Resumo
Baseado no referencial teórico sobre o funcionamento da democracia contemporânea brasileira, este trabalho tem como objetivo apresentar algumas definições sobre o conceito de clientelismo – consequentemente suas formas de organização social e política - e as dificuldades para se consolidar uma cultura de participação popular autônoma, desvinculada das lideranças legislativas locais e seus centros privados de assistência social. O objetivo deste trabalho é demonstrar como as desigualdades econômicas e sociais interferem decisivamente na manutenção e na formulação de novas formas de participação e deliberação políticas, inclusive para consolidação de novos líderes políticos locais. A partir desta constatação o conceito de habitus será desenvolvido para que possamos verificar até que ponto este conjunto de "dispositivos naturais pré-reflexivos" e suas demandas condicionam e / ou impedem a construção de uma esfera pública pautada na equidade de reconhecimento e participação. Para o desenvolvimento empírico deste trabalho, serão apresentados dados que demonstram realidades distintas entre duas regiões do município do Rio de Janeiro: Zona Sul e Zona Oeste. Como suas realidades podem interferir decisivamente nos tipos de políticas, na participação, e consequentemente, nos resultados.
Palavras-chave: clientelismo, habitus, participação, reconhecimento.
Introdução
Podemos observar que ao longo das décadas a decadência da prestação de serviços públicos, principalmente nas regiões mais afastadas do centro do Rio de Janeiro – subúrbios e periferias -, tem proporcionado o surgimento de "alternativas" de atendimento imediato, como os vários núcleos ou centros privados de assistência social, espalhados pelos subúrbios cariocas.
Esses espaços de assistência se desenvolveram em conseqüência da incapacidade dos governos (municipal, estadual e federal), e seus instrumentos implicadores de bem-estar social, em atender as necessidades destas populações, em sua maioria carente de "mínimos sociais" [01]. Saúde, educação, trabalho, transporte, lazer, e todo o básico da vida individual e coletiva, são apresentados e geridos, em suas instâncias de aplicação, de forma precária e insuficiente – quando existem - no que diz respeito a uma prática universalizante e igualitária dos acessos aos serviços citados.
Diante deste cenário, percebe-se o crescimento do número de parlamentares que desenvolvem projetos sociais de cunho pessoal, visando o atendimento destes pleitos [02], individuais e coletivos, não contemplados de maneira plena pelos recursos sociais oferecidos de forma institucional. Com a implementação de projetos que visam o atendimento destes pleitos, devido a precarização de uma universalização dos acessos, parlamentares acabam se orientando sob a perspectiva do fortalecimento e desenvolvimento de sua base eleitoral.
Em seus centros de assistência social, instalados preferencialmente nas periferias e nos subúrbios do Rio de Janeiro, estes parlamentares se apresentam como executores diretos de benefícios para população local, estabelecendo um elo estreito entre as partes, o que ocasiona inclusive votações bem expressivas e concentradas nestas regiões (KUSCHNIR, 1996). Este movimento político, muitas vezes caracterizado como máquina política [03], tem se apresentado como uma alternativa real à incapacidade dos mecanismos institucionais em disponibilizar serviços universais de atendimento efetivo nas regiões mais afastadas dos centros de decisões.
Cada vez mais, onde se torna evidente a precariedade de atendimentos universais, bem evidenciado em diversos estudos sobre políticas sociais, torna-se claro o conjunto de ações que visam o atendimento de demandas da população através do personalismo, numa relação patron-cliente. Máquinas políticas se formam buscando atuar diretamente na viabilização destes recursos, através de seus representantes e de todo corpo integrante destas organizações partidárias. Somente através de um "conhecimento" [04] - elemento fundamental para que a estrutura de atendimento personalizado se desenvolva de maneira efetiva, explorado com maior profundidade no capítulo I - o sujeito tem a "garantia" de que suas demandas serão ouvidas e atendidas.
Muitas vezes, devido ao serviço que esses parlamentares oferecem através de seus centros de assistência social, observamos pessoas, até mesmo famílias inteiras, batendo em suas portas para pedir um "favor". Alguém que o "encaixe" no hospital, arrume um "bico" ou uma vaga de escola. Este tipo de relacionamento entre representantes e seu eleitorado acaba criando certa "intimidade" e dependência entre as partes, numa relação viciosa entre demanda e número de votos.
O capítulo I visa justamente apresentar a definição deste clientelismo como forma ou prática assimétrica de relacionamento entre os atores – eleitores e parlamentares – na dinâmica política, na busca por maximização dos interesses entre as partes, nas formas como se apresentam as soluções, como estas máquinas se organizam em sua dinâmica no cotidiano e como os vínculos se estabelecem a partir da diversificação das demandas clientelistas. Isto se dará, como veremos mais adiante, justamente pela falta de um processo que abarque de maneira indiscriminada todo o conjunto da população que necessita, principalmente, de atendimento público em serviços essenciais.
Diante deste cenário, que será detalhado ao longo do trabalho, poderíamos perguntar: por que na política brasileira, no caso, nos subúrbios do município do Rio de Janeiro, estas relações personalistas se mantêm de maneira tão forte e permanente? Por que o processo de desenvolvimento da cidade ocorreu de forma, no mínimo diferente, onde na Zona Sul se verifica serviços de transporte, saúde, escola e lazer, mais acessíveis à população, enquanto nos subúrbios – bairros que seguem a linha do trem e que há menos de um século ainda eram áreas rurais - depende-se ainda da ajuda de um parlamentar influente para realização das mesmas demandas?
Em áreas mais nobres da cidade as relações clientelistas também se apresentam como instrumentos da política. Mesmo em regiões onde se verifica um nível de desenvolvimento alto – como a Zona Sul do Rio que possui IDH [05] = 0,929 – tais parlamentares tentam criar elos mais estreitos entre eles e seus eleitores, principalmente em comunidades carentes. As relações de troca sempre vão ocorrer, sendo estas "um atributo variável de sistemas políticos macro e podem conter (em) maior ou menor dose de clientelismo nas relações entre políticos". (CARVALHO, 1997)
Contudo, estas regiões mais "nobres" apresentam dados, que mostram uma estrutura onde seus moradores se encontram em uma posição econômica, social e cultural que impede – ou restringe - que tais parlamentares sejam a única via de acesso aos bens de serviço e consumo.
O capítulo II terá como objetivo discutir conceitos que caracterizam a precariedade, e o alto grau de desenvolvimento dos espaços, dando conta das configurações e de suas tradições na organização social. A noção de habitus desenvolvida por Pierre Bourdieu (2005) – "sistema das disposições socialmente constituídas que, enquanto estruturas estruturadas e estruturantes, constituem o princípio gerador e unificador do conjunto das práticas e das ideologias características de um grupo de agentes" - será fundamental para tal empreendimento.
Da mesma forma, o mesmo conceito reinterpretado e aprofundado pelo sociólogo Jessé Souza (2006), no qual conceitua como habitus precário, será apresentado e problematizado, tendo como perspectiva a possibilidade de identificarmos elementos e ferramentas que possibilitem (ou pelo menos apontem) para construção de um habitus menos "precário" e mais "solidário".
O fato desses sujeitos não possuírem determinados "pressupostos do homem moderno" não significa que as relações sociais estejam exclusivamente pautados (e condenadas) sob os valores do mercado e do poder.
A meta é apontar para a necessidade de se criar um espírito crítico sobre legitimação da desigualdade, o que me leva a crer que construiríamos entendimentos mais sensatos sobre as formas de injustiças, a partir da "destruição de padrões sociais de comportamento e interpretação tidos como consensos cristalizados permeados por preconceitos". (MATTOS, 2004).
O objetivo neste ponto é pensar condições mais equânimes para a relação entre representantes legislativos, comunitários (político) e a população na participação das decisões políticas.
No capítulo III apresento dados que mostram a diferença entre bairros da Zona Sul e da região de Campo Grande, subúrbio do Rio de Janeiro, no que diz respeito à qualificação, posição e renda de suas populações. Serão comparados números que evidenciam a constituição de "tipos diferenciados de cidadãos", consequentemente de suas regiões. Poderemos constatar quantitativamente características que proporcionaram a "legitimação" de um ambiente propício para a prática de determinadas políticas sociais que evidenciam a distinção entre os subúrbios cariocas e as áreas mais nobres da cidade.
Concluindo, problematizarei a forma como se constituem as diferentes formas de percepção sobre o cidadão, como ele é reconhecido e como o enxergamos na orientação de sua busca pelo atendimento de suas demandas. Como pensamos a diversidade que possibilitou a constituição de nossa sociedade, em todo seu processo de incorporação ou não das diversas camadas sociais, e lógico, como vislumbramos a possibilidade de constituirmos novas formas de percepção da cidadania.
Capítulo I
Formas e práticas clientelistas
Sobre o comportamento clientelista, predomina certo consenso de que as relações assim denominadas se caracterizam especialmente por serem relações do tipo assimétricas, isto é, são estabelecidas entre pessoas que não possuem o mesmo grau, poder e status social. Além disso, ela se distingue por ser uma relação do tipo pessoal, em que predominam os contatos face a face, pela troca de serviços / bens materiais e imateriais – gentilezas, deferência, lealdade e proteção - entre os que se relacionam e pelo seu conteúdo moral, que remete freqüentemente à honra dos parceiros [06].
A noção de clientelismo foi originalmente associada aos estudos de sociedades rurais onde a relação social sempre foi marcada por contato pessoal entre os coronéis locais e os camponeses [07]. Estes últimos se encontravam em situação de subordinação, dado que não possuíam terra. Estavam sempre a "um passo da penúria", onde a desigualdade desempenhava "um papel-chave na sobrevivência tanto de coronéis quanto de clientes", gerando uma série de laços pessoais entre eles, do "compadrio" à proteção e lealdade política. (NUNES, 1997).
Na política contemporânea, o clientelismo ainda exerce papel fundamental no exercício das funções políticas, no que tange principalmente a orientação do parlamentar na obtenção de recursos cada vez maiores, junto ao executivo, através de emendas orçamentárias e participação nas Comissões de Orçamento, proporcionando-lhes possibilidades de aprovação e aplicação destes recursos em obras e projetos de cunho social em suas bases eleitorais.
Dentro do aspecto da demanda dos que proporcionam os serviços à população, além do status que também adquirem perante seu eleitorado diante dos atendimentos concedidos, esses parlamentares procuram fortalecer as suas bases eleitorais com mecanismos de atendimento eficaz, muitos deles conhecidos como centros de assistência. As bases eleitorais podem se entendidas como:
"Aquela rua que você mora, o bairro que você mora, a cidade que você mora, é aquela cidade onde você tem o vereador que é seu conhecido, que é seu amigo, tem o líder da Igreja que é seu amigo, o presidente da associação de moradores, da associação de bairros que é seu amigo... lugar onde você vai à festinha, à festa junina... é aonde, naturalmente, você volta e direciona sua atividade parlamentar." Depoimento de um deputado do PMDB-ES. (BEZERRA, 1999).
Contudo, BEZERRA (1999) chama a atenção, para o caráter móvel das bases, pois, elas nem sempre remetem a uma realidade fixa, podem representar uma rua, como um bairro ou uma cidade. Estão muito mais ligadas a um espaço das relações sociais do que propriamente ao espaço geográfico ora situado. O parlamentar vincula-se especialmente através de relações de amizade, conhecimento e compadrio. São os meios encontrados para que possam se inserir nas localidades, conservando permanentemente o contato com a base.
Esta relação também se efetua por meio da participação em atividades coletivas, isto é, que mobilizam e agregam os moradores como o futebol, as festas e a igreja. Como demonstrado por KUSCHINIR (1999), estes eventos criam laços de identificação mútua, construindo vínculos pessoais e conseqüentemente a integração imediata destes parlamentares à comunidade. Se faz fundamental este tipo de trabalho de sujeição ao cotidiano das pessoas comuns para que estas o vejam como pessoas desprovidas de prepotência e arrogância. O parlamentar precisa se tornar mais um neste momento, conquistando assim a confiança do seu eleitorado.
Para NUNES (1997), este comportamento se desenvolve devido a relação patron-cliente [08] estabelecida tanto em sociedades rurais ligadas ao mercado, quanto em centros urbanos capitalistas. O patron é aquele que possui contatos com o mundo exterior e tem comando sobre os recursos políticos externos. Possibilitam a realização de demandas a partir dos recursos que obtém, dos quais dependem os clientes. Logo, dentro destes universos "o mundo econômico e o social se confundem" constituindo assim um "sistema de valores que se sustenta em critérios pessoais e não-universalistas". O clientelismo acaba se configurando como "um sistema caracterizado por situações paradoxais":
(...) primeiro, uma combinação peculiar de desigualdade e assimetria de poder com uma aparente solidariedade mútua, em termos de identidade pessoal e sentimentos e obrigações interpessoais; segundo, uma combinação de exploração e coerção potencial com relações voluntárias e obrigações mútuas imperiosas; terceiro, uma combinação de ênfase nestas obrigações e solidariedade com o aspecto ligeiramente ilegal ou semilegal destas relações (...) O ponto crítico das relações patron-cliente é, de fato, a organização ou regulação da troca ou fluxo de recursos entre atores sociais" (NUNES, 1997: 28)
Centros de assistência e atendimentos
Para que estes vínculos se estabeleçam de fato, é necessário colocar em prática aquilo que o parlamentar se disponibilizou a realizar. Os centros de assistência, por exemplo, funcionam também como porta de entrada para população que precisa que suas demandas essenciais, como acesso a saúde e educação, aconteçam. Muitos parlamentares fazem inclusive o atendimento em sua própria casa, criando um maior vínculo de intimidade com seu eleitorado. São montadas estruturas físicas, com mesas, cadeiras, local de espera e até computadores que armazenam informações cadastrais dos eleitores. Funcionam como escritório destes parlamentares dentro das comunidades em que situam sua base eleitoral.
Em seus centros de atendimento o político local se torna um mediador e facilitador dessas demandas. Adquire notoriedade na comunidade, estabelece seu centro como ponto de convergência de interesses e constrói uma rede de colaboradores [09] que lhe ajudam na efetivação de determinados pedidos. Estes colaboradores são muitas vezes conhecidos como "assessores". São pessoas que atuam de maneira informal e estratégica, que conhecem bem a realidade da comunidade e que "falam a língua" dos moradores destas comunidades, no qual se oferecem tais serviços. Diferem de certa forma dos "conhecimentos", pois estes estão situados em cargos estratégicos dentro das repartições públicas (como veremos em Acessos).
Muitos serviços são prestados diretamente nesses centros. Atividades comunitárias de esporte e lazer, festas, bailes para terceira idade são alguns dos "benefícios" oferecidos pelos centros. Alguns vereadores montam uma verdadeira infra-estrutura particular de esporte e lazer, serviços que são pagos como aluguel de campos de futebol. Estes serviços acabam funcionando como moeda de troca eleitoral, onde os eleitores vêem na figura do legislador a representação do executivo em sua forma mais direta.
Mas para que os parlamentares consigam estes feitos para a comunidade, ele precisa estar bem relacionado com os seus facilitadores também. Este poder se manifestará justamente nas intervenções que fará nos órgãos públicos. Sua autoridade sobre o diretor do hospital, da escola e suas respectivas secretarias, garante vagas, operações, internações, remédios e atenção.
Esses facilitadores são seus conhecidos que trabalham dentro dos órgãos públicos. Além de exercer sua autoridade diante dos diretores e secretários estaduais, ele também precisa conhecer e se relacionar com base em troca de favores, os funcionários que executam seus pedidos ou que detêm o poder direto na linha de frente dos organismos. Estes acessos são os elos fundamentais para que se crie a relação bem sucedida entre solicitante e benfeitor.
Os órgãos públicos estão sempre de portas abertas para o parlamentar, mas na mesma proporção, dificultadas para o resto da comunidade. O que deveria ser procedimental e universal ocorre com a presença, ou indicação, da autoridade parlamentar ao seu conhecido, transformando a rotina em reconhecimento político permanente.
Acessos
Podemos entender acesso como o conhecimento que abre os caminhos para o atendimento dos pleitos. "Ter acesso é o que diferencia os parlamentares das demais pessoas" (KUSHINIR, 1993). Os acessos são fundamentais para que a política clientelista traga resultados satisfatórios para ambos os lados e estabeleça um grau de importância ao político perante a sua comunidade ou base eleitoral. Esses acessos não podem ser comprados, pois os mesmos não têm preço [10]. Para uma vereadora do subúrbio carioca, "poder econômico e poder político são de natureza distinta". Os acessos precisam ser conquistados através de um mandato e das alianças que o envolvem. Se eleito o maior benefício obtido pelo político não é o dinheiro, mas sua posição de intermediário ou "facilitador" [11].
Além da "conquista" do mandato, os acessos são ampliados através de nomeações realizadas pelos parlamentares eleitos. Estes oferecem cargos públicos aos seus aliados que trabalharão em nome dos seus contratantes, configurando uma verdadeira rede de relacionamentos. Segundo Edson Nunes, "estas redes envolvem uma pirâmide de relações que atravessam a sociedade de alto a baixo. As elites políticas nacionais contam com uma complexa rede de corretagem política que vai dos altos escalões até as localidades" (NUNES, 1999). Exercem um papel de intermediários entre os legisladores e os órgãos públicos aos quais estão ligados.
Segundo BEZERRA (1999), ao entrevistar parlamentares e seus assessores, acompanhando seus trabalhos desenvolvidos por seus gabinetes, na Câmara e no Senado, parcela significativa de deputados e senadores considera de tamanha importância e mobiliza grande parte de suas energias para o atendimento de pedidos de caráter particularista (como internações hospitalares, vagas em escolas etc) provenientes do que consideram como suas bases eleitorais [12].
No âmbito municipal, a lógica se apresenta da mesma forma. O vereador se orienta a liberar recursos públicos municipais para que suas demandas possam ser atendidas. Para isso, é necessário que este vereador tenha uma estrutura partidária que esteja em consonância com os objetivos do partido que ocupa vaga majoritária. É fundamental que ele tenha uma base político-partidária bem estruturada na região na qual pretende realizar tais ações.
Para que possamos entender como as relações assimétricas se desenvolvem com tanta eficácia em determinadas regiões faz-se necessário aprofundar o conceito de máquina política desenvolvido por Eli Diniz [13].
Máquinas Políticas
O conceito de máquina política foi amplamente difundido a partir dos estudos realizados e aprofundados pela sociologia e ciência política norte-americanas em estudos sobre a política local, nos grandes centros urbanos e largamente aplicados aos meios rurais. As "máquinas", em sua especificidade, estariam associadas à "prevalência de um estilo de ação essencialmente pragmático e flexível" onde se privilegiaria o peso determinante da legenda no direcionamento do voto, além das táticas eventualmente utilizadas para conquistar adesões e alargar bases de apoio eleitoral.
Em uma primeira análise as máquinas procurariam conquistar e manter o poder basicamente através de ações e métodos pouco lícitos, quando não abertamente ilegais. "Seus objetivos confundir-se-iam com os interesses privados de seus líderes, que, motivados por perspectivas de ganhos pessoais, desconsiderariam quaisquer preocupações de ordem mais geral, ligadas à defesa dos interesses coletivos e do bem público". (DINIZ, 1982:24).
Numa segunda conceituação, esta definição se absteria de uma conotação de natureza ética, assumindo uma postura mais neutra. Diniz utiliza a definição de Gottfried para mostrar esta definição de caráter mais abrangente. Gottfried afirma que "qualquer organização política estável, efetiva, dotada de liderança e hierarquia internas claramente definidas, integrada por membros disciplinados, pode ser considerada uma máquina política" (DINIZ, 1982:24).Seria uma estrutura, segundo outros autores da mesma linha, uma organização partidária caracterizada por uma estrutura centralizada de poder.
Logo, Diniz aponta para dois tipos de percepções acerca do processo partidário local: um ressaltando a importância de se apreender as especificidades da organização e suas implicações, do ponto de vista da competição partidária e a relação com os eleitores, e outra, como um processo diluído pelos efeitos preponderantes de uma imagem partidária consagrada nacionalmente.
Para tentar solucionar uma simplificação de um lado, e a perda de vista do objeto que se pretende investigar de outro, Diniz apresenta a visão relativizada de Gosnell, onde este apresenta aspectos não predatórios da máquina, "evidenciando seus efeitos integradores numa sociedade relativamente dispersa e desmobilizada, marcada por um considerável grau de diferenciação e fragmentação étnico-religiosa" (DINIZ, 1982:25). Com isso, as máquinas atenuariam conflitos de interesses, atenderiam uma gama diversificada de demandas, dando algum tipo de resposta não destrutiva deste tipo de organização política.
Em Merton, Diniz mostra que seu ponto de vista aprofundaria as questões mencionadas por Gosnell. "A despeito de suas origens históricas particulares, a máquina política adquire persistência e estabilidade, na medida em que se torne apta a favorecer os interesses específicos de distintos segmentos da população urbana, satisfazendo necessidades que, de outra forma, tenderiam a permanecer relegadas" (DINIZ, 1982:25). A máquina encararia o eleitor não como abstração, tendo como objetivo vê-lo como uma pessoa real que possui aspirações concretas.
Podemos pensar também que o representante no afã de um atendimento generalizado, o que teria um efeito bastante integrador e de retornos diferenciados, prestaria todo o tipo de assistência e ajuda pessoal, independente do status ou categoria social do solicitante, às diversas camadas e estratos sociais ou grupos representativos de determinada categoria profissional. Este retorno não necessariamente se converte em número de votos, mas em ajuda financeira para campanhas posteriores, publicidade "gratuita", fortalecimento dos acessos etc.
Diniz conclui que, partindo da premissa de que há certo grau de heterogeneidade interna, "qualquer organização politicamente efetiva é uma estrutura híbrida". Contudo, a autora faz questão de estabelecer diferenciações sobre certas técnicas de mobilização política, pois estas podem produzir resultados distintos. Ela procura se orientar à explicitação do princípio organizacional sobre o qual as máquinas políticas baseiam seu funcionamento.
A primeira dimensão apontada pela autora, como mecanismo de estabelecimento diferenciado de mobilização política é a dimensão motivacional. Estas organizações utilizariam este tipo de recurso para através da conquista mantivessem a lealdade dos seus quadros, bem como a fidelidade do conjunto mais amplo de seus seguidores e adeptos.
Com isso, Diniz expõe, a partir da definição de James Wilson, que "máquina política é a organização que se baseia no poder de atração das recompensas materiais", que incluem acesso a "empregos e cargos na administração pública pela manipulação da influência política dos dirigentes e quadros partidários, a obtenção de privilégios de diferentes tipos, desde contratos de fornecimento de bens e serviços para órgãos governamentais, até a maximização das oportunidades de realização de negócios particulares através de contatos políticos e tráfico de influência". (DINIZ, 1982:27).
Podemos evidenciar esta dimensão motivacional a partir de alguns exemplos expostos como: concessão de licença para exploração de transportes coletivos, a realização de obras de melhorias e conservação de estradas, a liberação de fundos públicos, a concessão de contratos públicos etc. Contudo, há diferenciação das demandas atendidas pelos representantes legislativos:
"... para o círculo dos negócios, o chefe político proporciona privilégios e oportunidades especiais que permitem ganhos econômicos imediatos. Para inúmeros outros subgrupos, essa prestação de serviços assume a forma de assistência e ajuda pessoal, envolvendo uma série de situações, desde aconselhamento jurídico, até a distribuição de bolsas ou a obtenção de uma vaga num hospital para internação de um doente, ou ainda a liberação de um empréstimo de emergência em uma agência estatal". (DINIZ, 1982:28).
Uma das táticas mais utilizadas, apontadas em estudos norte-americanos, além da patronagem e a defesa e adoção de medidas ligadas aos interesses e necessidades de segmentos específicos da população urbana, também a aprovação de dotações orçamentárias destinadas a introduzir melhoramentos locais beneficiando determinados distritos e clientelas eleitorais, para ampliar e diversificar suas bases de apoio.
Dinâmica das máquinas: os incentivos e as recompensas
Diniz aprofunda na análise de James Wilson que distingue em três modalidades básicas de incentivos para caracterizar a dinâmica e o estilo de ação das máquinas. São elas: incentivos materiais, "incentivos solidários" – subdivididos em específicos e coletivos -, e incentivos baseados nos propósitos e objetivos da organização.
O primeiro tipo de incentivo seria caracterizado pelos bens adquiridos desta natureza material. A máquina estaria voltada ao atendimento de recompensas, quer pela distribuição de benefícios tangíveis sob seu controle, quer regulando o acesso a esse tipo de benefício. Esses benefícios ainda podem ser classificados como exclusivos ou individuais. O primeiro estaria disponível somente para os membros da organização, que nessa qualidade, adquirem o direito de acesso a bens ou serviços por ela fornecidos ou prestados. Na segunda, aos que concedem num âmbito pessoal como recompensa a contribuições individuais a organização. Salários, empregos, cargos ou contratos seriam exemplos.
No tipo seguinte de distinção estaria relacionado simplesmente ao fato destes indivíduos pertencerem à associação, o que os proporcionariam acesso a "recompensas intangíveis". Os "incentivos solidários" são subdivididos em específicos e coletivos. São específicos quando estão relacionados a concessão ou não de cargos, títulos, honrarias ou deferências pessoais. Coletivos relacionados aos bens de natureza indivisível, que acarretariam no benefício de todos os que integram o grupo, indiscriminadamente. Prestígio, visibilidade do grupo, a sociabilidade e o espírito de grupo seriam exemplos deste tipo de benefício.
A última modalidade se refere a busca por "benefícios intangíveis decorrentes do sentimento de identificação com as metas e os princípios gerais definidos pela organização". Contudo se diferencia da definição de "incentivos solidários coletivos" por buscar benefícios que tenham uma abrangência maior, visando atingir um público mais amplo, se diferenciando das máquinas na medida em que não valorizam apenas ou, sobretudo a incentivos que se revertem exclusivamente em benefício de seus próprios membros ou de clientelas específicas. Estaria relacionada a uma visão mais programática e ideológica dos objetivos e propósitos perseguidos pela organização.
Com isso, Diniz aponta distintas implicações para as quatro modalidades citadas, como graus distintos de constrangimento e influência sobre o incentivo utilizado em sua forma material ou simbólica. Enfatiza o que permeia os tipos de organização política, ou o que motiva tais organizações a agirem de determinada forma: os grupos pragmáticos, voltados para uma ação de incentivos materiais e os programáticos, teriam um "predomínio das motivações de natureza ideológica".
Contudo, podemos perceber que esta divisão não se dá de forma tão estática. Como sugere a própria autora, são "tipos-ideais" que nos servem como delimitadores analíticos de tais comportamentos. Sendo esses tipos de tática não-excludentes, "será portanto, o predomínio, e não a exclusividade, de um determinado padrão, o que permitirá apreender as diferenças apontadas" (DINIZ, 1982). Mesmo nesses grupos que buscam atingir metas de cunho mais programático, ou até mesmo em partidos que historicamente buscam recursos em torno de uma universalização dos atendimentos das demandas, partindo de premissas que apontam ao pensamento de esquerda, tendem a se comportar de maneira local, visando aumentar seus contingentes eleitorais (BEZERRA, 1999).
Weber ao analisar as lideranças políticas destas máquinas nos demonstra a semelhança entre eles e a figura do "boss" americano que seriam os empresários políticos capitalistas. Este empresariado, verificando a necessidade de se cortejar e agradar um número cada vez maior de "clientes", conseqüentemente, aumentando e organizando seu eleitorado, se volta ao caráter permanente de se viver exclusivamente da política, tornando-se um profissional que dirige partidos como empresas, maximizando assim seus "lucros" eleitorais. Estes, para que possam obter "lucros" cada vez maiores, se despem de qualquer tipo de agrupamento ideológico ou classista, tornando sua ação cada vez mais pragmática, objetivando conquistar cada vez mais cargos, mantendo e usufruindo os benefícios do poder. Essa seria a explicação para a ascensão do político profissional.
"Trata-se de um tipo de partido voltado para uma linha de ação essencialmente pragmática, onde as questões de princípio não desempenham um papel central". (DINIZ, 1982:28).
Mesmo havendo certa ênfase dos trabalhos ao trato material das relações entre partidos, membros e eleitores, não significa que em determinados momentos, principalmente em períodos eleitorais, o discurso não seja ampliado, dando um caráter mais abrangente, programático às propostas do partido. Logo, o espaço da ideologia vai variar de acordo o estabelecimento das conexões dentro da organização, com seus membros, com o meio externo, buscando o fortalecimento de bases de apoio e de sustentação.
Vários trabalhos já chamaram a atenção para o esforço dos dirigentes e líderes das máquinas de cidades americanas, no sentido de atrair os votos das classes média e alta, e não só dos estratos urbanos de baixa renda. No afã de obter maior votação entre as classes mais altas as máquinas também desenvolvem relações clientelistas entre as partes.
Sempre que pensamos em trocas assimétricas tomamos como base, talvez pelo processo histórico em que fomos submetidos (no qual ainda fazemos parte), uma relação economicamente diferenciada entre os que oferecem incentivos materiais e os que são beneficiados. Contudo, não podemos desconsiderar, como já foi mencionado desde o início, a diferenciação temática em torno de questões substantivas, de acordo com a articulação de interesses grupais específicos. Há uma estratégia racional, de conteúdo pragmático ou ideológico, em função do tipo de clientela que se busca atingir, e suas demandas que podem ser tanto materiais quanto de natureza indivisível (simbólicas).
O comportamento clientelista também pode se manifestar em partidos conhecidos como "de notáveis". Utilizando o Partido Comunista Italiano como exemplo, Diniz define que o "clientelismo dos notáveis transformou-se num sistema de patronagem baseado numa distribuição maciça de favores e proteção, através de uma ação combinada envolvendo governo e máquina política" onde os "partidos ideológicos podem comportar máquinas ao nível local" (DINIZ, 1982:35). Este tipo de comportamento pode se apresentar tanto em partidos de notáveis quanto nos chamados "partidos de massa".
Com isso podemos pensar que:
"Em sua tipologia, as máquinas são caracterizadas como uma espécie particular de partido político, cujo funcionamento baseia-se principalmente na utilização de incentivos materiais específicos, implicando dispêndio de recursos monetários, ou alocação de bens e prestação de serviços traduzíveis em termos monetários. Tais recompensas podem ser concedidas tanto aos quadros e militantes, quanto a pessoas não integrantes da organização partidária, porém que fazem parte de seu círculo de apoio, tais como eleitores de zonas eleitorais específicas, cidadãos influentes, proprietários de jornais, homens de negócios, entre outros". (DINIZ, 1982:32).