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Análise do discurso jurídico acerca da infidelidade conjugal feminina em interface com a literatura

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Agenda 16/02/2011 às 08:52

O que quer uma mulher?

Sigmund Freud

Não sei se a vida é maior que a morte,

Mas o amor é maior que ambas.

(Tristão e Isolda)


I. Sonho, Fantasia e Desejo

"...Morrer, dormir; Dormir, sonhar, talvez..." Mergulhado nos meandros de uma crise existencial, o nosso querido Hamlet [01] escorrega por dentre os redemoinhos do ser e vê-se diante de caminhos que podem levá-lo ou rumo ao transitório viver ou rumo ao definitivo abandono da aventura da existência. No meio de um ritmo pendular entre o eros e o tânatos está a fuga momentânea brindada pelo sono, o evanescer-se no espaço onírico, nas fantasias.

A despeito da filosofia dita científica, Freud abriu uma janela onde se avistam a paisagem do sonho, do desejo e da fantasia.. Paisagens que são a massa calcárea da arte, dentre elas, a da literatura que é a casa onde habita e se angustia o jovem Hamlet. Domando os sonhos, os desejos e as fantasias está o direito, a ordem jurídica e o seu açoite rijo, de peso e mensuração sempre menores que a vida. Direito nunca escamoteado por Shakespeare na tessitura de suas linhas. E qual seria a interseção entre o direito, esse superego estruturado, sistematizado, revelador de jogos de poder e a literatura, esse repositório de sonhos e de fantasias? A interseção seria o próprio desejo humano, esse que abre as asas na literatura, esse que é engaiolado ou adestrado no direito. Se fosse ao Direito que Hamlet indagasse a proverbial interrogação "Ser ou não ser?", teria por resposta "Dever ser".

E onde tem o desejo o seu mais denso verso? Por onde se escava a genealogia de seu maior mistério e de sua aventura ontológica? No primal desejo da mulher.

O poeta Fernando Pessoa nos diz que a alma humana é um abismo. Diria que o desejo feminino é o fundo do abismo, fundo intangível, intocado. Quanto mais dele nos aproximamos, mais ele se afasta, vela-se e revela-se, a sua verdade é heideggeriana [02]. No balé desse lusco-fusco, no entanto, algo pode ser desvelado: o fundo do abismo tem a forma de um útero.


II. Freud, a Literatura e o Direito

Freud era fascinado pela literatura, fosse ela poesia ou ficção. Supunha que através dos textos o artista revelava os enredos de seu inconsciente. Afirmava que a descrição da mente humana seria, certamente, o campo mais legítimo do escritor criativo: "desde tempos imemoriais, ele tem sido um precursor da ciência e, portanto, também da psicologia científica" (Freud, 1906-7). Debruçou-se no decorrer de toda a sua vida por sobre obras da literatura universal, comentando-as e decifrando-as, tais como Édipo Rei e Hamlet (1997, carta 71), Die Richterin [A juíza] (1898, carta 91), Édipo Rei e Hamlet em A interpretação dos sonhos (1900), Delírios e sonhos de Gradiva (1906), Contribuições a um questionário sobre leitura (1907), Escritores criativos e devaneio (1907) e Dostoievski e o parricídio (1927), para citar apenas alguns [03]. A sua própria obra é permeada de versos dos mais variados poetas, evocando, no mais das vezes, Goethe e Haine. Leitor apaixonado do primeiro, que deu nome ao prêmio criado para ser oferecido anualmente a "uma personalidade de realizações já firmadas cuja obra criadora fosse digna de uma honra dedicada à sua memória", foi o próprio Freud contemplado pelo prêmio Goethe em 1930. Muitos se ressentem por entenderem que o prêmio revela que a obra de Freud não foi considerada como científica, mas sim, um belo romance... Esse ressentimento não teve, provavelmente Freud, já que ele próprio, tal aqui o dissemos, afirma que o escritor criativo é um precursor da psicologia científica além de quê, em seu discurso de agradecimento, lido por sua filha Anna [04], enfatiza a interseção entre literatura e psicanálise aduzindo que "Goethe não teria rejeitado a psicanálise. (...) Ele próprio se aproximou numa série de pontos (...)" (Freud, 1930). Em terras anglicanas era fascinado pelo bardo inglês William Shakespeare, fazendo, reiteradamente, referência aos seus personagens. Em Resposta a um questionário sobre leitura (1906), enfatizou como livros esplêndidos, obras de quatro autores: Homero, Sófocles, Goethe e Shakespeare – Ilíada, Édipo Rei, Fausto, Hamlet e Macbeth. Freud nunca abandonou esses autores que vagam fluida e constantemente em toda a sua obra. Tinha por grande desejo e desafio desvencilhar os mecanismos do processo criativo dos escritores, nunca o conseguiu. Talvez, um caminho, teria sido a auto-análise.

Quanto ao direito, este está tatuado na obra de Freud mais do que se tem apreciado. No Mal-Estar da Civilização (2008), Freud traz o discurso jurídico como pressuposto da existência das civilizações e em O Futuro de uma Ilusão (1997) deixa claro que a civilização apenas foi possível em decorrência do controle do homem sobre a natureza e do estabelecimento de regras coercitivas de convivência. Tudo isso não sem resistência, não sem hostilidade, pois que leva ao refreamento e encarceramento dos instintos, criando-se uma nova esfera mental: o superego. Inferimos que nesse desenho, o desejo feminino tenha sido um dos instintos mais ferozmente atacados, recrudescidos, alvo de aniquilamento, de forma diversamente proporcional da liberdade para satisfação de seus instintos gozada pelo líder masculino do grupo. O desejo feminino é sempre uma ameaça, uma desestabilização, uma caixa de pandora que, se aberta, sobre o mundo recairá todos os males engenhados pelos deuses (pelo pai). Diante de tamanha repressão a histeria se derrama sobre o corpo, exauridos os recursos internos para compensar a frustração, e entranhado cada vez mais em profundidades nebulosas, o desejo feminino se torna uma gota de néctar indiferenciada no oceano, tornando a sua captura o trabalho impossível do escafandrista que elegeu como missão de vida, como fez Freud, responder à inquietante indagação: "o que quer uma mulher?".

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III. Michel Foucault, o Desejo e a Análise do Discurso Jurídico

Ao menos, em face do direito, arriscaria dizer eis o que é o desejo feminino: a vida humana em essência, razão e pressuposto de existência do direito e do seu discurso. Esta que com ele se digladia, interpenetra-se, sucumbe-se e impõe-se. A voz do desejo feminino clama por libertação e legitimação do seu sujeito, é a sua própria voz que quer fazer-se vida como nas palavras de Foucault (1970/1996):

O desejo diz: "Eu não queria ter de entrar nesta ordem arriscada do discurso; não queria ter de me haver com o que tem de categórico e decisivo; gostaria que fosse ao meu redor como uma transparência calma, profunda, indefinidamente aberta, em que os outros respondessem à minha expectativa, e de onde as verdades se elevassem, uma a uma; eu não teria senão de me deixar levar, nela e por ela, como um destroço feliz".

Para Foucault, "as regiões onde a grade é mais cerrada, são as regiões da sexualidade e da política". No caso do desejo feminino, entendemos, a partir de Foucault que o discurso jurídico que o tutela, não apenas exerce o seu poder de interdição, mas de separação e rejeição. A vontade sexual da mulher, desacorrentada, para além da instituição, sairia da órbita da razão e aterrissaria na loucura, assim entenderia o discurso jurídico. Para Freud, essa repressão é que leva à loucura. E foi observando-a que o Mestre de Viena passou a estudar a histeria feminina e fundou a psicanálise. Enquanto isso, um outro discurso metaforiza o desejo feminino: o discurso literário. Foucault acentua a dificuldade de constituição de um discurso unitário da sexualidade, já que as interdições não teriam a mesma forma e não interfeririam do mesmo modo no discurso literário e jurídico. Mas, sustentamos que ambos se encontram, porque ambos são feitos da mesma matéria-prima: o amálgama do logos e da vida. Se historicamente a liberdade sexual feminina foi punida juridicamente com a pena de morte, Capitus, Bovarys e Annas Kareninas encontraram na morte as sentenças inexoráveis de suas vidas em livros escritos por homens. Tanto o discurso jurídico quanto o literário foram historicamente, masculinos (às mulheres, eram vedadas as letras), atendendo à uma ordem de poder e subalternização do feminino no modelo patriarcal.

Enquanto isso, carrascos medievais atearam fogo ao desejo nos poemas da poetisa grega Safo. Por entre as pedras de uma ilha do Mar Egeu, sereias resistem e cantam seus versos enquanto que os homens que os queimaram, até hoje, dormem e acordam privados de suas delícias.


III. A Fidelidade Feminina na Lei e na Literatura Romana

Eudóxio era belo. Junto ao seu servo Amis pousava à beira do Mediterrâneo, olhos lançados ao mar, onde se descortinariam os navios vindos do norte da África com mercadorias raras para azeitar os seus negócios de próspero comerciante. Eglantina era desafortunada em beleza. Filha única de um agiota romano, recolhia-se ao silêncio e à solidão, resignando-se a um destino que se prenunciava desaventurado no amor. Seu pai, apenas lamentava a dificuldade de encontrar-lhe um casamento e entristecia-se diante do vazio no qual cairia a sua fortuna sem descendente algum para perpetuá-la. Multiplicara o valor do dote, mas a matemática era insuficiente para convencer os varões casadoiros. Eudóxio conheceu Eglantina. As noites ensolararam-se e os dias passavam ao som das harpas. Eudóxio e Aglantina viravam as tardes em interlóquios sem fim, olhos nos olhos embeveciam-se com a companhia um do outro e com a brisa marinha, fiel escudeira desse encontro improvável. Eudóxio pediu a mão de Eglantina em casamento ao seu pai. Esse lembrou-lhe que Vênus não havia sido generosa com sua filha, ou que lhe esquecera no instante de vir ao mundo brotando de uma concha, por sobre as águas. Eudóxio não se fez de rogado, estava firme em seu propósito. Argumentou que muito mais do que os atrativos efêmeros do corpo, lhes atraíam os atributos permanentes da alma e esses atributos Eglantina os tinha inflacionados. O pai aquiesceu, mas não sem observar que não teria moedas sobrando para desperdiçar com a festa de casamento. Eudóxio não se deixou intimidar pela sovinice do futuro sogro, já o sabendo avarento e disse-lhe que assumiria os gastos com a festa que seria de três dias e para a qual convidariam toda a cidade, afetos e desafetos. Fez-se a festa, Eudóxio endividou-se, mas o fez com satisfação. O sogro sugeriu-lhe que vendesse o servo, Amis. Com lágrimas nos olhos, Eudóxio disse-lhe que tudo, menos isso. Amis era o que lhe restava de laços de família, já que não mais tinha pais e nem irmãos e o servo era o único elo com o seu passado desaparecido. Meses se passaram e Eglantina não ganhava saliência na barriga. O pai foi ter com Eudóxio, já se fazia quase um ano do matrimônio e a sua filha não havia ainda sido tocada pelos ares benfazejos dos deuses. Eglantina advertiu ao pai que não era de bom agouro ir de encontro à vontade de Júpiter. O agiota esbravejou que de nada adiantava os deuses sem o esforço e a vontade de Eudóxio. Finalmente, Eglantina engravidou, o lar se pôs em festa e alviçareira expectativa em torno do nascimento do futuro herdeiro. Que fosse um menino, era o mais profundo desejo do avô que não tivera filho homem. Veio o dia do parto, nervos e ansiedades, temores e aflições. Nasceu um menino! Gritos e urros de satisfação se espalharam pela casa. O avô logo acudiu à alcova, sede do parto, e tomou o recém-nascido em seus braços... No entanto, o fedelho em nada lembrava Eudóxio e sim, tinha a cor azeitonada e os traços de seu servo Amis. Desesperado, com a criança nos braços, correu aos aposentos de Eudóxio. Lá, deitado nu sobre a cama, encontrou o servo Amis com a sua cor azeitonada e os traços ora tatuados em seu neto. Deu um grito derradeiro e quase mudo, jogou a criança por sobre o leito, ao lado de Amis, quando teve um ataque cardíaco fulminante, abandonando a vida. De início, lamentaram a sua morte: foi a emoção de ter um neto varão. Depois a vida seguiu leve e despreocupada para Amis que ora servia a Eudóxio, ora servia a Eglantina. Satisfeitos, juntos, criaram o pequeno Tibúrcio. Esta história, aqui contada de memória, como quem se senta com o leitor à beira de uma fogueira em uma noite estrelada, faz parte dos alfarrábios encontrados em pesquisa feita pela psicanalista Regina Navarro e o seu marido para a confecção de um livro intitulado Fidelidade Indecente (2007). Sendo uma história verídica ou um conto, o fato é que integrava a literatura romana, os sonhos e os desejos dos habitantes do Lácio. Lácio, cujo direito punia a infidelidade conjugal feminina com a pena de morte e tinha a impossibilidade de conjunção carnal como causa de anulação do casamento a ser pedida pela esposa, caso a impotência coendi fosse masculina.

A Lei das XII Tábuas romana previa três formas de a mulher ficar sujeita ao poder ou manus do marido: a confarreatio, a coemptio e o usus (BATALHA, 1986). A expressão manus designa o poder marital. Primitivamente, designava o poder doméstico do chefe da família sobre as pessoas e as coisas que a integravam. Manus e familia eram, originariamente, termos correlatos. Familia designava o domínio do poder enquanto que o manus seria o símbolo do poder ou o próprio poder. A mulher poderia, também, contrair casamento sine manus, ou seja sem manus, mas não se animem, o casamento sine manus não significa que a mulher ficaria sob o próprio domínio e sim que continuaria sob o poder do pai.

Etimologicamente, matrimônio significa "encargo, ofício ou dever da mãe", pois que advém do latim mater que significa mãe, e munus que é encargo (CAPPARELLI, 1999). O matrimônio é, então, na essência do seu logos, um tributo pago pela mulher-mãe de uma família, um encargo ou carga a ser transportada e suportada por ela. Mas a etimologia também revela não ser menos exigente em relação aos homens, impondo-lhes, também, um árduo encargo, pois vejamos: a palavra patrimônio vem do latim pater, ou seja, pai, e munus, encargo ou ofício, logo, cabe ao homem-pai prover o núcleo familiar com os bens necessários para a sua sobrevivência, dedicar a sua vida ao acúmulo desses bens para que, em caso de privação, haja um considerável excedente para que os membros da família não pereçam. Apesar desses encargos poderem ser considerados naturais e justos para a sobrevivência humana, o grande desafio é vivê-los sem perder a poesia e a base da família como lócus do afeto. A língua portuguesa procurou construir um termo que indicasse teleologicamente um outro sentido à união entre homem e mulher. A palavra "casa"-mento significa a constituição de uma nova casa ou lar, ou seja, de uma vida a dois, com deveres e obrigações, mas também como espaço de trocas e vivências no trilhar de um caminho que constrói um mesmo destino para os seus integrantes. Mas voltemos ao casamento dos romanos.

O usus consistia na convivência sob o mesmo teto entre marido e mulher pelo período de um ano sem interrupção, após o qual o marido, desde que não satisfeito, poderia devolver a mulher à sua família, devolvendo-lhe o dote. A coemptio era uma venda simulada, em que o comprador punha a mão sobre a mulher adquirida e mediante a entrega de um dote, levava-a para o seu domínio. Já a confarreatio consubstanciava-se na forma solene do matrimônio do patriciado, da elite romana, tendo conteúdo religioso, sendo celebrado pelo sacerdote da família, era as justas núpcias. Não é sem fundamento que o Direito Romano é a base do direito privado por excelência. A família romana constituía um pequeno Estado sob as ordens de seu soberano, o chefe da família. O governo da família era independente e autônomo em relação a qualquer poder exterior. Todas as dissensões internas eram dirimidas pelo chefe da família que desempenhava a função de domesticus magistratus. Este tinha o direito de vida e de morte (jus vitae necisque) sobre os seus integrantes, logo sobre a esposa no casamento com manus. No casamento sine manus, o marido também detinha esse poder com a diferença que a mulher não estava sob a dependência patrimonial do marido e sim, na dependência financeira de seu pai ou tutor. Logo, entre os romanos, o chefe de família tinha poder absoluto, recebendo a denominação de pater familiae. Excepcionalmente, este poderia, inclusive, vender a mulher e os filhos como escravos. Logo, o adultério feminino poderia ser punido com a morte e o não cumprimento do débito conjugal (conjunção carnal) poderia levar ao repúdio da mulher com a sua conseqüente devolução à família de origem. Que o digam Eudóxio e Eglantina.


IV. A Infidelidade Feminina no Direito e na Literatura da Idade Média

A tragédia do amor ideal é que ele nunca será concretizado e o seu anseio afogueia e mata os amantes através dos séculos. A lenda medieval de Tristão e Isolda mostra-nos que o amado é sempre o outro, aquele que não está comigo ou já é vinculado a outrem, seja um amante, uma família, uma casta. Um outro inacessível, impossibilitado e, por isso, amado e desejado, sem o qual a vida se esvai e é o nada absoluto. Na busca irrefreável desse amor idealizado, ao não conseguir-se desacorrentar-se dele, a infidelidade é uma carta marcada. Senão ouçamos das vozes do medievo, a lenda de Tristão e Isolda. Tristão é um cavalheiro, nascido na Cornualha que, a mando de seu tio, o rei Marc da Cornualha, viaja à Irlanda com a missão de trazer a bela e honrada princesa Isolda, a loura, para desposá-lo. Tristão é bravo e leal ao tio. Durante a viagem de retorno à Grã-Bretanha, acidentalmente (?), Tristão e Isolda bebem uma poção mágica de amor, originariamente destinada a ela e ao rei, apaixonando-se um pelo outro, irreversivelmente. Chegando à corte, Isolda casa-se com Marc, mas continua mantendo um romance desesperado com Tristão, violando todas as leis e regras temporais e religiosas. São descobertos e Tristão é banido do Reino, casando-se com uma outra Isolda, princesa da Bretanha. Mas, mais que nunca, o amor pela amante se intensifica e não termina, o advento de uma outra interdição apenas o alumia. Após muitas desventuras, Tristão é ferido mortalmente por uma lança e ordena que busquem Isolda para curá-lo de suas feridas, mantê-lo no palco da vida. Isolda já está a caminho, mas a esposa de Tristão engana-o dizendo-lhe que Isolda recusara-se a vê-lo. Tristão mergulha na morte e Isolda, ao encontrar seu corpo entorpecido, desatina e mata-se. A lenda revela os desejos, os instintos reprimidos pela comunidade que a conta e reconta, através do tempo, a lenda perpetua-se porque os sentimentos e fatalidades que a revestem são trangeracionais. Sentimentos e emoções que mesmo na rigidez das leis medievais, sobrevivem na fala que propaga o drama dos amantes nos contos. A infidelidade aqui, não é apenas de Isolda, é de Tristão, é de Romeu, é de Julieta.

Mas fechemos os livros de lendas e contos e percorramos o direito medieval e o seu tratamento dado à infidelidade. O adultério é a única causa que na legislação canônica, justifica a separação perpétua. Para que o adultério ocorra deve haver a "cópula perfeita" entre duas pessoas das quais, ao menos uma, seja casada. Insuficientes são, portanto, os atos libidinosos, como carícias, beijos e demais contatos físicos por mais íntimos que sejam. A doutrina e a jurisprudência canônica entendem como cópula perfeita, a união sexual natural, com ejaculação no interior da vagina da mulher, ou seja, a presença do verum semen no lócus intravaginal, rumo ao útero [05]. Logo, mesmo havendo discussão fragorosa em contrário dos estudiosos do Direito Canônico, a relação sexual onanística, assim como a cópula sodomítica com pessoa do mesmo sexo ou não, inclusive a bestialidade (relação sexual com animais) não constituem adultério positivado. Valioso considerar que, para o direito canônico, o adultério não é crime, mas, em ocorrendo, é uma faculdade reconhecida ao cônjuge inocente de dissolver perpetuamente o vínculo matrimonial, logo, um facultas agendi.

Caso o cônjuge traído sexualmente, haja consentido a esta traição, ou lhe tenha provocado, como, por exemplo, pelo abandono do cônjuge, mesmo que temporária, não mais com ele coabitando a fim de facilitar-lhe o congresso carnal com outro, ou pela recusa sistemática em pagar o débito conjugal com a intenção que o outro o traia, ou ao deixar-lhe em uma situação de carência e desamparo com vistas ao adultério, ou mesmo ao incitá-lo ao ato adulterino por coação ou indução. Note-se que a ação em caso de provocação deva ser positiva, com vistas à prática adulterina, logo o simples abandono temporário em si, assim como a recusa esporádica no cumprimento do débito conjugal, não gera direito ao adultério por parte do outro cônjuge. Não será, in casu, o adultério causa para a dissolução do casamento se ocorrer o perdão.

Resta evidente, que ao restringir o conceito de adultério, o Direito Canônico cuida da permanência da organização familiar, dificultando-lhe o esfacelamento. Na literatura medieval, a infidelidade ocorre como a busca do amor ideal, interditado, malogrado, e diante de sua impossibilidade, resta realizá-lo com a morte.

Sobre a autora
Andrea Almeida Campos

Professora de Direito da Universidade Católica de Pernambuco. Doutoranda. Advogada.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CAMPOS, Andrea Almeida. Análise do discurso jurídico acerca da infidelidade conjugal feminina em interface com a literatura. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2786, 16 fev. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/18502. Acesso em: 23 nov. 2024.

Mais informações

Este texto contém fragmentos do artigo "A mulher sob o casamento: fidelidade e débito conjugal – uma abordagem jus-histórica", da própria autora, publicado no livro "Novas Perspectivas do Direito Privado" (Belo Horizonte: Fórum, 2008).

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