para o psicanalista austríaco Wilhelm Reich (2002), as leis patriarcais pertencentes à religião, à cultura e ao casamento são leis predominantemente contra a sexualidade como forma de insistir-se na obediência cega dos indivíduos às normas do patriarcalismo econômico, ou seja, preservação do modelo patrimonialista privado. Os aspectos econômicos também são abordados, tendo em vista que uma observação mais atenta do ordenamento jurídico brasileiro nos revela a sua função primeira: a defesa da propriedade. Para a terapeuta mexicana Sukie Colegrave (1994), a consciência hierárquica, individualista e separatista (bases da propriedade privada) estaria ligada ao arquétipo masculino, enquanto a consciência holística, coletiva e integradora (bases do matriarcado), ao arquétipo feminino. Logo, a propriedade privada surgiria com a ascensão do arquétipo masculino sobre o arquétipo feminino, inaugurando a era do Patriarcado social e psicológico.
As transformações em qualquer domínio institucional da sociedade tendem a afetar outros domínios e, em conseqüência, toda a sociedade (Vila Nova, 1991). No que tange às mudanças sociais, tem sido verificado que as áreas institucionais às quais pertencem os valores básicos e as normas sagradas – os mores – da sociedade são precisamente as de maior resistência à mudança (Vila Nova, 1991). No entanto, apesar dessa resistência, sociólogos observam que alterações na tecnologia e na economia tendem a, também, afetar a instituição familiar [13]. Ao analisarmos a ordem jurídica atual no que tange aos deveres de fidelidade e débito conjugal, resta evidente a complexização no tratamento dado à mulher como sujeito de direitos em uma relação jurídica como o é o casamento.
No Código Penal modificado em 1973 - o legislador, o então Ministro da Justiça, Luis Antônio da Gama e Silva, afirma em sua Exposição de Motivos:
Conservam-se os atuais crimes contra o casamento, inclusive o adultério(...). (...) à comissão revisora pareceu errônea manter-se a incriminação da simples simulação de casamento e descriminar-se o mais grave fato contra o casamento: o adultério (grifo nosso). A ausência de condenações criminais pelo delito de adultério deve-se mais à permanência da mentalidade que nos vem das velhas Ordenações, de o ofendido "fazer justiça"(aspas nossas) pelas próprias mãos quando toma conhecimento do adultério de seu cônjuge. (...) Mantendo-se a incriminação do adultério, procura-se " educar", (aspas nossas) (...) o nosso povo a buscar, no processo criminal uma solução mais humana para os seus propósitos de vindita (vingança).
De um Código Penal que criminalizava o adultério, em mais das vezes tendo a mulher como réu, passamos a um Código Penal que o descrimina e a um Direito Civil que confere ação de indenização ao cônjuge traído.Sai o sangue e as algemas e entra a pecúnia. Já dizia o jusfilósofo alemão Rudolf von Ihering [14]: " O Direito é o conjunto das condições de vida da sociedade (considerado o vocábulo no sentido mais amplo), asseguradas pelo poder público mediante coerção exterior".
Para Ihering (1999), todo direito estabelecido é a expressão de um interesse que o legislador reconhece como merecendo e exigindo proteção: os direitos transformam-se à medida que se alteram os interesses da vida; interesses e direitos seriam, então, de alguma maneira, historicamente paralelos. Para Ihering (1999), portanto, o Direito destina-se à satisfação dos interesses variáveis, mediante a coerção do poder público. Além da base teórica de Ihering para explicar tantas mudanças no tratamento dado ao adultério, sub oculi, guiemo-nos pelas considerações do jusfilósofo soviético P. I. Stucka [15]. Stucka pondera que o conceito eterno de Direito se acha vinculado à concepção do Direito burguês, ou seja, vinculado a um ponto de vista de classe. Assim, para ele, característica do Direito é uma certa ordem, um sistema de relações sociais garantido pela classe dominante por meio de um poder organizado, cujo principal (senão o único) objetivo é tutelar esse ordenamento na medida em que corresponde aos interesses e os garante à classe dominante. Ou seja, segundo Stucka, onde quer que exista a divisão da humanidade em classes e o domínio de uma classe sobre a outra, e qualquer que seja a forma desse domínio, ali encontraremos o Direito ou algo análogo. A variabilidade no tratamento normativo não pode olvidar os usos e costumes, repousando-se no fato de que, apesar de, no plano normativo, inexistir uso e costume contrário à lei, no plano ontológico dos fatos e das situações, o direito legislado, sem perder sua validade (normativa), pode perder sua eficácia (ontológica), permanecendo tão apenas "no papel".
A coabitação continua a ser um dever entre os cônjuges no Código Civil de 2002, estando subentendido neste dever a prestação do débito conjugal, ou seja, o congresso sexual. A familiarista Maria Berenice Dias, Desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, é veementemente contra, em seus escritos, assim como em suas falas em Congressos, à positivação desses dois deveres conjugais (fidelidade e débito conjugal). Para a douta Desembargadora, essas são questões que devem ser de domínio único e exclusivo das partes privadas interessadas, quais sejam, dos cônjuges. Inclusive, em um de seus artigos, Dias (2000) propugna pela eliminação da designação "cônjuge" dada aos esposos, alertando que etimologicamente jugum era o termo utilizado pelos romanos para nominar a canga que prendia as bestas à carruagem e, que conjugere, portanto, seriam duas pessoas sob o mesmo jugo, logo, sob a mesma canga. Dias [16] nos chama a atenção de que ao ser o débito conjugal, base para uma ação de indenização por dano moral, estamos na perigosa senda que leva ao entendimento que o seu cumprimento pode ser, inclusive, à força, descaracterizando-se o crime de estupro quando o autor é o marido e a vítima é a esposa. Dias chama essa exigibilidade de verdadeiro "terrorismo sexual". O descumprimento desses deveres,continua a Desembargadora, geraria uma sentença de obrigação de fazer quanto ao débito conjugal e de não-fazer quanto ao adultério... e o que fazer com essa sentença? Nas palavras de Dias, durante a sua fala no IV Congresso Brasileiro de Direito de Família em Belo Horizonte no ano de 2003: "pendurá-las no espelho do leito conjugal".
A impotência coeundi continua sendo causa de anulação de casamento por vício da vontade, em ocorrendo erro essencial quanto à pessoa do outro no Código Civil Brasileiro de 2002, tal como dispõe o seu art. 1556. O inciso III do art. 1557 considera erro essencial sobre a pessoa do outro cônjuge "a ignorância, anterior ao casamento, de defeito físico irremediável...", neste defeito físico irremediável inclui-se a impotência para a conjunção carnal tanto por parte do homem como por parte da mulher (vaginismo, infantilismo e demais patologias do órgão sexual feminino que impeçam o coito natural). Mister salientar que a coabitação nesse caso, havendo ciência do vício não valida o ato do casamento, como dispõe o art. 1.559. O prazo para ser intentada ação de anulação do casamento, a contar da data da celebração será de três anos in casu (art. 1.560, III). Lembrando que esta anulação não incorrerá na desobrigação do cônjuge "culpado" de cumprir as promessas que fez ao outro no contrato antenupcial, assim como não prejudicará a aquisição de direitos, a título oneroso, por terceiros de boa-fé, nem a resultante de sentença transitada em julgado (arts. 1.563 e 1.564, II).
Caso o descumprimento do débito conjugal for no decorrer da união matrimonial, tendo sido, anteriormente, normalmente, prestada, será o caso da aplicação do art. 1.573, III, que trata da dissolução do vínculo conjugal tendo por motivo a impossibilidade da comunhão de vida pela ocorrência de injúria grave. A não prestação do débito conjugal constitui caso de injúria grave e, sendo um ilícito civil, cabendo, ainda, indenização por perdas e danos morais.
O adultério é também ilícito civil, já que se trata, também, de descumprimento de dever conjugal (art. 1.566, I), no entanto, não é causa de anulação de casamento tal como ocorre no Direito Canônico, mas de sua dissolução (art. 1.573, I). Como ilícito civil, caberá, portanto, Ação de Responsabilidade Civil contra o cônjuge adúltero com Pedido de Indenização por Perdas e Danos morais. Tais ações têm sido ajuizadas nos tribunais pátrios, sendo, geralmente, por parte do cônjuge varão, ou seja paga-se o ferimento da honra não com sangue, mas com pecúnia... Bem, menos mau.
A boa notícia é que, mesmo que a mulher seja condenada em uma Ação de Separação, sendo culpada pelo adultério, esta decisão não vinculará o juiz no seu convencimento quanto à guarda dos filhos menores. A mulher adúltera, sob a égide da Lei Civil de 1916, muito dificilmente ficaria com a guarda dos filhos, além de perder o direito a alimentos. Sob o sol do século XXI, a mulher adúltera, assim como o homem adúltero, claro, poderão ficar com a guarda dos filhos, independentemente de terem sido culpados pelo divórcio motivado por adultério já que os filhos ficarão sob a guarda daquele que melhores condições apresentar para consigo mantê-los, conforme a dicção do art. 1.584. Quanto ao direito a alimentos, o cônjuge culpado pelo adultério, a eles fará jus, não obstante, apenas àqueles necessários para a sua sobrevivência. Para muitos doutrinadores modernos, o direito a alimentos restritos à subsistência seria como uma "pena de morte" ao cônjuge adúltero, que teria ferido o seu direito constitucional à "vida", enfatizando que se essa necessidade for posterior à dissolução do vínculo, nenhuma espécie de alimentos será devida ao cônjuge culpado (arts. 1.694, 2º e 1.704, caput), a menos que esteja em petição de miséria, ou seja, sem parentes em condições de prestá-los e nem aptidão para o trabalho (art. 1.704, parágrafo único), prevalecendo-se aí o princípio constitucional da solidariedade. A questão é: "quem é culpado pelo fim do amor?" e " quem traiu quem"? O compositor Francisco Buarque de Holanda, tão sabiamente em um de seus versos da canção "Mil Perdões" [17] afirma: "Te perdôo por te trair". Até mesmo para o atual direito civil positivado brasileiro, a resposta a essas indagações não importa, caso os cônjuges já separados judicialmente e ainda não divorciados queiram esquecer todas as traições, dívidas, ações de indenização e, a qualquer tempo, queiram dar-se as mãos e voltar juntos para casa, voltando a serem cônjuges sem necessitarem casar-se novamente, como se sempre estivessem, mesmo no turbilhão do mar dos sentimentos, estado sempre juntos [18]: "Quando não diremos nada, nada aconteceu, apenas seguirei como encantado ao lado teu". [19]
O discurso jurídico ou o discurso literário, nunca conseguirão adequar-se à fôrma da alma e da carne humanas. A análise desses discursos leva-nos a uma dinâmica inexaurível, a dinâmica do ser e do amor. Análise jamais concludente, sempre infinita. Análise circulante por sobre a alma e a carne onde navegam os sonhos, os desejos, as fantasias e as interdições. A palavra é em si, antitética: ao mesmo tempo em que liberta, encarcera o que é, inclusive de nós mesmos, fugidio. A despeito de legisladores, à revelia dos poetas, em algum lugar do mundo, os amantes se encontram, misturam as suas carnes, decantam as suas almas, vivem e morrem por seus amores. Assim sempre foi, assim sempre será, as time goes by [20].