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Do clientelismo ao "habitus" precário: permanências e perspectivas para política no Rio de Janeiro

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Agenda 03/03/2011 às 09:37

Considerações finais

Podemos identificar através da leitura que se faz sobre o que seria a tal "tríade meritocrática" – qualificação, posição e renda -, que os processos de reconhecimento sobre as necessidades no "habitus precário", por parte do poder público, se apresentam tão míopes quanto o olhar que constrói o entendimento sobre o que é ser cidadão pleno.

Os dados demonstram o alto grau de vulnerabilidade que os subúrbios da cidade estão submetidos. Escancara a enorme dificuldade que a estrutura estatal apresenta para implementar, gerenciar e avaliar políticas institucionalizadas e universais para esta população. Na sua incapacidade de provisão, o Estado reifica o quadro de desigualdades, consequentemente, as máquinas políticas que se instalam com maior força, cumprindo um papel personalista e "eficiente" da dinâmica política.

Diante de tal precariedade, Diniz reflete sobre os processos internos das máquinas políticas que orientem, e dão sentido, às ações individuais e de grupo. Em sua exposição sobre as "recompensas intangíveis" nos fala sobre os "incentivos solidários", subdivididos em específicos e coletivos, e que estariam relacionados aos bens de natureza indivisível. Estes acarretariam no benefício de todos os que integram o grupo, indiscriminadamente. Prestígio, visibilidade do grupo, a sociabilidade e o espírito de grupo seriam exemplos destes incentivos.

Contudo, percebemos que muito mais que prestígio e bens simbólicos – não menos importante para análise das demandas -, esta população ainda busca o atendimento de bens essenciais para que sua vida seja no mínimo decente. A dependência da "graça" para bens essenciais (saúde, educação, saneamento etc.) ainda se evidencia de forma estarrecedora.

Weber (2003) afirma que "supõe-se na realidade que a obediência dos súditos é determinada pelo temor ou pela esperança", onde suas demandas de fato serão atendidas. Como se somente estes líderes fossem capaz de mudar sua realidade, mesmo de forma imediata e finita. Resultado da profunda e histórica assimetria entre os atores envolvidos na arena política.

Neste ponto, podemos utilizar os três tipos puros de dominação desenvolvidos por Weber (2003) para demonstrar como as estruturas das máquinas não só se definem por relações carismáticas, como também se legitimam sobre o discurso da legalidade, embasados por um resgate histórico – tradição – dos subúrbios:

"...em princípio existem três justificações internas como fundamentos da legitimação da dominação. Em primeiro lugar, a autoridade do passado eterno, ou seja, dos costumes consagrados por meio de validade imemorial e da disposição de respeitá-los. É a dominação tradicional exercida pelo patriarca ou pelo príncipe patrimonial de outrora. Há também a autoridade do dom da graça, em que se fundam os poderes extraordinários de um indivíduo (carisma). Essa dominação tem como fundamento a devoção e a confiança absolutamente pessoais na revelação, no heroísmo ou em outras qualidades de caráter eminentemente pessoal. Essa é a dominação carismática, tal como é exercida pelo profeta ou – no campo da política – pelo chefe guerreiro eleito, pelo grande demagogo, e pelo chefe de um partido político. Finalmente, temos a dominação imposta por meio da legalidade, fundada na crença da validade do estatuto legal e da competência funcional baseada em normas racionalmente definidas. Essa é a dominação exercida pelo moderno servidor do Estado e por todos os detentores do poder a ele assemelhados." (WEBER, pg.11)

Nos subúrbios temos sempre presente uma "atmosfera" de dominação tradicional. O elo entre a figura do parlamentar e as origens de um passado pautado numa tradição familiar. Principalmente na Zona Oeste da cidade, onde tais espaços foram concebidos a partir de uma estrutura agrária, a relação patriarcal ainda exerce relativo peso nas relações sociais entre o parlamentar e a comunidade. Estes líderes, dotados de qualidades carismáticas, se apresentam como "solucionadores" de todos os problemas da comunidade. Como vimos, são eles que "abrem as portas" para o acesso aos bens de consumo e serviço institucionais.

Ainda, como precisam estar em consonância com as diretrizes político-partidárias e o discurso da "política moderna", profissionalizam suas ações através de centros de assistência, dando assim um caráter institucional ao atendimento, mesmo que seja por meios de recursos privados. O parlamentar passa a ser a figura da política na região, estabelecendo um vínculo permanente de dependência entre as partes.

Neste aspecto, a configuração social dos subúrbios cariocas estaria "preparada" para os tipos ideais apresentados por Weber. Ambiente adequado para práticas assistencialistas e clientelistas de atendimento das demandas, conseqüentemente, consolidação das bases eleitorais.

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Para uma possível superação das relações que impedem que sujeitos assimétricos politicamente se coloquem de maneira equânime na esfera pública, ou nas próprias arenas deliberativas, faz-se necessário que políticas públicas promovam ações que "libertem" de fato os "inaptos".

Que libertem das esteriotipações e insiram os sujeitos paridade de posicionamento e reconhecimento, independente da sua qualificação, posição ou renda. A cidadania se desenvolverá justamente nos processos de constituição e firmamento das identidades dentro de espaços adequados para a deliberação, formulação, fiscalização e acompanhamento das políticas públicas. Enfim, para a prática democrática.

Segundo Souza (2006) a população que se situa dentro desta precarização social, ou do "habitus precário", continua não incorporada ao processo de desenvolvimento da nossa sociedade. Os mesmos negros e trabalhadores rurais que não possuíam qualidades essenciais para se inserirem a estrutura burguesa, que se apresentava como solução pra o nosso atraso no início do século XX, permanecem a margem de todo processo. Continuam não atendendo às demandas que uma sociedade de tipo moderno e competitivo precisa para crescer e se desenvolver como "celeiro do mundo no século XXI". E assim continuamos acreditando no "fetiche" do crescimento econômico como solução do nosso atraso secular, como se este fosse por si só resolver o grave problema de distribuição de renda do país.

Souza (2003), para justificar seu argumento, se utiliza da obra de Florestan Fernandes (1978) - A integração do negro na sociedade de classes – para mostrar que o projeto burguês para desenvolvimento do país, que se apresentou como alternativa à política dos grandes coronéis, não foi capaz de absorver grande parcela da nossa sociedade, principalmente descendentes de escravos e trabalhadores rurais, configurando ambiente propício para perpetuação de tais relacionamentos assimétricos.

Segundo Florestan, negros e mulatos tiveram o pior ponto de partida rumo ao "progresso", na transição da ordem escravocrata para a ordem competitiva. Foram abandonados a própria sorte pela Igreja e pelo próprio Estado. Consequentemente gerou-se um cenário de drama social sobre os processos de adaptação do liberto a nova conjuntura que se apresentava.

Não só os negros, como todos os indivíduos que viviam em função de uma estrutura rural e se viam neste momento numa nova realidade. Onde os valores do progresso e da modernidade estavam longe de suas realidades cotidianas. De certa forma, se incorporarmos os estratos "despossuídos" e os "dependentes" em geral, de qualquer cor, às condições de inadaptação ao novo modelo de organização social, podemos afirmar que a população negra estava compatível com a dos dependentes rurais brancos.

Contudo, por outro lado, se pensarmos que da mesma forma que seus corpos e mentes não foram enxergados como aptos para o desenvolvimento destas atividades que configurariam este mundo moderno do trabalho, também suas intersubjetividades e seus valores organizacionais não foram enxergados, assimilados e entendidos por aqueles que detinham no momento maior grau de relevância no mercado e na política.

É justamente este ponto que considero importante para me contrapor à perspectiva de Souza. É evidente que sujeitos que estão em espaços onde a vida se apresenta cada vez mais precária tendem a provocar o desconforto social das classes média e alta da sociedade, e na maioria das vezes, como afirma o sociólogo brasileiro, a indiferença [18].

Sem dúvida que Souza apresenta argumentos fortes e pertinentes para legitimar sua idéia sobre "invisibilidade da pobreza". Contudo, é importante definirmos bem de quem estamos falando, de que local as construções ideais surgem e para quem, ou com que grupo estamos dialogando.

Quando consideramos que parcelas da sociedade não possuem um "tipo de personalidade e de disposições de comportamento que não atendem às demandas objetivas para que, seja um indivíduo, seja um grupo social, possa ser considerado produtivo e útil em uma sociedade de tipo moderno e competitivo, podendo gozar de reconhecimento social com todas as suas dramáticas conseqüências existenciais e políticas" (SOUZA, 2003), estamos falando de um lugar burguês da vida.

É neste sentido que talvez possamos utilizar o conceito de habitus utilizado por Bourdieu. O habitus que traz a noção de ação, seu caráter ativo, a héxis que constitui o "primado da razão prática", já identificado na obra de Aristóteles. A sua "disposição prática", que mesmo que seja permanente e costumeira, automática, não se desconsidere a possibilidade de mudança e transformação.

Como foi dito, e que vale a pena ressaltar, considerar o ‘lado ativo’ do conhecimento prático... sair da filosofia da consciência sem anular o agente na sua verdade de operador prático de construção de objeto". (BOURDIEU, 1989:61)

Na teoria de Souza, não se considera qualquer outro tipo de conjunto de valores que organize, construa, permeie as relações intersubjetivas e mais, que se contraponha a ditadura das formas de pensar do mundo "moderno". Isso porque, o autor considera essencialmente o olhar "de fora" como referência para construção de um entendimento "de dentro".

Jessé afirma que os sujeitos do habitus precário estariam condenados a uma "não-civilidade" permanente, uma condição natural de "selvagens", pois, a naturalização da desigualdade periférica não chega à consciência de suas vítimas, precisamente porque está construída sob os pilares valorativos da impessoalidade, peculiarmente, opacas e intransparentes (SOUZA, 2003:179).

Como nossa sociedade faz-se sob valores da modernidade, instrumentalizados pela individualidade impessoal e sedimentados sobre a tal "tríade meritocrática", os próprios "precários" reproduziriam tais comportamentos, e se enxergariam de fato como "subcidadãos", reificando relações de dominação e distinção, tornando-as inalteradas e fadadas à eternidade.

Contudo, poderíamos pensar também que estes espaços estruturam e são estruturados sob um conjunto de valores – como a solidariedade, o compromisso e a parceria – justamente por estarem nesta condição "precária". Poderíamos pensar em um habitus solidário...

Este habitus seria o espaço de trocas mais comunitaristas, que emprega outra dinâmica social de compromisso coletivo dentro da precariedade de serviços. No habitus solidário poderíamos inserir comunidades ribeirinhas, favelas do Rio de Janeiro - da Zona Sul ou do Subúrbio -, comunidades indígenas, quilombolas e todos os agrupamentos que de certa forma não estão inseridos, segundo Souza, no entendimento do que seria o "homem moderno", autocontrolado, equilibrado e prospectivo.

É claro que precisamos sempre levar em consideração as especificidades de cada agrupamento, dentro dos seus conjuntos valorativos, culturas e percepções. E também é óbvio que estes espaços não estão descolados do tempo e espaço que se vive, com todos os seus prós e contras da modernidade (ou pós-modernidade, para os autores modernos...). No entanto, identifico neles possibilidades para organização que se contrapõem aos determinismos comunitários e identitários da classe média brasileira.

Talvez Souza, em grande parte da sua construção teórica se remeta a parcelas sociais onde precarizaçãoda vida chegou a estágios extremos – como em casos de moradores de rua em situação de dependência química, alcoolismo etc., onde a tendência dos que olham seja a de ignorar ou até mesmo "naturalizar" tal situação.

Contudo, até mesmo dentro desta "ralé" ainda se constituem vínculos de solidariedade, compromisso e parceria, valores cada vez mais distantes do mundo burguês. Estes sujeitos e seus grupos não estão condenados. Faz-se necessário o reconhecimento por toda sociedade das relações de coesão que os sujeitos se utilizam para amenizar as dificuldades da vida.

Participação e controle social na política institucional

Mas uma questão ainda permanece: como fazer com que as assimetrias sociais sejam superadas nos processos de formulação das políticas públicas e no atendimento das demandas sociais? Como superar as relações clientelistas, e que consequentemente, impede que os sujeitos sejam incorporados aos processos de participação política mais equânime?

Um dos pontos que dificultam a formação de uma esfera pública capaz que superar as questões mencionadas, e consequentemente, reformular o conceito de participação efetiva dos cidadãos de forma menos assimétrica, é justamente o modelo democrático liberal como padrão de democracia moderna.

A idéia de participação ainda está muito restrita ao modelo liberal, onde processo democráticocumpre o dever de fazer do Estado um corpo burocrático e técnico, programado para "agregar e impor os interesses sociais privados", estruturado em termos de uma "economia de mercado e de relações entre pessoas privadas", entendendo a sociedade como um sistema.

Além disso, uma democracia pautada na competição eleitoral, onde o mercado impõe as regras de disputa, distinguindo e impossibilitando que o processo se desenvolva de maneira equânime e justa.

Para este cenário, na tentativa de se imprimir outro tipo de relação entre os sujeitos assimétricos, Telles (1994) traz como contribuição para o desenvolvimento de uma nova esfera pública a necessidade se constituir espaços públicos onde as diferenças poderão se expressar, onde "valores circulam, argumentos se articulam e opiniões se formam", trazendo para dimensão da vida "uma moralidade pública" que se constitui a partir de uma "convivência democrática com as diferenças e os conflitos que elas carregam", exigindo a cada momento "o exercício dessa capacidade propriamente moral de discernimento entre o justo e o injusto".

Neste sentido, podemos apresentar os conselhos municipais [19], fóruns, conferências, colegiados etc. como espaços da recente democracia brasileira que possibilitam a deliberação, a participação e controle social dos "cidadãos comuns" [20].

Para a superação das relações assimétricas nestes espaços será fundamental que os padrões de reconhecimento dos atores com maior capital econômico político, social e cultural também se alterem, proporcionando maior equidade da participação política, consequentemente, ampliando e aprofundando o controle social por parte da população que historicamente esteve alijada do processo de participação.

Neste sentido, reitero o argumento de Nunes (1997) sobre a necessidade de construção de um sistema de valores que promova mecanismos de acesso aos bens e serviços públicos a partir de critérios universalistas, e não, pessoais. As práticas políticas precisam se constituir sob caráter institucional, onde a cidadania não será vista como dádiva, mas como valor conquistado.

Sobre o autor
Bruno Coutinho de Souza Oliveira

Cientista Social (especialização em sociologia política); mestrando em Políticas Sociais - Escola de Serviço Social - Universidade Federal Fluminense

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

OLIVEIRA, Bruno Coutinho Souza. Do clientelismo ao "habitus" precário: permanências e perspectivas para política no Rio de Janeiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2801, 3 mar. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/18608. Acesso em: 5 nov. 2024.

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