Capítulo II
3 – Discricionariedade Administrativa: Poder ou Dever
A Administração Pública, mesmo no exercício do poder discricionário que lhe é conferida, encontra seus limites na finalidade que a lei deve perseguir. Essa posição superior frente aos administrados deve coadunar-se com as regras básicas de um Estado Democrático de Direito e vislumbra, sempre, o interesse público (sentido teleológico da lei), sob pena de ser taxada, a sua atuação, como arbitrária ou abusiva.
Entendemos que a discricionariedade é um dever do administrador. E que essas balizas que lhe dão a diretriz exata perante o caso concreto, não é resultado apenas e unicamente da obediência à legalidade, como insiste em repetir a doutrina clássica, com respaldo no positivismo arcaico [33]. Hoje, com o sistema constitucional em vigor constituído de normas (leia-se: regras e princípios), colocar a conduta do administrador público cerceada somente pela legalidade stricto sensu seria uma transgressão à nossa própria Constituição Federal [34].
Nesse diapasão, podemos afirmar, com supedâneo na nossa Lei Mãe, que a Administração Pública está adstrita ao princípio da legalidade ampla, devendo obediência não somente à lei, mas aos princípios também. Logo, os princípios [35], dado a sua importância maior que a lei stricto sensu como ressaltado no primeiro capítulo deste trabalho, são, sem sombras de dúvidas, meios para controlar e limitar o poder-dever administrativo discricionário.
Segundo Odete Medauar ao judiciário cabe o exame do mérito do ato administrativo discricionário: "nota-se a tendência a considerar que o contraponto da legalidade – mérito encontra-se atenuado no momento presente" [36].
Lúcia Valle Figueiredo citada por Luis Henrique U. Cademartori [37] preleciona que a discricionariedade consiste na competência–dever de o administrador, perante o caso concreto e após interpretar a lei, valorar, dentro de um critério de razoabilidade que não se confunda com seu juízo subjetivo, e optar pela melhor maneira de concretizar a utilidade pública invocada na norma.
Oportuna, neste ponto, a lição brilhante e profunda de Gustavo Binenbojm:
"Com a constitucionalização do direito administrativo, a lei deixa de ser o fundamento único e último da atividade administrativa. A Constituição – entendida como sistema de regras e princípios – passa a constituir o cerne da vinculação administrativa à juridicidade. A legalidade, embora ainda muito importante, passa a constituir apenas um princípio do sistema de princípios e regras constitucionais. Passa-se, assim, a falar em um princípio da juridicidade administrativa para designar a conformidade da atuação da Administração Pública ao direito como um todo, e não apenas à lei" [38].
Nessa linha Odete Medauar nos ensina que:
"A discricionariedade significa uma condição de liberdade, mas não liberdade ilimitada; trata-se de liberdade onerosa, sujeita a vínculo de natureza peculiar. É uma liberdade vínculo. Só vai exercer-se com base na atribuição legal, explícita ou implícita, desse poder específico a determinados órgãos ou autoridades. Por outro lado, o poder discricionário sujeita-se não só às normas específicas para cada situação, mas a uma rede de princípios que assegurem a congruência da decisão ao fim de interesse geral e impedem seu uso abusivo" [39].
Diante do exposto, conclui-se que todo ato administrativo discricionário é digno de uma motivação idônea, em observância às garantias e aos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, além de outros consagrados pela nossa Carta Maior. É dever do gestor público uma administração que atenda aos anseios da sociedade ao mesmo tempo em que observa o sistema normativo presente (regras e princípios). Discricionariedade não pode ser considerada como sinônimo de arbitrariedade ou margem ao erro. Com isso, entendemos que não há ato administrativo, violador de direitos ou garantias observadas no bojo da Constituição, que escape do crivo do judiciário, posto que não estaríamos num Estado Democrático de Direito, se tal controle não fosse aceito. Ademais "é princípio assente em nosso Direito – e com expresso respaldo na Lei Magna – que nenhuma lesão ou ameaça a direito poderá ser subtraída à apreciação do Poder Judiciário (art. 5º, XXXV)" [40].
Encerraremos com as palavras de Juarez de Freitas:
"Importa, em suma, vivenciar, com o máximo empenho e a alma inteira, a era da motivação das escolhas administrativas, sem automatismos e sem cair nas seduções liberticidas da discricionariedade pura. Somente desse jeito a escolha administrativa resultará eficiente e eficazmente, vinculada ao direito fundamental à boa administração pública" [41]. grifo nosso.
3.1 - Discricionariedade e Conceitos Jurídicos Indeterminados
A teoria dos conceitos jurídicos indeterminados surgiu na Alemanha em 1886, por Bernatzik [42]. Este doutrinador sustentava existir nos conceitos indeterminados atribuição à Administração de um poder para sua livre concretização normativa.
Entendia-se que discricionariedade era a margem dada ao administrador para que, diante de determinadas conjunturas, pudesse apreciar pessoalmente e valorar de acordo com seu critério subjetivo a oportunidade e conveniência de uma decisão, a qual não poderia ser apreciada pelo judiciário, visto tratar-se de mérito do ato administrativo discricionário.
Todavia, essa não é a posição que vigora na doutrina mais moderna. Não basta a alegação de que o administrador atuou conforme a liberdade e de acordo com as alternativas conferidas pela lei.
Segundo Celso Antônio Bandeira de Mello [43], a discricionariedade nem sempre e necessariamente advém das imprecisões dos conceitos jurídicos. Há um elemento a ser considerado, qual seja: a abstração normativa, por vezes prenhe de imprecisões, pode desaparecer ante as circunstâncias do caso concreto, eliminando, totalmente a discricionariedade, quando da sua aplicação. Nesses casos, não restará, a toda evidência, detectável por uma razoabilidade gritante, mais que uma solução.
Nesse sentido, o mesmo autor assevera que:
"O juiz poderá, a instâncias da parte e em face da argumentação por ela desenvolvida, verificar em exame de razoabilidade, se o comportamento administrativamente adotado, inobstante contido dentro das possibilidades em abstrato abertas pela lei, revelou-se, in concreto, respeitoso das circunstâncias do caso e deferente para com a finalidade da norma aplicada" [44].
Com isso a discricionariedade para Bandeira de Mello só existiria "nas hipóteses em que perante a situação vertente, seja impossível reconhecer de maneira pacífica e incontrovertível qual a solução idônea para cumprir excelentemente a finalidade legal. Ou seja: naquelas em que mais de uma opinião for razoavelmente admissível sobre a medida mais apropriada para dar a melhor satisfação ao objetivo da lei" [45].
Logo entendemos que não se pode aceitar a premissa de que ante a presença de conceitos plurissignificativos no corpo da lei, a conseqüência será via de regra a utilização da discricionariedade. Esta, como tecido alhures não é absoluta, devendo o administrador, ao se deparar com esses conceitos ditos indeterminados, tomar suas decisões procurando fundamentá-las nas diretrizes dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, sempre em busca do dever de adotar a solução ótima para o caso concreto.
3.2 – Interpretação dos Conceitos Jurídicos Indeterminados
Cumpre ressaltar inicialmente que as interpretações jurídicas tradicionais [46] não estão superadas inteiramente. Nessa interpretação jurídica clássica, as normas são vistas pura e simplesmente como regras explícitas no sistema normativo, cabendo ao intérprete aplicá-las conforme uma subsunção descrita na lei, conforme prescrição positivista.
Segundo Luís Roberto Barroso [47], as especificidades das normas constitucionais levaram a doutrina e a jurisprudência, a desenvolver ou sistematizar um elenco próprio de princípios aplicáveis à interpretação constitucional [48]. "Tais princípios, de natureza instrumental, e não material, são pressupostos lógicos, metodológicos ou finalísticos da aplicação das normas constitucionais. São eles, na ordenação que se afigura mais adequada para as circunstancias brasileiras: o da supremacia da Constituição, o da presunção de constitucionalidade das normas e atos do Poder Público, o da interpretação conforme a Constituição, o da unidade, o da razoabilidade e o da efetividade" [49].
Para esse autor, com o avanço do direito constitucional, a interpretação conforme o sistema tradicional deixou de ser satisfatória, visto que o problema jurídico a ser solucionado nem sempre se encontra no tipo abstrato da norma, em face de sua indeterminação, sendo muitas vezes, encontrarmos a solução adequada desses hard cases sob a ótica do problema apresentado.
Nessa diretriz, Luiz Henrique U. Cademartori entende que:
"Embora a lei não determine com precisão os limites desses conceitos, por não possuírem eles uma quantificação ou determinação rigorosa, está, sim, referindo-se a hipótese da realidade que, apesar da indeterminação do conceito, torna-se este determinado no momento de sua incidência no caso concreto". Para logo concluir: "tais conceitos podem tornar-se unívocos quando deparados com situações específicas" [50].
Claus-Wilhelm Canaris assevera que a positivação de normas de textura aberta ou plurissignificativas dá espaço à utilização desse método neoconstitucionalista concomitantemente ao método tradicional. Senão vejamos:
"Não há, assim, uma alternativa rígida entre o pensamento tópico e o sistemático, mas antes uma complementação mútua. Quão longe vai um ou outro determina-se, em termos decisivos, de acordo com a medida das valorações jurídico-positivas existentes – assim se explicando também o facto de a tópica jogar um papel bastante maior em setores fortemente marcados por cláusulas gerais como o Direito constitucional ou em áreas reguladas de um modo muito lacunoso como o Direito internacional privado do que, por exemplo, no Direito imobiliário ou no Direito dos títulos de crédito" [51].
Importante lembrarmos que os conceitos plurissignificativos não são uma exclusividade do Direito Administrativo. É comum nos depararmos com conceitos indeterminados, como, por exemplo, a boa-fé objetiva no Direito Civil, a presunção de inocência no Direito Penal, a segurança jurídica no Direito Constitucional, dentre outros.
O intérprete, ao se deparar com essas locuções, deve fazer uma valoração de fatores objetivos e subjetivos presentes na realidade fática, de modo a definir o sentido e o alcance da norma. "Como a solução não se encontra integralmente no enunciado normativo, sua função não poderá limitar-se à revelação do que lá se contém; ele terá de ir além, integrando o comando normativo com a sua própria avaliação" [52].
Complementando, Luis Roberto Barroso cita a importância do dever de fundamentação do julgador diante de uma solução criativa, por não estarem inteiramente legitimadas pela lógica da separação de Poderes.
Na chamada técnica da argumentação esse autor ensina-nos que:
"Para assegurar a legitimidade e a racionalidade de sua interpretação nessas situações, o intérprete deverá, em meio a outras considerações: (i) reconduzi-la sempre ao sistema jurídico, a uma norma constitucional ou legal que lhe sirva de fundamento – a legitimidade de uma decisão judicial decorre de sua vinculação a uma deliberação majoritária, seja do constituinte ou do legislador; (ii) utilizar-se de um fundamento jurídico que possa ser generalizado aos casos equiparáveis, que tenha pretensão de universalidade: decisões judiciais não devem ser casuísticas; (iii) levar em conta as conseqüências práticas que sua decisão produzirá no mundo dos fatos" [53].
Concluindo, indiretamente com as palavras do autor supracitado, o novo direito constitucional (ou neoconstitucionalismo), identifica uma gama de transformações ocorridas no Estado e no direito constitucional, como a formação do Estado Constitucional de Direito, o pós-positivismo (com a centralidade dos direitos fundamentais e a reaproximação entre Direito e ética – o que, a nosso ver, proporciona a busca por soluções justas, deixando de lado o brocardo "dura Lex sed Lex"), e o conjunto de mudanças que incluem a força normativa da Constituição, a expansão jurisdição constitucional e o desenvolvimento de uma nova interpretação dogmática da constituição baseada nos princípios. Com isso a existência de colisões de normas constitucionais leva à necessidade de ponderação. A subsunção não é capaz, por si só, de solucionar o problema. Tampouco podem ser úteis os critérios tradicionais de solução de conflitos normativos (hierárquico, cronológico e da especialização).
"Neste cenário, a ponderação de normas, bens ou valores é a técnica a ser utilizada pelo intérprete, por via da qual ele fará concessões recíprocas, procurando preservar ao máximo possível de cada um dos interesses em disputa, ou, no limite, procederá à escolha do direito que irá prevalecer, em concreto, por realizar mais adequadamente a vontade constitucional. Conceito-chave na matéria é o princípio instrumental da razoabilidade" [54].
3.3 - Limites da discricionariedade administrativa
Vivemos uma geração perplexa com as injustiças cotidianas, somadas à necessidade de transformações sociais e novidades outras da vida moderna, buscando sempre respostas rápidas e soluções adequadas ao nosso tempo, é o que denominamos de neoconstitucionalismo ou pós-positivismo.
O Estado de Direito se consolidou na Europa no séc. XIX, com a tripartição dos poderes e a proteção dos direitos e garantias individuais. Já o Estado Constitucional de Direito desenvolveu-se no decorrer do séc. XX, com a observância do Princípio da Legalidade em harmonia com uma Constituição. Com isso a Constituição passa a limitar a atuação legislativa e executiva e o judiciário passa a ter uma ampla atuação no que tange a limitação da discricionariedade desses Poderes.
Essa tendência pós-positivista tem o fito de ir além da legalidade estrita, buscando a consagração de uma legalidade ampla, o que abrangeria a obediência, no deslinde da atuação discricionária, dos princípios, sobremaneira os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, implícitos em nossa Constituição de 1988 [55].
Luis Roberto Barroso entende que a atividade discricionária está limitada à Constituição num primeiro plano e pela lei num segundo plano. Senão vejamos:
"Supera-se, aqui, a idéia restrita de vinculação positiva do administrador à lei, na leitura convencional do princípio da legalidade, pela qual sua atuação estava pautada por aquilo que o legislador determinasse ou autorizasse. O administrador pode e deve atuar tendo por fundamento direto a Constituição e independentemente, em muitos casos, de qualquer manifestação do legislador ordinário. O princípio da legalidade transmuda-se, assim, em princípio da constitucionalidade ou, talvez mais propriamente, em princípio da juridicidade, compreendendo sua subordinação à Constituição e à lei, nessa ordem" [56].
Importante salientar que essa interpretação não infringe o princípio da separação dos poderes. Logo não aboliu a atividade discricionária, mas se ateve a colocar contornos e balizas quando do seu exercício. Nesse diapasão, Bandeira de Mello, não obstante citar a razoabilidade a que a decisão administrativa está subordinada, se manteve conservador no que tange à possibilidade de controle judicial do mérito do ato administrativo, prelecionando que:
"A interpretação do sentido da lei, para pronúncia judicial, não agrava a discricionariedade, apenas lhe reconhece os confins; não penetra na esfera de liberdade administrativa, tão só declara os contornos, não invade o mérito nem se interna em avaliações inobjetiváveis, mas reconhece a significação possível em função do texto, do contexto e da ordenação normativa como um todo, aprofundando-se até o ponto em que pode extrair razoavelmente da lei um comando certo e inteligível" [57]. grifo nosso.
Eduardo Garcia de Enterria e Tomás-Ramón Fernandéz, diferentemente de Bandeira de Mello, entendem que a discricionariedade cinge-se à liberdade de escolha entre alternativas igualmente justas, uma vez que a decisão a ser adotada se fundamenta em critérios extrajurídicos, não incluídos na lei e submetidos ao julgamento subjetivo do administrador. No que toca a aplicação dos conceitos jurídicos indeterminados, seria um caso de aplicação da lei, cujo procedimento não acarretaria nenhuma interferência de ordem subjetiva do administrador. Logo, o juiz fiscalizará avaliando se a solução é a única justa que a lei permite [58].
A idéia de constitucionalização do Direito, à qual temos corroborado, associa-se a um efeito expansivo das normas constitucionais, cujo conteúdo material a axiológico se irradia, com força normativa. Nessa diretriz Luis Roberto Barroso defende a tese, da qual confirmamos, de que "a constituição passa a ser não apenas um sistema em si (...), mas também um modo de olhar e interpretar os demais ramos do Direito. A constitucionalização do Direito se realiza, sobretudo, pela interpretação conforme a Constituição (...). No domínio do Direito Administrativo, trouxe a suspensão ou reformulação de paradigmas tradicionais, relacionados (a) à idéia de supremacia do interesse público sobre o interesse privado, (b) à substituição da noção de legalidade pela de juridicidade e (c) à possibilidade de controle do mérito do ato administrativo" [59].