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Do clientelismo ao "habitus" precário: permanências e perspectivas para política no Rio de Janeiro

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Vínculos partidários e diversificação dos clientes

Diniz diferencia as políticas de máquinas em três formas de clientelismo: um clientelismo personalista baseado na relação líder-seguidores, um clientelismo partidário, reforçando a identificação dos eleitores com a sigla partidária e um clientelismo de categorias, que se fundamenta na identificação do eleitor com questões substantivas, ligadas a interesses corporativos, profissionais ou religiosos, isto é, interesses de categorias específicas.

No fundo estes tipos de clientelismo se manifestam de forma não-excludentes. Cada tipo será viável dentro das possibilidades e dos objetivos que os líderes partidários considerarem adequadas para o momento. Num mesmo grupo ou partido, estas relações ocorrerão de forma simultânea, cada uma delas mais evidenciadas em determinados grupos ou classes sociais, dependendo do tipo de demanda que virá destes.

Um dos objetivos principais das máquinas políticas é tentar atingir o maior grau de atendimento, das mais diversas demandas possíveis, buscando conciliá-las ao menor grau de atrito possível. "A técnica da máquina é, portanto, uma técnica de compatibilização e não de enfrentamento, delineando-se um perfil multidiferenciado e multifacetado de representação de interesses" (DINIZ, 1982:39).

É nesse ponto que podemos chamar a atenção para o caráter limitado que este tipo de ação política possui. Como sua eficácia está voltada ao atendimento das especificidades de determinados grupos, inseridos em um cenário heterogêneo, suas ações esgotam-se no âmbito estrito das partes interessadas, já que não afetam os demais grupos em condições semelhantes. Logo "na medida em que não comporta extensão ou analogia e não gera, por conseguinte, expectativas de direitos comuns a um nível maior de agregação de interesses, desencadeia de fato efeitos inibidores da ação coletiva organizada" (DINIZ, 1982:39).

Com isso se estimula um tipo de organização vertical onde as relações pessoais se dão por laços de lealdade, não somente por identificação entre pares, mas pela expectativa de suas demandas atendidas. Este tipo de situação é comum em ambientes de baixo índice de vida associativa, em sociedades dispersas, fracamente articuladas e desmobilizadas.

Como o termo máquina freqüentemente está associado a um tipo de organização estruturada sob valores hierárquicos e altamente centralizada, sendo avaliadas negativamente pela comunidade política, seus integrantes acabam se fortalecendo no que diz respeito aos seus laços de lealdade e dependência pessoal.

No caso da ação assistencialista, função primordial para eficácia das relações clientelistas e constituição dos laços de dependência, na máquina ganha amplitude do seu raio de ação e alargamento das suas bases de sustentação. O caráter permanente das ações assistencialistas estabelece uma relação de reciprocidade viciosa, na medida em que o sucesso da organização se efetiva da sua capacidade de prestar serviços que deveriam ser adquiridos de forma procedimental, isenta e universal aos moradores de uma área, aos integrantes de um grupo ou categoria social.

Em suma, os parlamentares, através das máquinas, procuram se estabelecer como meios únicos de acesso aos bens desejados, tanto materiais quanto simbólicos. Mantêm-se através de suas formas de dominação estabelecendo a ordem de acesso e preservando o controle dos principais recursos de poder. Seus quadros, representantes locais, agem como intermediários da população junto às autoridades competentes. Abrem vias e canais informais através dos quais se dá a tramitação dos pedidos e a escolha das formas de atendimento:

"O que a cidadania define como um direito é concedido como dádiva daqueles que se situam em posição de poder". (DINIZ, 1982:43)


Capítulo II

Habitus: entendimentos sobre o conceito

As relações dentro da dinâmica das máquinas políticas se desenvolvem embasadas fortemente na assimetria dos atores políticos e sociais. As máquinas acabam consolidando e perpetuando ambientes de profunda desigualdade social. O conteúdo moral da relação, as diferenças de poder, a natureza das trocas, a durabilidade da relação e a afetividade entre os parceiros estão relacionados diretamente ao ambiente ou habitus que estes indivíduos e seus grupos estão inseridos.

Segundo Bourdieu (2005), habitus pode ser entendido como "sistema das disposições socialmente constituídas que, enquanto estruturas estruturadas e estruturantes, constituem o princípio gerador e unificador do conjunto das práticas e das ideologias características de um grupo de agentes". (BOURDIEU, 2005:191).

Em outras palavras, habitus daria conta de um campo de atuação – e vivência - onde os sujeitos que se inserem neste espaço compartilham conjuntos de valores e significados. Ao mesmo tempo em que o habitus se encontra estruturado, quando colocado em oposição a um conjunto de signos externos, também estrutura, reproduzindo e reificando entendimentos reconhecidos por todos que compartilham determinado espaço.

É o princípio gerador de práticas objetivamente classificáveis e, ao mesmo tempo, sistema de classificação de tais práticas. Tem em si ao mesmo tempo o seu modus operandi (estrutura estruturante), que diz respeito às ferramentas de práticas estruturantes, e o opus operatum (estrutura estruturada) a parte sistematizada do habitus.

É justamente no modus operandi que Bourdieu busca o sentido atribuído pelos sujeitos, e seus grupos, às suas práticas cotidianas. É como tais sujeitos se vestem, quais obras de arte dão valor, quais esportes praticam – e com que freqüência -, qual alimentação faz parte do cardápio etc. E mais importante: como entendem e julgam tais práticas. O conjunto destas práticas construirá e legitimará o entendimento sistemático do opus operatum.

No habitus situa-se o sistema que estrutura todas as condições para composição das diferenças – se o sujeito é alto, baixo, feio, bonito, honesto, mau-caráter, sagaz, incapaz etc. – de todas as percepções possíveis – como se entende e classifica comportamentos e visões - e tão importante quanto é a "naturalização" dessas diferenças e percepções.

Em "A dominação masculina" o autor define o conceito como:

"... o produto de um trabalho social de nominação e de inculcação ao término do qual uma identidade social instituída por uma dessas 'linhas de demarcação mística', conhecidas e reconhecidas por todos, que o mundo social desenha, inscreve-se em uma natureza biológica e se torna um habitus, lei social incorporada". (BOURDIEU, p. 61).

O conceito de habitus não tem sua origem na obra do autor citado. Segundo São Tomás de Aquino, autor que introduz o conceito de habitus ao pensamento escolástico, o termo diz respeito a permanência de um tipo de ação que deriva da razão formal do objeto, e que consenquemente, para que se torne de fato hábito,

"ação seja da mesma espécie que se liga à razão do objeto, e que se ligue ao objeto sob tal razão, como é da mesma espécie a vista pela qual se vê a luz e pela qual se ver a cor dependendo da razão da luz". (Comentário ao Livro V da Ética a Nicómaco, de Aristóteles).

Desta forma, reiterando a perspectiva aristotélica, Bourdieu afirma que esta interpretação do conceito viria romper com o "paradigma estruturalista sem cair na velha filosofia do sujeito ou da consciência, a da economia clássica e do seu homo economicus que regressa hoje com o nome de individualismo metodológico" (BOURDIEU, p.61).

Quer dizer, a noção de habitus traz justamente o seu caráter ativo, a héxis que constitui o "primado da razão prática" ou, como em Aristóteles, a "disposição prática", permanente e costumeira, automática, e muito provavelmente despercebida, pertencente a um plano ontogenético.

Em "O poder simbólico" Bourdieu utiliza o conceito para evidenciar as capacidades "criadoras", ativas, inventivas do próprio habitus e do agente, onde o próprio conceito seria o conjunto de conhecimentos adquiridos, um "haver, um capital (de um sujeito transcendental na tradição idealista) o habitus, a hexis (que) indica a disposição incorporada, quase postural -, mas sim o de um agente em ação... o ‘lado ativo’ do conhecimento prático... sair da filosofia da consciência [14] sem anular o agente na sua verdade de operador prático de construção de objeto". (BOURDIEU, 1989:61)

Quer dizer, mesmo o habitus se constituindo como espaço de incorporação de determinados valores e percepções, tendo em vista o teor de reprodução que toda estrutura impõe aos seus integrantes, Bourdieu não desconsidera a capacidade do sujeito, em punho de suas racionalidades, intervir e transformar seu espaço.

Mesmo considerando a permanência dos processos de reificação de determinado habitus, não podemos desconsiderar os mecanismos que se constituem em seu interior que possibilitam a resignificação destes espaços, fornecendo outro modus operandi na reestruturação da estrutura estruturada.

Neste sentido podemos pensar justamente em que medida tais espaços estão "condenados" a serem vistos de forma precarizada e subalternizada, partindo do princípio que todo juízo de valor – ou como utiliza Bourdieu o "gosto" - se constitui de um determinado lugar de fala, de um habitus bem definido e delimitado.

Habitus precário: uma leitura nas (ou para) sociedades periféricas

Nos últimos anos o conceito de habitus vem sendo reinterpretado e aprofundado por diversos autores da sociologia contemporânea. O sociólogo Jessé Souza (2006) define o conceito como o lugar onde há "a incorporação nos sujeitos de esquemas avaliativos e disposições de comportamento a partir de uma situação socioeconômica estrutural, (onde) então mudanças fundamentais na estrutura econômico-social deve implicar, conseqüentemente, mudanças qualitativas importantes no tipo de habitus para todas as classes sociais envolvidas de algum modo nessas mudanças." (SOUZA, 2003).

O autor subdivide analiticamente o conceito de habitus em três partes para que se possa dar conta de outras configurações da realidade. Como habitus primário, Souza (2003) define sua origem a partir do estudo realizado por Bourdieu sobre a passagem das sociedades tradicionais para as sociedades modernas do Ocidente. Esse habitus teria se originado na burguesia - primeira classe dirigente na história que trabalha -, quando logrou romper com a dupla moral típica das sociedades tradicionais, baseada no código da honra, e construiu, pelo menos em uma medida apreciável e significativa, uma homogeneização de tipo humano a partir da generalização de sua própria economia emocional – domínio da razão sobre as emoções, cálculo prospectivo, auto-responsabilidade etc. – às classes dominadas.

Essa esfera estaria no âmbito dos pressupostos fundamentais para constituição plena de uma cidadania jurídica e social, ligada à noção de Reinhardt Kreckel sobre a "ideologia do desempenho". Para este autor alemão esta "ideologia" se baseia na "tríade meritocrática" e que envolvem os seguintes quesitos: qualificação, posição e salário. Somente a partir da constituição destes requisitos o indivíduo se torna um "cidadão completo".

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No que se refere ao "habitus secundário", este estaria na dimensão do "gosto", segundo Bourdieu. Estaria no limite do "habitus precário" para cima onde há a generalização do habitus primário para amplas camadas da população de uma dada sociedade. Tem a ver com uma fonte de reconhecimento e respeito social, onde operam critérios classificatórios e de distinção social. "Seria a personificação do gosto, o que definiria tais personalidades distintas, uma personalidade que aparece como resultado de qualidades inatas e como expressão de harmonia e beleza e da reconciliação de razão e sensibilidade, a definição do indivíduo perfeito e acabado". (SOUZA, 2003).

O ponto de aprofundamento está no conceito criado por Souza denominado "habitus precário". O conceito de habitus em sociedades periféricas ou de capitalismo tardio pode ser expandido ao seu nível mais precário, onde este seria o lugar da"ausência de um conjunto de predisposições psicossociais que reflete, na esfera da personalidade, a presença da economia emocional e das precondições cognitivas para o desempenho adequado ao atendimento das demandas – variáveis no tempo e no espaço – do papel de produtor, com reflexos diretos no papel de cidadão" (SOUZA, 2006).

Este estaria no limite do "habitus primário" para baixo. Os indivíduos que fazem parte deste contexto teriam "aquele tipo de personalidade e de disposições de comportamento que não atendem às demandas objetivas para que, seja um indivíduo, seja um grupo social, possa ser considerado produtivo e útil em uma sociedade de tipo moderno e competitivo, podendo gozar de reconhecimento social com todas as suas dramáticas conseqüências existenciais e políticas". (SOUZA, 2003).

Os indivíduos deste habitus não teriam incorporado ao seu cotidiano os tais requisitos para que se constitua como "cidadão pleno e completo". Falta a ele um posicionamento adequado no mercado de trabalho, principalmente se atribuirmos ao trabalho o valor essencial para que se constitua a tal "tríade meritocrática". É a partir da sua qualificação, posição e do seu salário que se definirá como este indivíduo, e o seu grupo, será reconhecido dentro da sua sociedade.

"A ideologia do desempenho funcionaria assim como uma espécie de legitimação subpolítica incrustada no cotidiano, refletindo a eficácia de princípios funcionais ancorados em instituições opacas e intransparentes como mercado e Estado" (SOUZA, 2003)

Segundo o autor, se levarmos a discussão para a sua dimensão racial, nesse aspecto, no caso do negro a cor da pele seria "uma ferida adicional à auto-estima do sujeito em questão", pois o problema se encontra numa "combinação de abandono e inadaptação", destinos que atingem todos os indivíduos inseridos num contexto precário, independentemente da cor. O preconceito passa a se referir a certo tipo de "personalidade", julgada como improdutiva e disruptiva para a sociedade como um todo. Numa sociedade competitiva a cor passa a ser índice "relativo" [15] de primitividade e incapacidade.

Conseqüentemente, todos os atributos referentes a esse grupo, historicamente analisados de fora para dentro, através de olhares externos, sem que houvesse uma interferência efetiva do poder público para alteração de situações precárias, são gerados a partir de uma visão distanciada e preconceituosa. Este olhar externo busca encontrar "aspectos conspícuos da hierarquia valorativa do racionalismo ocidental moderno" como ordem, disciplina, previsibilidade e raciocínio prospectivo. Como "não as possuem" passam a ser vistos como subcidadãos que geram subdemandas.

Para Souza (2003), diferentemente das sociedades avançadas, onde o que está em jogo é a disseminação da noção de dignidade do agente racional, tornando-o conseqüentemente agente produtivo e cidadão pleno, sendo o habitus precário visto como fenômeno marginal, em sociedades periféricas como o Brasil, o que constitui a precarização dos agentes é justamente a concepção que se dá ao problema como "fenômeno de massas". Conseqüente há sua naturalização na produção social de uma "ralé estrutural". Logo, habitus precário:

"... implica a existência de redes invisíveis e objetivas que desqualificam os indivíduos e grupos sociais precarizados como subprodutores e subcidadãos, e isso, sob a forma de uma evidência social insofismável, tanto para os privilegiados como para as próprias vítimas da precariedade" (SOUZA, 2003)

Sem dúvida que neste aspecto o sociólogo brasileiro acerta quando aponta para dimensão precária destes espaços, no que diz respeito ao universo vivido por essas pessoas do habitus precário. Contudo, mais do que "ausência de um conjunto de predisposições psicossociais", há precariedade quando não se enxerga naqueles espaços o potencial interno para seu desenvolvimento material e humano. Quando não se percebe nas relações da "precariedade" elementos que promovem a dinâmica que não depende da aceitação de fora, burguesa.

Faz-se necessário analisar os reais motivos para marginalização dessa parcela da sociedade. Por que essas pessoas, sejam elas negras, mestiças ou brancas (ou suburbanas), que foram fundamentais no processo de desenvolvimento e afirmação de um modelo de economia no Brasil, hoje se apresentam como "inaptas" a ocupar determinadas funções dentro da sociedade capitalista moderna? O que leva a esta situação e a faz permanecer "inalterada" em sociedades periféricas como a nossa?

Por esse caminho podemos pensar também em que medida avançamos na nossa própria leitura sobre o que é "precarização". Precariedade de quê? Precariedade pra quem? Será que essas pessoas do habitus precário estão condenadas a uma estrutura estática de mobilidade sócio-econômica, ou o entendimento sobre os processos de desenvolvimento dentro da precariedade não são enxergados em sua plenitude? Quais valores permeiam as avaliações de fora do habitus precário?

Logo, cabe refletir se a própria leitura que se faz sobre a "subcidadania" não contribui para reificação das relações de dominação, consequentemente, clientelistas.

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Sobre o autor
Bruno Coutinho de Souza Oliveira

Cientista Social (especialização em sociologia política); mestrando em Políticas Sociais - Escola de Serviço Social - Universidade Federal Fluminense

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

OLIVEIRA, Bruno Coutinho Souza. Do clientelismo ao "habitus" precário: permanências e perspectivas para política no Rio de Janeiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2801, 3 mar. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/18608. Acesso em: 2 nov. 2024.

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