Questão interessante que se coloca é a possibilidade de renúncia a direitos fundamentais.
José Afonso da Silva, professor titular aposentado da Universidade de São Paulo, ao tratar das características dos direitos fundamentais, diz serem inalienáveis, imprescritíveis e irrenunciáveis. Para ele, são inalienáveis porque intransferíveis e inegociáveis, com o que não se pode desfazer deles, já que indisponíveis. A irrenunciabilidade é um atributo na medida em que "não se renunciam direitos fundamentais. Alguns deles podem até não ser exercidos, pode-se deixar de exercê-los, mas não se admite sejam renunciados". [01]
Apesar da posição do ilustre constitucionalista, não podemos concordar com a pretensa irrenunciabilidade.
A Constituição mesma traz hipóteses expressas de admissão da renúncia (ex: art. 5º, XI, inviolabilidade domiciliar, possibilitando a renúncia mediante consentimento do morador).
Mas, ainda assim, a seguir se buscará demonstrar as razões pelas quais, ainda que não expressamente autorizado pela Constituição, é possível sim, e mais, é um direito, a renúncia a direitos fundamentais, seja porque vivemos em Estado de Direito, o que pressupõe autonomia individual, seja porque a inviolabilidade dos direitos fundamentais não se aplica ao próprio titular dos direitos ou, ainda, em razão de serem os direitos fundamentais princípios, pelo menos a maioria deles, devendo ser sopesados em caso de conflito no caso concreto.
1. Os direitos fundamentais, em geral, estabelecem direitos, faculdades, poderes, e não deveres, obrigações, para seus titulares. Esses direitos impõem deveres ao Estado e a particulares outros, que não – repita-se – os próprios titulares do direito.
Não parece correta a noção de que a pessoa tem não somente a faculdade de exercer um direito fundamental, senão o dever/obrigação de fazê-lo. Essa ideia até parece aceitável, talvez mesmo necessária, e aplicável àqueles que não têm capacidade, de fato ou de direito, para fazer suas escolhas de maneira consciente. Mas, já não serve como regra geral.
Num Estado de Direito, como o nosso, devemos ter em mente a necessidade de se privilegiar a dignidade da pessoa humana, sua liberdade e autonomia para livremente desenvolver a personalidade, fazendo as escolhas que entender necessárias e devidas, lastreadas em suas crenças, valores e convicções particulares. Tudo isso, sem qualquer intromissão estatal, salvo eventual prejuízo ou ameaça a terceiros. Aliás, é justamente para isso que os direitos fundamentais existem no Estado de Direito: assegurar a liberdade e a autonomia do indivíduo.
Segundo Jorge Reis Novais, professor da Faculdade de Direito de Lisboa:
"Da própria dignidade da pessoa humana e do princípio da autonomia e de autodeterminação individual – que integram e moldam de algum modo o cerne de todos e de cada um dos direitos fundamentais – decorre o poder de o titular dispor dessa posição de vantagem, inclusivamente no sentido de a enfraquecer, quando desse enfraquecimento, e no quadro da livre conformação da sua vida, espera retirar benefícios que de outra forma não obteria.
Nesse sentido, a renúncia é também uma forma de exercício do direito fundamental, dado que, por um lado, a realização de um direito fundamental inclui, em alguma medida, a possibilidade de se dispor dele, inclusive no sentido de sua limitação, desde que esta seja uma expressão genuína do direito de autodeterminação e livre desenvolvimento da personalidade individual, e porque, por outro lado, através da renúncia o indivíduo prossegue a realização de fins e interesses próprios que ele considera, no caso concreto, mais relevantes que os fins realizáveis através de um exercício positivo do direito". [02]
Para o professor lusitano, a própria noção de livre desenvolvimento da personalidade, a autonomia individual, para além da própria dignidade da pessoa humana (núcleo essencial), integra o núcleo material de todos e cada um dos direitos fundamentais no Estado de Direito.
A autonomia, autodeterminação individual, decorrente do Estado de Direito, deve garantir ao indivíduo a prossecução dos fins e objetivos que entende ser os melhores para sua vida, fazendo o uso dos direitos fundamentais que lhe são atribuídos pela Constituição, bem como, quando for o caso, dispondo de tais, renunciando-os, se assim entender conveniente no caminho da construção de seu projeto de vida, para a preservação de sua dignidade, de suas crenças, seus valores morais.
2. É certo que nossa Constituição prevê serem "invioláveis" os direitos fundamentais (artigo 5º, caput), o que, por certo, significa que tais direitos não podem ser violados de maneira ilegítima por terceiros.
Não podemos interpretar esse preceito de modo a impedir que o titular de um dado direito fundamental renuncie a tal, buscando atingir fins constitucionalmente legítimos, que podem estar também, e certamente estarão, garantidos por outras normas de direitos fundamentais.
Direitos fundamentais são disponíveis por parte de seus titulares, e a cláusula constitucional de inviolabilidade não é contrária a isso.
Tratando do direito à vida, direito fundamental por excelência, diz Roberto Dias, professor de Direito Constitucional da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo:
"Com isso, pretende-se assentar a ideia de que a previsão constitucional acerca da "inviolabilidade" do direito à vida se destina a impedir que as pessoas não tenham a sua vida ceifada arbitrariamente. Todavia, não significa que tal direito seja indisponível e que, portanto, as pessoas não possam escolher seus caminhos no que diz respeito à própria vida e à própria morte". [03]
Também são renunciáveis. Assim, segundo Virgílio Afonso da Silva, professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo:
"No âmbito dos direitos fundamentais, por sua vez, a possibilidade de renúncia costuma ser rejeitada de pronto. Quando se mencionam as principais características dos direitos fundamentais, costuma-se falar em inalienabilidade, imprescritibilidade e irrenunciabilidade...não é difícil encontrar contra-exemplos que demonstrem as limitações da aceitação absoluta dessas características...parece possível encontrar um sem número de casos em que a irrenunciabilidade dos direitos fundamentais – e também a sua inalienabilidade e imprescritibilidade – são colocadas em xeque". [04]
O Autor ilustra sua argumentação com alguns exemplos, dentre eles o homem ou mulher que entra para seminário, renunciando ao direito de constituir família; ainda, a pessoa aprovada em concurso público que, aceitando o cargo de juiz, renuncia ao direito fundamental referente ao livre exercício de qualquer trabalho, na medida em que somente poderá exercer uma atividade de magistério (art. 95, parágrafo único, I da CF).
3. Ademais, sabemos que nossa Constituição prevê inúmeros direitos fundamentais, sendo possível, até mesmo previsível, a colisão no caso concreto.
Pois bem, para a solução de eventual colisão entre direitos fundamentais, e buscando não resolvermos o problema com a mera revogação de algum deles ante a incompatibilidade com outro no caso concreto – já que isso seria contrário ao sistema constitucional –, devemos levá-los em conta, ao menos a grande maioria, como normas veiculadas por princípios (mandamentos de otimização), cuja exigência de máxima realização/aplicação de acordo com as possibilidades fáticas e jurídicas do caso concreto, leva ao necessário sopesamento, mediante o critério da proporcionalidade.
Ora, com suporte no critério da proporcionalidade os direitos fundamentais/princípios em colisão serão ponderados, sopesados, o que demonstra não serem absolutos, mas sim relativos.
Sempre que o exercício de determinado direito fundamental levar a agressão de outro, entrará em cena a ponderação, de modo que um deles, especificamente para o caso concreto, cederá ante a aplicação do outro. E desde esse raciocínio, resta claro a possibilidade de renúncia a um direito fundamental, tendo em vista a aplicação de outro que, no caso concreto, terá prevalência.
Sobre o sopesamento de direitos fundamentais, novamente Roberto Dias, já em outra obra:
"Como se nota, numa série de situações a Constituição trata um direito como inviolável e isso não significa que ele não seja passível de ponderação, pois os princípios que veiculam esses direitos, quando em colisão, exigem que se faça uma análise das condições sob as quais um deles deve preceder ao outro, realizando um sopesamento de modo a harmonizá-los". [05]
Essas as razões pelas quais entendemos ser plenamente possível a renúncia a direitos fundamentais. É um direito de cada pessoa titular de uma posição jurídica consubstanciada em direito fundamental.
Todavia, por óbvio, deve-se ter em mente que somente o titular de um direito fundamental pode renunciá-lo, já que somente o titular de um direito deve poder dispor de tal. Não pode uma pessoa não titular de determinado direito fundamental dispor deste direito, como no caso de pais em relação a direitos fundamentais de filhos incapazes ou relativamente incapazes. Essa renúncia não deve ser tolerada. Aliás, sequer trata-se de renúncia, pois esta pressupõe abrir mão de posição jurídica própria, e não de terceiros.
Além disso, necessário, ainda, que o ato de disposição praticado pelo titular do direito fundamental seja uma renúncia voluntária, sem vícios ou qualquer tipo de constrangimento. Do contrário, não será manifestação da autonomia e livre desenvolvimento da personalidade, com o que também não deve ser tolerada.
Por último, o importante é que, sendo os direitos fundamentais normas veiculadas por princípios, é possível o controle de toda renúncia com base no critério da proporcionalidade. Assim, sempre que renúncia causar a anulação de sua razão mesma de existir (dignidade da pessoa humana, autonomia do indivíduo e livre desenvolvimento da personalidade), deverá ser rechaçada.
Notas
- SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 181.
- NOVAIS, Jorge Reis. Direitos fundamentais: trunfos contra a maioria. Coimbra: Coimbra Editora, 2006, p. 235.
- DIAS, Roberto, "Disponibilidade do direito à vida e eutanásia: uma interpretação conforme a Constituição". In IKAWA, Daniela; PIOVESAN, Flávia; FACHIN, Melina [Coords.]. Direitos humanos na ordem contemporânea: proteção nacional, regional e global. Curitiba: Juruá, 2010, v.4, p.160.
- SILVA, Virgílio Afonso da. A constitucionalização do direito: os direitos fundamentais nas relações entre particulares. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 61-62.
- DIAS, Roberto. A dignidade da pessoa humana e o testamento vital no ordenamento constitucional brasileiro. In: BERTOLDI, Márcia Rodrigues; OLIVEIRA, Kátia Cristine Santos de (Coord.). Direitos fundamentais em construção: estudos em homenagem ao ministro Carlos Ayres Britto. Belo Horizonte: Fórum, 2010, p. 107.
Nota de atualização
25novembro2013
TESTAMENTO VITAL
Paciente pode rejeitar cirurgia que salvará sua vida
O paciente que desiste da vida, preferindo morrer a se submeter à cirurgia, tem a sua autonomia da vontade reconhecida na Resolução 1.995/2012 do Conselho Federal de Medicina. Esta manifestação, chamada pela norma de Testamento Vital, diz que não se justifica prolongar um sofrimento desnecessário em detrimento da qualidade de vida do ser humano.
O entendimento levou a 1ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul a confirmardecisão que garantiu a um idoso o direito de não se submeter à amputação do pé esquerdo, que viria a salvar sua vida. Assim como o juízo de origem, o colegiado entendeu que o estado não pode proceder contra a vontade do paciente, como pediu o Ministério Público, mesmo com o propósito de salvar sua vida.
Além da Resolução do CFM, o relator da Apelação, desembargador Irineu Mariani, afirmou no acórdão que o direito de morrer com dignidade e sem a interferência da ciência (conhecida como ortotanásia) tem previsão constitucional e infraconstitucional.
Explicou que o direito à vida, garantido pelo artigo 5º, caput, deve ser combinado com o princípio da dignidade humana, previsto no artigo 2º, inciso III, ambos da Constituição Federal. Isto é, vida com dignidade ou razoável qualidade. Entretanto, em relação ao seu titular, o direito à vida não é absoluto, pois não existe obrigação constitucional de viver. Afinal, nem mesmo o Código Penal criminaliza a tentativa de suicídio.
No âmbito infraconstitucional, Mariani citou as disposições do artigo 15 de Código Civil: “Ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica’’.
‘‘Nessa ordem de ideias, a Constituição institui o direito à vida, não o dever à vida, razão pela qual não se admite que o paciente seja obrigado a se submeter à cirurgia ou tratamento’’, concluiu, sem deixar de considerar que o trauma da amputação pode causar sofrimento moral. O acórdão foi lavrado na sessão dia 20 de novembro.
Álvará judicial
O Ministério Público ingressou na Justiça estadual com pedido de Alvará Judicial para suprimento da vontade do idoso e ex-portador de hanseníase (lepra) João Carlos Ferreira, que mora no Hospital Colônia Itapuã (HCI), localizado em Viamão, município vizinho a Porto Alegre.
Diagnosticado com necrose no pé esquerdo desde 2011 e em franco definhamento, ele vem recusando a amputação, cirurgia que poderia salvar a sua vida. Se não o fizer, corre o risco de morrer por infecção generalizada. O idoso, de 79 anos, não apresenta sinais de demência, mas foi diagnosticado com quadro de depressão.
Conforme o laudo da psicóloga que o atende, ‘‘o paciente está desistindo da própria vida vendo a morte como alívio do sofrimento”. Assim, segundo o MP, o paciente estaria sem condições psíquicas de recusar o procedimento cirúrgico. Em síntese, a prevalência do direito à vida justifica contrapor-se ao desejo do paciente.
O juízo da Comarca de Viamão indeferiu o pedido de amputação, negando a concessão do Alvará. Argumentou que o paciente é pessoa capaz, tendo livre escolha para agir e, provavelmente, consciência das eventuais consequências. Assim, não cabe ao estado tal interferência, ainda que porventura possa vir a falecer. Desta decisão é que resultou recurso de Apelação ao TJ-RS.
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